segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O julgamento dos crimes contra a humanidade: a reflexão de Hannah Arendt


O julgamento dos crimes contra a humanidade: a reflexão de Hannah Arendt
Escrito por Sara Ramos Pinto
31-Mar-2008
No rescaldo de toda a polémica suscitada pelos excertos publicados em Fevereiro e Março de 1963 no jornal The New Yorker, Hannah Arendt publica, ainda em 1963, a sua avaliação do julgamento de Eichmann num livro intitulado Eichmann Trial: A Report on the Banality of Evil. Neste meu comentário e, espero, igualmente sugestão de leitura revisitaremos a reflexão de Hannah Arendt relativamente à questão do mal, da responsabilidade individual em contexto de guerra e das dificuldades sentidas em julgamentos de crimes contra a humanidade.

Para quem o nome Eichmann se encontra já esquecido nos recantos da memória, será importante relembrar a sua associação à Alemanha Nazi e ao planeamento do Holocausto. Enquanto tenente-coronel da SS, Eichmann foi levado a tribunal como responsável pela logística do extermínio de milhares de pessoas, nomeadamente a organização dos processos de identificação e transporte de pessoas para os diferentes campos de concentração.

Em 1964 é publicada uma segunda edição, na qual, além dos artigos publicados em 1963 aquando do julgamento, são publicado também outros textos informativos que vieram a público depois do julgamento e um importante comentário da autora sob a forma de “pós-escrito”, onde a filósofa alemã deixa a descoberto as suas muito próprias reflexões sobre o julgamento em particular e o julgar de crimes contra a humanidade em geral.

A par da relevância enquanto documento histórico que este texto representa, a sua importância firma-se pelo abordar recorrente de 4 temas centrais:

1) Um Tribunal conduzido segundo as necessidade do público e que nunca reflectiu sobre as acusações principais;

2) O carácter abrangente do Tribunal que reflectia sobre questões que em muito ultrapassavam o caso de Eichmann;

3) A questão de se teria sido Israel o contexto mais apropriado para aquele julgamento;

4) O grau de responsabilidade que pode reconhecido sobre um único individuo em contexto de guerra e de hierarquia militar.

Quanto ao desenrolar do julgamento, parece-me bastante revelador a comparação feita entre a sala de audiência e uma sala de teatro, logo no primeiro capítulo intitulado “A Casa da Justiça”. O réu, neste caso Eichmann, assumiria o papel de herói, a assistência o de público e Hausner, o Procurador-Geral, o de um possível narrador/comentador, levando a que mais uma vez se coloque a já tão discutida questão da ténue fronteira que separa a ficção da realidade. Embora não na linha de dramaturgos como Brecht (afinal de contas sempre se tratava de um julgamento), o público participa em pleno neste julgamento, na medida em que todo este processo se mostra mais direccionado para o público, com os seus desejos e necessidades, do que para o réu e o julgar dos seus actos. O Promotor Público, tanto na sala como fora dela, tirando partido da presença dos canais televisivos internacionais, procura atribuir a Eichmann responsabilidades que este não poderá nunca assumir (nomeadamente a de ser o principal responsável pela “Solução Final”), ao mesmo tempo que, de forma bastante dramática (tanto no sentido de emocional como no de teatral), dava a entender que era a oportunidade do povo judeu se “vingar” e trazer a julgamento todas as injustiças e perseguições de que foi alvo em 5000 anos de existência.

Pela forma como descreve o desenrolar dos acontecimentos, assim como as atitudes dos presentes, Hannah Arendt deixa bem claro que duas forças contraditórias se erguiam no que se refere aos objectivos destes julgamento. Se por um lado temos um grupo de juízes que procura julgar Eichmann enquanto homem pelos actos cometidos de forma justa e imparcial; por outro, temos o ministério público que parece querer transformar este julgamento num espectáculo mediático e Eichmann num “bode expiatório”. Como deixa o Procurador-Geral bem claro nas suas palavras de abertura, este julgamento tinha o objectivo bem definido de deixar certos “recados” a diferentes entidades envolvidas na II Guerra Mundial: ao mundo não judaico, para que fiquem conscientes de que os judeus foram um alvo pelo simples facto de serem judeus; aos restantes estados europeus, por de alguma forma terem sido coniventes por inércia; aos judeus da Diáspora, para lhes relembrar todas as perseguições de que têm sido alvo; aos judeus de Israel, que, nascidos depois do holocausto, começavam a perder os laços com esta página da sua história; e, finalmente, todos aqueles que encobriam outros militares nazis refugiados.

Importante será ter em conta, e disso nos vai Hannah Arendt avivando a memória de tempos a tempos, que o Estado de Israel, como estado recentemente formado, encontra neste julgamento uma forma de legitimação e afirmação de si mesmo como estado democrático e justo capaz de julgar os crimes contra o seu próprio povo. Contudo, pelas atitudes e comentários paralelos do advogado de acusação, assim como pelo público que assistia ao julgamento (maioritariamente judeus de meia-idade que passaram pelos horrores dos campos de concentração), percebemos que este julgamento se afirma antes como um processo de expiação, tanto do sofrimento causado pela II Guerra Mundial, como por todas as perseguições que marcam a Diáspora do povo Judeu. Ao contrário dos julgamentos de Nuremberga, onde a acusação havia alicerçado os seus argumentos à luz do conceito de “crimes contra a humanidade”, o julgamento de Eichmann em Israel por um tribunal israelita iria permitir o julgamento apenas dos crimes perpetrados contra o povo judeu (e apenas o povo judeu) que se sentia o mais lesado.

É dentro deste contexto talvez mais político que social que tomaram lugar perguntas que não fariam qualquer sentido naquele contexto, nomeadamente: “‘Como pode isto acontecer?’, ‘Qual foi a razão?’, ‘Porquê os Judeus?’, ‘Porquê os Alemães?’, ‘Que papel tiveram as outras nações?’, ‘Qual o grau de responsabilidade dos aliados?’, ‘Como puderam os judeus, através dos seus dirigentes, colaborar na sua própria destruição?’, ‘Porque terão caminhado para a morte como ovelhas para o matadouro?’” (p.57). Perguntas que se no julgamento nunca vieram a ter resposta, conhecem-na nas palavras de Hannah Arendt que, como sobrevivente de um campo de concentração, afirma sem grande dificuldade ou embaraço, que não é uma questão de maior ou menor coragem, mas sim de uma maior ou menor consciência da realidade. Numa situação em que a morte parecia a única certeza, o último acto de liberdade permitido à vítima era a possibilidade de escolha do tipo de morte a que se iria entregar. Parece ser esta a mensagem de Hannah Arendt numa frase muito lúcida deste primeiro capítulo: “Existem muitas coisas bastante piores que a morte […], só os muito jovens tinham sido capazes de ‘decidir que não podemos ir para o matadouro como ovelhas’” (p. 65).

Além de Israel, o país que mais terá sentido as consequências deste julgamento foi, com toda a certeza, a Alemanha. Recolhidos os escombros e enterrados os mortos, a Alemanha via-se agora a braços com a reconstrução do país, não só a nível das infra-estruturas destruídas pelos intensos bombardeamentos, mas também ao nível da sua identidade enquanto povo, um povo que talvez apenas com o tribunal de Nuremberga terá tomado consciência da verdadeira dimensão das acções do III Reich. Quase 20 anos depois, o povo alemão é novamente obrigado a confrontar-se com o seu passado: muitos dos elementos nazis tinham fugido como Eichmann, mas muitos permaneciam na Alemanha, ocupando, inclusive, cargos no governo ou na justiça. Inúmeros julgamentos tomam lugar, mas também nestes casos os processos se mostram motivados mais por razões políticas que sociais. Também a Alemanha era um país recentemente formado (ainda que dividido), que necessitava de se afirmar como Estado democrático capaz de julgar os seus próprios criminosos e de lutar contra/travar mais uma vaga anti-germânica que decerto ressurgiria aquando do julgamento de Eichmann. Muitos são os elementos nazis levados a tribunal, mas as penas atribuídas deixam transparecer, segundo alguns, a pouca importância que socialmente lhe era dada, de tão leves que foram.

Expostos os factos num discurso de reportagem que procura interferir o menos possível, Hannah Arendt abre espaço para as suas próprias palavras no “Epílogo” e no “Pós-escrito”. Aqui aborda questões como a da responsabilidade (cuja antecâmara tinha tido lugar no capítulo intitulado “Veredicto”) e dos limites desta face a conceitos como o de “acção sob ordens superiores”, ou “acção de Estado”; assim como dos limites de certos conceitos jurídicos como o de “crimes de guerra”, “crimes contra a humanidade” ou “crimes de genocídio” e da sua aplicabilidade, neste caso em particular e em casos futuros. Hannah Arendt faz-nos reler novamente o texto ao abordar novamente a questão do “Mal”, relativamente à qual a autora desvela agora novas nuances face ao “Mal radical” que tinha ponderado aquando da discussão de regimes autoritários em 1951 no texto As origens do Totalitarismo. Assumindo o subtítulo como chave interpretativa, a autora reconduz a reflexão do leitor para a “banalidade do mal”, tratando-se agora de um mal a interpretar num tempo e espaço específicos e que partilha a sua presença num indivíduo que, antes de mais, se apresenta com sentimentos humanos, que terá agido sem “más-intenções”, que afirma não ter morto ninguém e não ser responsável por qualquer morte em consequência do facto de ter agido no cumprimento de ordens superiores. À autora, e ao leitor, surge como reveladoramente impressionante a capacidade de um indivíduo em plenas faculdades mentais se ter destituído das suas intenções individuais e se ter deixado diluir numa autoridade superior a quem parece reconhecer razão absoluta. Banalidade do mal traduz assim desta forma a incapacidade de um indivíduo de criticar e prever as consequências dos seus actos.

Embora termine o pós-escrito dizendo que “[a] presente obra [se] propunha simplesmente avaliar até que ponto o tribunal de Jerusalém conseguiu satisfazer as exigências da justiça” (p.378), a verdade é que acaba por, pelo menos, enunciar algumas das grandes questões a enfrentar pelo recém formado (2002) Tribunal Penal Internacional (TPI). Além de uma muito interessante visão sobre o julgamento em si, este livro acaba por, 30 anos antes, levantar as questões agora tão discutidas no contexto da formação do TPI. Este parece ser, de facto, um importante elemento para a paz mundial, mas, tal como previa Hannah Arendt, difíceis obstáculos terá que enfrentar a começar pela natureza dos crimes que irá julgar e pelas ténues fronteiras que separam os conceitos operacionais básicos. Aos olhos que lerem este texto neste atribulado século XXI, fica a curiosidade em saber qual teria sido o comentário de Hannah Arendt, numa espécie de segundo epílogo, sobre tão importante organismo de justiça, o seu papel nas relações entre os diferentes países e sua (in)eficácia.


O julgamento dos crimes contra a humanidade: a reflexão de Hannah Arendt
31-Mar-2008 © 2008 - Revista Autor

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Fonte:
http://revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=151&Itemid=38

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