por Gilberto Maringoni
©JUAN BARRETO/AFP
Hugo Chávez, à sombra de Bolívar
O presidente venezuelano Hugo Chávez não se cansa de repetir: o ideário que move seu governo é o legado político e histórico de Simón Bolívar (1783-1830). O próprio nome do país foi alterado há alguns anos para República Bolivariana da Venezuela.
Chávez não é o único a reivindicar o personagem. O nome de Bolívar foi apropriado por um sem-número de lideranças e movimentos políticos na América Latina nos quase 200 anos que nos separam de sua morte. Seus seguidores estão espalhados pelas mais diversas vertentes do espectro ideológico. Até que ponto as apropriações de tal legado são fiéis ao pensamento original do chamado Libertador?
É difícil dizer. A “ideologia bolivariana” tem contornos vagos e imprecisos. Bolívar é possivelmente o personagem histórico mais complexo e de maior influência no imaginário político continental. Seu legado é colossal. Além de liderar guerras de independência e de exercer influência direta em pelo menos cinco dos atuais países da região – Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia –, ele deixou vastíssima obra escrita, constituída de artigos, cartas e discursos.
O historiador venezuelano Germán Carrera Damas escreveu um livro fundamental para entender não apenas o personagem histórico, mas o Bolívar simbólico, que segue existindo. O título é preciso: El culto a Bolívar (O culto a Bolívar). Carrera Damas destaca que a admiração despertada por Bolívar em seu tempo e após sua morte não é fruto apenas de laboriosa pregação. Os feitos que liderou repercutiram concretamente na vida de milhões de pessoas. Não sem razão, Bolívar tornou-se objeto de culto, realizado, ao longo dos anos, com os mais diversos propósitos políticos.
Através de variadas interpretações, a figura do Libertador foi reivindicada por todas as classes sociais venezuelanas, como uma espécie de fator de unidade nacional ou até como símbolo da manutenção de determinada ordem. Assim, existe um bolivarianismo conservador, traduzido na profusão das estátuas eqüestres disseminadas nas praças de praticamente todos os municípios venezuelanos, bem como na sacralização estática de lugares e feitos do Pai da Pátria. Esta vertente tenta esvaziar a figura de Bolívar de seu conteúdo transformador e anticolonialista, destinando-a à veneração estéril.
E há um bolivarianismo de esquerda, que busca nas lutas contra o domínio espanhol a inspiração para ações tidas como antiimperialistas. As duas visões envolvem um sem-número de nuances. O ideário bolivariano sempre foi elástico e flexível o bastante para permitir leituras de um lado e de outro.
O culto a Bolívar não é uma criação ficcional, fruto de um patriotismo exacerbado em alguns países. É mais do que isso. Ele constitui uma necessidade histórica e um recurso destinado a compensar o desalento causado pela frustração de uma emancipação nacional que não se completaria. Bolívar seria o elo histórico com um ideal de soberania, liberdade e justiça. Daí sua força, tanto política quanto como objeto de veneração quase religiosa.
Gilberto Maringoni É jornalista, doutor em história social pela FFLCH-USP e autor de A Venezuela que se inventa – Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo)
Revista História Viva
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