terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Nassau, um pragmático utópico
edição 32 - Junho 2006
Biografia enfatiza a passagem do representante do poder holandês pelo Brasil, traçando um perfil original a partir de pesquisa inédita e abundância de detalhes.
por Paulo Miceli
Em meio à intrincada trama, tecida pelas rivalidades que, na Europa de fins da Idade Média, opunham e aproximavam os Estados nacionais em formação, a partilha do mundo ocupou lugar de destaque. Enquanto proliferavam alianças e tratados, de pouca eficácia, duração efêmera e obediência mantida apenas pelo uso da força, a guerra moderna acabou transformando em miniatura os exércitos envolvidos nas cotidianas batalhas medievais e, assim como o capitalismo nascente, ampliou seu cenário à escala do planeta. Nesse universo de rivalidades, o Brasil merece registro à parte, já que sua imensa costa, aberta para o Atlântico, emoldurava um território de riquezas que atiçou a cobiça estrangeira, desde o início do século XVI, atraindo os interesses de todas as nações que possuíssem marinha. E foi por conta da ineficácia das ações diplomáticas que coube aos canhões delimitar os territórios do grande mosaico.
Nesse quadro, sumariamente traçado, é possível encaixar o chamado "Brasil holandês", decorrência direta dos conflitos intra-europeus, especialmente quando a unificação das coroas ibéricas (1580-1640) estendeu a Portugal e a seus domínios ultramarinos as rivalidades mantidas pela Espanha, o que incluía a Holanda e, grosso modo, acabou justificando a invasão do Brasil pelos batavos, em 1624. Em meio aos abundantes registros historiográficos sobre a ocupação do Nordeste, destaca-se a figura de João Maurício de Nassau-Siegen, responsável principal pela consolidação da conquista batava, a partir de sua chegada, em 17 de janeiro de 1637.
Curiosamente, faltava-nos uma investigação mais aprofundada sobre o papel desempenhado pelo governador do Brasil holandês, lacuna agora preenchida pela "biografia brasileira de Nassau", escrita por Evaldo Cabral de Mello. "Brasileira", explica o autor, porque embora o livro descreva a trajetória de João Maurício, desde as origens da família (genealógicas ou lendárias), e termine com a baixa no exército holandês (1676) e sua morte, três anos depois, o foco principal da biografia foi o período em que Nassau viveu no Brasil. Além de manter constante a interlocução que teve, e agora perpetua, com o maior conhecedor do Brasil holandês, J. A. Gonsalves de Mello, com quem dialoga em várias passagens do livro, o biógrafo pesquisou documentação abundante - a maior parte inédita no Brasil -, buscada em arquivos e bibliotecas estrangeiras. O resultado foi uma erudita narrativa, construída com minúcias até difíceis de se acompanhar numa primeira leitura, mas que desenham um perfil absolutamente original e preciso de Nassau.
Tendo sempre em mente as influências que o ambiente da "primeira economia moderna" exerceu na formação do governador - como, por exemplo, a tolerância religiosa, que tanto facilitaria sua atuação no Brasil -, Cabral de Mello apresenta-nos os passos iniciais de sua carreira militar, até a destacada atuação em Maastricht, em 1632, quando chefiou forças para romper um cerco imposto pelas tropas inimigas, "proeza que lhe valeu o comando de um regimento de cavalarianos". A partir daí, enquanto prosseguiam as lutas no Nordeste brasileiro, a trajetória de Nassau tomou forte impulso, e a lentidão da ocupação do Nordeste é que teria colocado a necessidade de se escolher "um chefe com autoridade bastante para exercer a gestão unificada da colônia". Nassau foi o eleito, abrindo-se para ele novos e vastos horizontes, capazes de satisfazer "suas ambições de avanço profissional, até então sofreadas pela lentidão da carreira militar".
A formação intelectual de Nassau também mereceu tratamento detalhado no livro, a começar pelo ambiente familiar e pela atuação de tutores, o aprendizado de idiomas e os estudos de retórica, história, filosofia, teologia e astrologia. À matemática, de grande importância para a carreira militar, acrescentaram-se conteúdos destinados a preservar uma cultura militar nobiliárquica, como a equitação e a esgrima, além da música e da dança. Formaram-se, assim, as raízes de sua grande curiosidade artística e científica, responsável pela inclusão, dentre as exigências apresentadas à Companhia das Índias Ocidentais, da possibilidade de trazer ao Brasil seu grupo de artistas e cientistas.
Em síntese, da leitura de Nassau - governador do Brasil holandês, sobra-nos a impressão de que ele conjugava os ideais renascentistas de valorização do indivíduo, o que o habilitaria a organizar, pela razão, o seu mundo e o dos outros, e as aspirações utópicas, materializadas na construção de palácios, em meio a jardins e cidades, cuidadosamente planejados, sem abdicar do pragmatismo a que estava obrigado, por suas relações nem sempre cordiais com o Conselho dos XIX, que dirigia as ações da Companhia das Índias Ocidentais, a partir de Amsterdã. Tudo isso, aliás, era feito, sem que o governador descuidasse de seus interesses particulares, alicerçados em uma brilhante carreira militar e política, sempre muito bem remunerada. Nassau conseguiu, assim, formar razoável patrimônio, que ele tentou ampliar até o final da vida. Exemplo disso foi o oferecimento dos "retratos de todo o Brasil" a Luís XIV, aconselhando-o a utilizar a obra dos artistas que manteve durante seu governo no Brasil na confecção dos gobelins. A brasiliana foi exposta no Louvre, sem a presença de Post, vitimado pelo alcoolismo, Nassau morreu logo depois, antes de receber o pagamento acordado, fabricando-se as famosas séries de tapetes (Anciennes Indes e Nouvelles Indes) apenas dez anos depois.
Enfim, paradoxalmente, da guerra sobreviveu principalmente a arte, mas, depois da leitura deste livro, o perfil do governador do Brasil holandês não poderá mais ser reduzido a seu fracasso militar no Nordeste.
Revista História Viva
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