quarta-feira, 29 de junho de 2011

Tradição das carpideiras nos velórios do sertão

Figurado de Autor Carpideira
As carpideiras, como muitas outras peças criadas pela oficinadaterra e registadas na Sociedade Portuguesa de Autores como ideia original, são a representação de uma tradição mediterrânica em extinção: tratava-se das mulheres que eram pagas para chorar nos funerais das pessoas ilustres.
Este estranho hábito, que se julga terá origens árabes, era ao mesmo tempo sinónimo de perda - pelo que partia - e estatuto social dos que, ficando, o veneravam.

Diário do Nordeste - Março de 2008

Resgatar a memória do sertão é falar do trabalho das carpideiras, pessoas que rezavam e choravam pelos mortos

São Gonçalo do Amarante. Dor, choro, lamentação. Pessoas vivendo um momento que preferiam nunca saber como é. Ao redor de um caixão, muitas lágrimas derramadas pela família que perde um ente querido. E, para completar a cena, o grupo que canta benditos como forma de transformar o último momento em situação bem mais sofrida. Em pé ou sentados no chão, homens e mulheres eram chamados a passar a noite inteira velando um morto. Com cânticos piedosos, o intuito era fazer com que todos os presentes ao velório, chorassem. Além disso, era como se, com o ato, auxiliassem os mortos a entrar no reino do céu.

Essa era a função das carpideiras cearenses que, antigamente, eram figuras comuns no Interior do Estado. Embora, atualmente, a função já não seja mais exercida como antigamente, as “cantadeiras de inselências”, como se auto-conheciam, fazem parte da história dos antepassados nordestinos.

Uma delas é Rosalva da Conceição Lima, mais conhecida como dona Rosinha que, até hoje, trabalha em Juazeiro do Norte, no Cariri, moradora da Rua do Horto. São muitas histórias nos seus 87 anos, pois acompanha velórios desde os 12 anos. O aviso da encomenda de alma vem por uma voz misteriosa. Tanto pode ser homem quanto mulher. Sua atividade é tão merecedora de atenção que, de julho de 2003 a junho de 2004, foi tema de um projeto de pesquisa da Universidade de Fortaleza (Unifor), na Capital cearense, que estudou a história das carpideiras.

Para quem foi uma delas, não tem como esquecer dos “bons tempos”. Um exemplo foi o grupo encontrado no município de São Gonçalo do Amarante, localizado a 59 quilômetros de Fortaleza, e Paracuru, a 87 quilômetros da Capital.

“Cantávamos a noite toda para atrair as pessoas. Hoje já não tem mais. É triste. As pessoas vão para um velório, passam um pouquinho de tempo e vão embora. Antes não era assim. Ficávamos até que o morto fosse enterrado”, contou Cristina Conceição da Silva, 42 anos, moradora da comunidade de Marco, em Paracuru.

A agricultora Maria Gomes de Oliveira, mais conhecida como Maria Silvino, vizinha de Cristina, 77 anos, também lembra “do tempo bom que não volta mais” e confirma as palavras da “cumade”. “A gente passava a noite toda e o velório era cheio de gente e hoje não”, contou ela.

De acordo com Maria Silvino, o trabalho de cantar as inselências era para que “as pessoas ficassem juntas”. Era um momento de reunir até quem não era da família. “Hoje ninguém mais chora, parece que não tem sentimento”, contou a antiga carpideira.

E para lembrar que “cantar” não era só função das mulheres, o comerciante e agricultor da comunidade de Sítio Cordeiro, em São Gonçalo do Amarante, José Júlio Pereira, conhecido por “Caçaco”, 63 anos, fez questão de ressaltar a memória daqueles tempos em que o morto era “honrado”.

Segundo ele, “a despedida da manhã é que fazia o caba chorar, porque as cantigas eram penosas. Hoje, o que se faz é rezar o terço e pronto. Não é como antigamente”, lamentou. Segundo afirma, o trabalho era para que “o espírito ficasse fortalecido para ir para o reino da salvação”.

Para que a nova geração possa ter conhecimento dessa antiga tradição, o conselheiro tutelar, integrante do Conselho Municipal de Defesa Social e presidente do Conselho Municipal do Idoso da cidade de São Gonçalo do Amarante, José Gildenor Barbosa, informou que o grupo sempre é chamado para fazer apresentações em datas especiais como, por exemplo, a festa de emancipação política do município.

“Os estudantes também os procuram para fazer trabalhos das escolas. Eles até participaram do Encontro Mestres do Mundo que aconteceu em Limoeiro do Norte”, salientou o conselheiro tutelar.

EM FAMÍLIA
Cantadores seguiam os passos dos pais

São Gonçalo do Amarante. Seguiram os passos dos pais. Quando indagados sobre como começaram a “tomar gosto” pelas inselências, Maria Silvino, Caçaco e Cristina, de Paracuru e São Gonçalo do Amarante, foram unânimes em afirmar que desde pequenos observavam os pais e os acompanhavam quando eles iam cantar nos velórios.

“Sabe como é, menino é curioso. Então, a gente curiava as cantigas. Me tornei rapaz e ia acompanhando. À noite tinha que ter o cântico e, assim, passava a noite toda no velório”, disse José Júlio (Caçaco).

Foi assim também com Maria Silvino. “Mamãe já cantava inselência e eu fui crescendo e começando a cantar e a rezar também”, contou. Outra que não fugiu à regra foi Cristina. “Acompanhava meus pais e fui aprendendo os cantos. Achava ruim quando tinha velório e não tinha inselência”, lembrou Cristina. “As coisas mais arcaicas desapareceram”.

Divertimento

Mas quem pensa que os velórios eram só locais de tristeza e choro se engana. Por incrível que pareça, a dor, muitas vezes, dava lugar para o divertimento. É isto mesmo. Os três cantadores de inselências contaram que alguns deles estavam acostumados a beber cachaça durante os benditos. “Com cachaça, o povo se animava”, disse Caçaco.

Outro detalhe eram os namoros que, às vezes, iniciavam nos velórios. “A gente ia para a sentinela (velório), mas não namorava não, respeitava”, contou José Júlio, confessando que sua esposa, ele conheceu em um dos tantos velórios do qual participou.

Quantidade

Os três disseram que não têm como saber em quantos velórios tiveram a função de carpideiras só que “foram muitos”. Afinal, “toda pessoa que morria nessa redondeza vinham chamar nós”, comentou Maria Silvino. Fizeram questão de ressaltar que não recebiam nada em troca, faziam como uma forma de “obrigação, de fazer visita”.

E, nestes tantos anos, não tem como não ter histórias curiosas ou engraçadas, como lembram. “Uma vez teve uma briga em um velório. Um bebo quis invadir o local onde estávamos cantando e foi uma confusão. As pessoas correram, até eu levei pancada”, relembrou rindo Maria Silvino.

Evelane Barros
Repórter

O quarto de morte de Van Gogh

Os dias passados num pequeno quarto de hotel no vilarejo de Auverssur- Oise, na França, em 1890, foram os mais cruciais da vida de Vincent van Gogh. Foi lá que ele se suicidou, após pintar alguns dos quadros mais arrebatadores de toda a sua carreira. Apaixonada pela sua obra transcendental, nossa repórter esteve lá para tentar decifrar o mistério do "pintor da luz"

Por Silvia Reali Fotos: Heitor Reali, De Auvers -sur-Oise, França


Dezessete degraus de madeira escura ladeados por paredes verde-cinzas encardidas levam-me à mansarda, certamente o pior quarto do Hotel Ravoux. Desprovido de janelas, o aposento tem apenas uma claraboia no teto baixo. Trancado por quase um século, manteve-se milagrosamente intacto. Entrar nessa câmara provoca arrepios. Nesse espaço exíguo, cercado por telas em branco e quadros pintados a óleo que recendiam odor de tintas, o pintor holandês Vincent van Gogh viveu os dois últimos meses de sua vida praticamente em reclusão. Ele, que a vida toda buscara a luz, agora só podia colher vislumbres do céu através da pequena claraboia.

A presença de alguém com os nervos em frangalhos ainda habita a mansarda do Hotel Ravoux. Em Arles, no sul da França, em 1888, o pintor chocara a família ao cortar um pedaço da orelha esquerda, após uma discussão com o amigo e pintor Paul Gauguin, e oferecê-la, como presente, embrulhada num lenço, a uma amiga prostituta. As crises nervosas, cada vez mais fortes, motivaram, em maio de 1890, sua ida para Auvers-sur-Oise, vilarejo distante 40 minutos de trem de Paris. Ali vivia o doutor Paul Gachet, médico homeopata que estudava ervas medicinais no tratamento da esquizofrenia – enfermidade da qual, acredita-se, padecia Van Gogh. Para espantar a melancolia, o médico aconselhou o artista a trabalhar muito.

No começo, a terapia deu certo e fez Van Gogh reviver. Em 66 dias ele executou, incansável, 33 desenhos e 70 quadros de cores vibrantes, cheios de luz – algumas das obras mais fascinantes da história da pintura. “Quando a natureza é excepcionalmente bela, ela provoca uma estranha lucidez. Muitas vezes sou invadido por uma terrível clarividência. Nesses momentos, a excitação que se apodera de mim diante da natureza vai aumentando até me fazer perder os sentidos”, ele escreve ao irmão Theo. Era nesse estado particular de alma e de consciência, que poderia ser chamado de “translucidez”, que o artista pintava, focado na paisagem que o encantava e seduzia, abstraído das demais necessidades do seu corpo, a começar pela comida e pelo repouso.

Instigados pelo mistério que emana das telas de Van Gogh, admiradores do artista buscam conhecer mais sobre a sua vida e experiência O drama do pintor holandês transformou o Albergue Ravoux num ímã para admiradores, turistas e artistas.
Na mansarda, quase subjugada pela vibração que as paredes encerram, lembro-me de uma de suas telas, erroneamente tida como a derradeira, pintada nos campos ao redor da cidade belga de Anvers: um trigal que reluz sob um céu de ameaçadora tempestade. As hastes do grão, coloridas de amarelo-cromo puro, são açoitadas pelo vento. Corvos, em revoada, sobrevoam o campo. Percebendo que será impossível pousar ali, dirigem-se ao único ponto mais claro do céu cobalto escuro. Mestre do impressionismo, o movimento artístico que se libertou da representação realista da realidade para se abrir à criação, Van Gogh, ao terminar essa tela, talvez tenha intuído que prenunciava a chegada da nova tendência que marcaria o século 20: o expressionismo. Nela, a arte passaria a refletir diretamente o mundo interior do artista. No ápice da sua criação, poucos dias depois dessa tela, o pintor se suicidou com um tiro no peito.

Durante o período em que seu quarto de morte permaneceu fechado e vazio, a figura de Van Gogh se transmutou aos olhos do mundo. O artista modesto e pouco conhecido que produzia telas num estado análogo ao transe ressurgiu como um dos mais extraordinários pintores da história da arte mundial. De desprezado a amadíssimo, poucos criadores deram saltos de oitava tão importantes em termos de notoriedade global.

As longas filas que se formam, hoje, à entrada do imponente Museu Van Gogh, em Amsterdã, Holanda, confirmam isso diariamente. Suas obras batem recordes em leilões e ganham salas especiais nos mais importantes museus do mundo. Instigados pelo mistério que emana de suas telas, os que admiram o artista querem conhecer mais a respeito do homem. Sou uma dessas pessoas, e por isso estou aqui, no quarto onde ele decidiu pôr fim à própria existência.

Face a face com a morte


Eis uma existência que, em muitos aspectos, segue as linhas das tragicomédias de erros. Vincent Willen van Gogh nasceu em 30 de março de 1853 no vilarejo holandês de Groot, em Zundert, na fronteira com a Bélgica. Filho de um pastor luterano, veio ao mundo exatamente um ano após sua mãe ter dado à luz um menino que não sobreviveu ao parto. Seus pais batizaram o recém-nascido com o mesmo nome do filho morto.

Como era costume na época, a casa do pastor ficava ao lado da igreja e do cemitério. Van Gogh relatou que, na infância, passava constantemente diante do túmulo onde podia ler o seu próprio nome inscrito na lápide. A data era quase a mesma de seu nascimento. “Sempre julguei que usurpava o lugar de um outro. Quem me libertará do cadáver desse morto?”, costumava se perguntar.
Desenho do artista em uma de suas cartas ao irmão Theo.

Episódios da sua vida são fonte inesgotável de mitologias sobre seu temperamento raro, sua doença e obra. Existe, no entanto, uma fonte genuína para se entender Van Gogh: as cartas que escreveu. Foram mais de 700 e, dentre elas, 600 endereçadas ao irmão Theo. Van Gogh se explicava em seus escritos e se exprimia nas pinturas. Nas duas linguagens, as informações são muitas, mas nada aclara o motivo do seu suicídio.

Ninguém vai a Auvers-sur-Oise para ver as obras de Van Gogh. Ali não há nenhuma. Existe apenas um velho chassi de telas no quartinho da mansarda, que se chama, hoje, Museu Maison Van Gogh, “o menor museu do mundo”. O que realmente interessa aos visitantes é o próprio quarto, bem como o casario e as paisagens dos arredores, que pintou e imortalizou. Trata-se menos de uma visita e mais de uma peregrinação.

Os visitantes buscam o homem que chegou a Auvers, depois de muito sofrer com a falta de reconhecimento, a solidão e a miséria, enfraquecido pelas doenças que a fome e a penúria provocam. Em vez de comprar comida, ele preferia gastar tudo que tinha em tintas, que utilizava em abundância. Ao caminhar pelos arredores, é inevitável imaginá-lo pintando as forças desabridas da natureza, amarrado ao cavalete para não ser arrastado nos dias em que o vento mistral soprava com toda força.

Da mesma forma, sozinha, no seu quarto de morte, tento desvendar como um ser tão arrasado pelas sucessivas internações em manicômios – que o debilitavam mais e mais – podia reproduzir com tanta intensidade e vigor a força da natureza e a alegria da vida. “Nos meus quadros, gostaria de dizer algo que console tanto quanto a música”, disse.


Caminhar pelas ruas de pedra e igrejas do vilarejo é empreender uma espécie de via-sacra, seguindo os passos do pintor A catedral de Auverssur- Oise. À direita, autorretrato do pintor. Abaixo, seu túmulo, junto ao do irmão Theo.

Como eu, visitantes das mais diversas nacionalidades desejam, em Auvers, seguir os passos do artista, observar os motivos que ele pintou, sentir o que ele sentia diante dessas mesmas paisagens. Empreendemos uma espécie de via-sacra: caminhamos pelas ruas de pedra do vilarejo munidos de um livro com reproduções dos quadros de Van Gogh, como se segue um mapa. Paramos diante dos campos cultivados, das casas, dos muros cobertos de hera, das paredes de pedra do castelo de Auvers, dos fundos da igreja gótica.

Van Gogh deu a todos esses elementos uma nova aura. Lembram-se como, em seus quadros, ele transforma ciprestes em labaredas verdes? Tudo em suas telas pulsa, como se tivesse vida orgânica. Em Auvers, ele viveu a experiência da solidão extrema e foi além dos limites da ruptura interna: Theo, que era seu único esteio, se casara; seus quadros não vendiam; ele estava doente e debilitado. Havia dado a si mesmo dez anos para alcançar o sucesso e o tempo rapidamente se esgotara, deixando no seu rasto apenas frustração: “Uma tela que pinto vale tanto quanto uma tela branca”, escreveu.

Theodore, “Theo”, o irmão querido de Van Gogh, a quem o pintor endereçou 600 cartas.
No domingo, 27 de julho de 1890, partiu para o suicídio. Cruzou um campo de trigo, contemplou a paisagem ao redor e disparou um tiro no peito. Caiu sobre a relva e ficou desacordado durante horas. Voltou caminhando ao quarto do hotel, gravemente ferido. Chamado, o doutor Gachet já não podia fazer nada. Dois dias depois, o pintor faleceu.

Depois do enterro, Theo voltou ao quarto. No bolso do paletó surrado, feito de sarja azul-celeste – o mesmo com o qual seu irmão se fizera retratar no quadro “A Caminho de Tarascon” –, encontrou a última carta que Van Gogh ainda não lhe enviara. Nela, o pintor redigira seu epitáfio: “No meu trabalho arrisco a vida, e metade da minha razão nele se desfez.” Van Gogh morreu tendo vendido apenas um quadro em toda a sua vida.

PARA SABER MAIS:
www.franceguide.com

Van Gogh, Pierre Cabanne, Editora Verbo.
A Vida Trágica de Van Gogh, Irving Stone, José Olympio Editora.
Cartas a Theo, L&PM.

Revista Planeta

O sucesso das civilizações

Por que certas civilizações desaparecem? Segundo o prestigiado geógrafo norteamericano Jared Diamond, autor de best-sellers como Armas, Germes e Aço, Colapso e O Terceiro Chimpanzé, quem maltrata o ambiente paga.

Por Regina Scharf

Se a humanidade tivesse um psicanalista, seu nome seria Jared Diamond. Ele não fuma cachimbo, não usa divã, é professor de geografia e de fisiologia na Universidade da Califórnia (EUA), domina línguas do Pacífico Sul e se dedicou durante décadas ao estudo da evolução dos pássaros. Talvez a versatilidade explique o sucesso dos seus livros - mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos em dezenas de línguas.

Diamond une os pontos que conectam eventos e personagens díspares, como os conquistadores espanhóis e os povos maoris da Nova Zelândia, para entender o que está por trás das vitórias e derrotas da humanidade. Concluiu, por exemplo, que as sociedades se desenvolvem de modos distintos devido às suas peculiaridades ambientais, não genéticas. Assim, brancos indo-europeus dominaram a maior parte do mundo não por uma superioridade inata, mas porque vêm de regiões excepcionalmente generosas, em termos ecológicos.

Os europeus tiveram, por exemplo, acesso a espécies animais e vegetais fáceis de domesticar. Há dez mil anos, carneiros e cabras já pastavam à sombra das plantações de trigo e de oliveiras no Crescente Fértil, no Oriente Médio. O resto do mundo dependia da caça e da coleta, mas os ancestrais de iraquianos e sírios conseguiam acumular alimentos e, com isso, ganharam uma vantagem competitiva essencial. Graças ao desenvolvimento precoce da agropecuária, eles podiam se dar ao luxo de procriar à vontade, desenvolver tecnologias sofisticadas e organizar exércitos.

Mas, segundo Diamond, o que a natureza dá também pode tirar. Problemas ambientais foram responsáveis pelo desaparecimento de diversas civilizações. O próprio Crescente Fértil, que foi o primeiro celeiro agrícola da humanidade, hoje é coberto por desertos e solos erodidos e salinizados, impróprios para o plantio. A pouca chuva não permitiu que a terra se recuperasse de séculos de maus-tratos. "Foi um suicídio ecológico. Sem querer, eles destruíram os recursos ambientais de que sua sociedade dependia. Da mesma forma como a ascensão dessa região não se deu devido a alguma virtude especial de seu povo, a sua decadência também não se deve à sua cegueira especial", afirma.

Essa linha de pensamento começou a tomar forma quando Diamond publicou O Terceiro Chimpanzé, em 1991, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Record. Nele, discute como nós, humanos, com uma genética 99,3% idêntica à dos chimpanzés, alcançamos tamanha sofisticação. Essas diferenças mínimas teriam sido suficientes para diferenciar as nossas laringes e línguas, e isso permitiu que controlássemos os mecanismos da linguagem verbal. E falar, diz Diamond, é o que faz toda a diferença entre um humano e outros primatas.

Seis anos depois ele publicou Armas, Germes e Aço, que lhe deu o Pulitzer, principal prêmio literário norte-americano. Ali investigou o que levou certos povos a prevaleceram sobre outros. Como explicar que um punhado de espanhóis que desembarcaram no Peru - 600 soldados - tenha conseguido dominar milhares de guerreiros incas e uma sofisticada sociedade? No caso, responde, os espanhóis tinham uma tecnologia superior e carregavam microrganismos para os quais os incas não tinham resistência - vantagens derivadas, de uma forma ou de outra, também do meio ambiente onde sua civilização se originou.

O mais recente livro de Jared Diamond, Colapso, de 2005, faz o caminho inverso para investigar o lado dos perdedores. Por que certas civilizações simplesmente desaparecem? Segundo o autor, muitas maltrataram o meio ambiente e pagaram por isso. Para ele, as civilizações são derrotadas devido à destruição dos recursos naturais, à sua dificuldade de reagir diante de mudanças climáticas, à forma como se relacionam com seus vizinhos e também devido às suas idiossincrasias políticas e culturais, que as impedem de tomar decisões acertadas.

Apesar do sucesso editorial, Diamond, é claro, não está imune às críticas. Ele é acusado de ser excessivamente "politicamente correto" na sua campanha contra o racismo e de desconsiderar a importância da cultura na evolução das civilizações. Nessa entrevista a PLANETA, ele se defende das acusações, fala sobre como vê o futuro próximo do mundo e manifesta sua crença na nossa capacidade de resolver os problemas que nós mesmos criamos.

O sr. é um otimista que acredita que podemos resolver os problemas que criamos. Desde que o sr. escreveu O Terceiro Chimpanzé, há 20 anos, tanto os problemas ambientais quanto a conscientização da população aumentaram consideravelmente. O sr. vê uma mudança de rumo para o desastre ou para a redenção? Acho que a tendência continua a mesma: a humanidade enfrenta problemas sérios, problemas que nós mesmos causamos e que poderíamos deixar de causar se decidíssemos fazer algo nesse sentido. É como se assistíssemos a uma corrida de cavalos em que dois animais correm cabeça a cabeça. A velocidade aumenta num ritmo exponencial, sem um sinal claro de que um dos dois está efetivamente tomando a dianteira. É muito difícil saber quem vai ganhar. Da mesma forma, fica difícil discernir uma tendência na disputa entre os nossos problemas e soluções.

"As sociedades se desenvolvem de modo distinto devido às
suas peculiaridades ambientais, não genéticas"

O sr. sempre lembra que o crescimento populacional tende a multiplicar conflitos. Hoje, as taxas de natalidade estão caindo na maior parte do mundo. Podemos esperar que haja mais paz? Embora a taxa de natalidade esteja caindo, indivíduos de quase todas as sociedades consomem cada vez mais. No fim das contas, o volume de bens consumidos continua a crescer. Os conflitos tendem a aumentar quando há um crescimento do consumo - e não somente pela mera expansão da população. Assim, prevejo, e isso já pode ser observado, que os conflitos vão aumentar.

O desequilíbrio entre a demanda dos consumidores e a disponibilidade de recursos naturais é, justamente, uma das razões na origem do colapso de várias civilizações. Como enfrentar essa disparada do consumo nos países emergentes? As taxas médias de consumo ao redor do planeta têm de ser reduzidas, mas a diferença entre o quanto os países desenvolvidos e os emergentes consomem também tem de diminuir. Isso significa que os países em desenvolvimento têm de consumir mais e os países ricos, menos. Não há outra forma de criar um mundo estável e sustentável.

A cultura é cada vez mais homogênea ao redor do mundo. Como isso compromete a nossa capacidade de reagir às crises globais? De fato, alguns aspectos da cultura são cada vez mais homogêneos ao redor do mundo. Por exemplo, você e eu nos comunicamos por e-mail em inglês. Esse aspecto da globalização torna mais fácil responder a crises globais, porque as pessoas ao redor do mundo podem se comunicar entre elas e compartilhar recursos. Mas a globalização também compromete a nossa capacidade de reagir às crises porque, não importa onde elas ocorram (no Haiti, na Somália, no Iraque, no Afeganistão ou no Egito), oferecem riscos potenciais a todos os outros países. Assim, o mundo inteiro corre o risco de entrar em colapso, e não apenas países isolados.

O sr. foi acusado de ser um determinista ambiental. Não é arriscado, politicamente, usar o argumento de que o meio ambiente determina o sucesso de uma civilização? Dizer que o meio ambiente físico influencia o sucesso de uma dada população não é mais arriscado do que basear as suas decisões em qualquer outro fato estabelecido, como o de que os trópicos são mais quentes que as zonas temperadas, que as florestas tropicais são mais úmidas que os desertos e que o céu é azul. Qualquer um que duvida que o meio ambiente influencia o sucesso de uma população deveria se perguntar por que a região Sul do Brasil é mais rica que o Nordeste, por que o Brasil produz etanol de cana com muito mais eficiência que os Estados Unidos ou por que os esquimós no Ártico não desenvolveram a agricultura. Todos esses fatos são consequências diretas do meio ambiente.

Existe um mito, no Brasil, de que o país seria mais bem-sucedido se tivesse sido colonizado pelos ingleses ou pelos holandeses, em vez dos portugueses. Qual é a sua opinião?
Você tem de lembrar que, mesmo dentro da América do Sul, enquanto os portugueses colonizavam o Brasil, os ingleses colonizavam a Guiana e os holandeses, o Suriname. E o que vemos hoje? A antiga colônia portuguesa desfruta de um produto interno bruto per capita duas vezes maior que o das duas outras ex-colônias. Lembre, também, que o Paquistão e a Nigéria foram colonizados pelos ingleses e os holandeses colonizaram a Indonésia. Agora pergunte a você mesma: você preferiria viver no Brasil, no Paquistão ou na Indonésia? O sucesso do Brasil resultou de uma combinação do meio ambiente favorável com o esforço de 190 milhões de brasileiros. O Brasil é o país mais poderoso da América Latina e está se transformando num dos mais poderosos do mundo. Vocês não têm do que reclamar.
"O sucesso do brasil resulta da combinação de um meio ambiente favorável com o esforço de 190 milhões"
O Terceiro Chimpanzé, de 1991, mostra o que há de especial no animal humano.
Armas, Germes e Aço, de 1997, explica por que alguns povos prevalecem sobre outros.
Colapso, de 2005, analisa como as civilizações entram em decadência e declinam.

Revista Planeta

domingo, 26 de junho de 2011

África: culturas e sociedades 1

Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)

Texto do guia temático para professores África: culturas e sociedades, da série Formas de Humanidade, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.


1ª. Parte - África: cultura material e história

Para compreendermos a cultura material das sociedades africanas, a primeira questão que se impõe é a imagem que até hoje perdura da África, como se até sua "descoberta", fosse esse continente perdido na obscuridade dos primórdios da civilização, em plena barbárie, numa luta entre Homem e Natureza.

De fato, a história dos povos africanos é a mesma de toda humanidade: a da sobrevivência material, mas também espiritual, intelectual e artística, o que ficou à margem da compreensão nas bases do pensamento ocidental, como se a reflexão entre Homem e Cultura fosse seu atributo exclusivo, e como se Natureza e Cultura fossem fatores antagônicos.

E é isso que fez com que a distorção da imagem do continente africano, atingisse também os povos que ali habitavam. De acordo com as ciências do século XIX, inspiradas no evolucionismo biológico de Charles Darwin, povos como os africanos estariam num estágio cultural e histórico correspondente aos ancestrais da Humanidade. Dotados do alfabeto como instrumento de dominação não apenas cultural, mas econômica também, os europeus estavam em busca de suas origens, sentindo-se no vértice da pirâmide do desenvolvimento humano e da História. Vem daí as relações estabelecidas entre Raça e Cultura, corroborando com essa distorção.

Por isso, a história da África, pelo menos antes do contato com o mundo ocidental, em particular antes da colonização, não pode ser compreendida tomando-se como referência a organização dominante adotada pelas sociedades ocidentais. Normalmente fica no esquecimento, dado ao fato colonial, que não existe uma África anterior, a que se convencionou chamar África tradicional, diversa e independente, com suas particularidades sociais, econômicas e culturais.

As sociedades ocidentais, assim chamadas por oposição às não-ocidentais (não-européias), se estruturaram fundamentalmente sob o modo de produção capitalista. Além disso, o modo de produção dominante (não existe apenas um) numa sociedade pode nos dizer muito sobre a vida dessa sociedade, mas certamente não comporta explicações de todas as dimensões de como os homens que a constituem compreendem sua vida e modelam sua existência.

A degeneração da imagem das sociedades africanas, de suas ciências, e de seus produtos é resultado do projeto do Capitalismo, que difundiu a idéia de que o continente africano é tórrido e cheio de tribos perdidas na História e na Civilização. É resultado também do etnocentrismo das ciências européias do século XIX. É necessário, pois, ver de que História e de que Civilização se trata. E do ponto de vista histórico-econômico, o imperialismo colonial na África é meio e produto do Capital, uma das grandes invenções que vem desde a era dos Descobrimentos reforçada ainda mais pela consolidação do Liberalismo.

O viés econômico da História é um importante instrumento da Ideologia do Desenvolvimento, tipicamente ocidental. Dentro dessa linha de raciocínio, o Capital emerge de fora das sociedades de que tratamos para regrar suas atividades econômicas de modo diferente, conforme interesses externos aos dessas sociedades produtoras e dos povos que as constituem, modificando as relações sociais e impondo um novo modelo de pensar e agir.

As sociedades africanas tradicionais (ou pré-coloniais) tinham em suas atividades econômicas uma das formas de sobrevivência, de acordo com o meio ambiente em que viviam, de suas necessidades materiais e espirituais, e de toda uma tradição anterior de várias técnicas e tipos de produção. Havia muitos povos nômades, que precisavam se deslocar periodicamente, e havia povos sedentários, que fundando seus territórios, chegaram a constituir grandes reinos, desenvolvendo atividades econômicas produtivas, tanto de bens de consumo como de bens de prestígio (em que se destacam várias de suas artes de escultura e metalurgia).

O que a história oficial procurou velar é que os africanos desenvolveram várias formas de governo muito complexas, baseando-se seja em uma ordem genealógica (clãs e linhagens), seja em processos iniciáticos (classes de idade), seja, ainda, por chefias (unidades políticas, sob várias formas). Algumas grandes chefias, consideradas Estados tradicionais, são conhecidas desde o século IV (como a primeira dinastia de Gana), mesmo assim posteriores a grandes civilizações, cuja existência pode ser testemunhada pela arte, como a cerâmica de Nok (Nigéria), datada do século V a.C. ao II século d.C. Aliás, ela é uma das produções mais atingidas pelo tráfico do mercado negro das artes na África que coloca em risco toda uma história ainda não completamente estudada.

Os impérios de Gana, Mali e outros se sucederam na África ocidental durante toda a Idade Média européia; reinos da África oriental e central (como os Lunda e Luba) se disputam entre os séculos XVI e XIX, sendo considerados semelhantes aos estados de modelo monárquico ou imperial. Outros estados centralizados marcam relações de longa data com o exterior, como o reino Kongo (a partir do século XIII). Então, é importante relativizar o peso conferido ao continente africano enquanto um dos territórios das "descobertas", como também é o caso das Américas. Em ambos os casos, a história dos povos que lá e aqui habitavam era considerada como inexistente pelos europeus, como se a história fosse resultado de uma cultura - a européia.

Normalmente se esquece de pensar que a "ação civilizadora" européia era para tirar suas elites da emergência de sua própria falência econômica: os europeus precisavam se apropriar de novas terras e mercados para alcançar hegemonia. E fizeram isso na perspectiva da exploração, sob pretexto de "descobrir" o que estava "perdido", tanto no globo terrestre (como se fosse seu quintal) como na história (como se ela fosse um produto acabado), sendo eles os sujeitos, no presente, do tempo e do espaço - passado e futuro. Ignoraram que os africanos já mantinham contatos seculares (provavelmente milenares) com outras civilizações: a egípcia, por exemplo, é africana, apesar das relações estabelecidas, e reconhecidas historicamente, com o Mediterrâneo antigo.

Devemos ainda lembrar que a penetração árabe no território africano vem do século VII, enquanto os primeiros contatos dos europeus com os africanos foram estabelecidos a partir do século XV. E tais contatos foram de viajantes e mercenários, do lado ocidental, e chefias bem estruturadas, do lado africano, resultando, em alguns casos, e durante alguns séculos, num comércio ativo, dada a força de grandes estados tradicionais na África, num clima muito diferente da situação colonial que sobreveio apenas no fim do século passado. Essa exploração teve o apoio da Etnologia da época, mas tornou-se um dos fundamentos da Antropologia, cujo desenvolvimento, através de várias teorias sobre as relações do Homem com a Natureza e a Cultura, permite-nos perceber as diferenças como características e valores fundamentais para a permanência e dinâmica da Humanidade.

É através dela que se permitiu reconhecer que os estados tradicionais africanos não foram apenas instrumentos de governo eficazes e agentes da história, mas estimularam a produção de grandes patrimônios materiais.É o caso das artes de Ifé e Benin, bem como das artes luba e kuba.

Da arte de Benin e arte luba confira as FIG 1 e 2, a sobre a arte kuba veja uma de suas estátuas mais célebres.

kuba veja uma de suas estátuas mais célebres.
FIGURA 1:Figura de rei, arte de Benin, Nigéria, acervo MAE-USP
FIGURA 2: Estatueta do tipo chamada "de ancestral", arte luba-hemba, Republica Democrática do Congo, acervo MAE-USP

Há muitas outras modalidades da arte africana que dominam, junto com essas, a gênese de uma história da arte africana, mesmo que sempre apartada da história universal da arte. Por isso, não deixe de conferir a linha do tempo da história da arte no continente africano proposta pelo Museu Metropolitano de Nova Iorque.

O fato de não terem escrito sua história anteriormente, não quer dizer que os africanos, bem como os povos autóctones das Américas e da Oceania, não tinham história, muito menos que não tinham escrita. Objetos de arte considerados apenas decorativos estão plenos de mensagens codificadas por signos e símbolos que podem ser "traduzidos", ou interpretados verbalmente, como é o caso de muitos objetos proverbiais (FIG 3).
FIGURA 3: Pesos de latão para medição de pó de ouro, arte ashanti, acervo MAE
Além disso, na tradição oral, ou no registro oral da história dos povos africanos, podemos constatar que o tempo é marcado pelo evento, e que esse evento não se situa num vazio: ele supõe um lugar exato, um instante único (p. ex., a queda de um cometa célebre, uma enchente inusitada, marcando feitos de um governo determinado, de um chefe conhecido e nominado). Do mesmo modo, podemos pensar na revalidação da informação histórica em objetos que expressam, através de mesclas de estilo ou da própria iconografia, deslocamentos das comunidades africanas, formando grandes correntes migratórias pelo continente, seja de caráter cultural, comercial ou outro.

Esses contatos, determinando combinações de elementos originais de um povo com outro(s), promoveram um dinamismo externo e explicam a unidade cultural da África. Por outro lado, a história desses povos pelo continente é uma história de conquistas, de legitimação do território a ser habitado e cultivado, explicando a diversidade cultural existente.

A mudança social provocada pelo fato colonial faz parte dessa história, mesmo que a intenção da colonização era acabar com ela. O período colonial africano é recente, durando de 1883-1885 até pouco mais da metade do século XX. Nesse período, os governos europeus dividiram e reagruparam as sociedades tradicionais da África em colônias, cujas fronteiras não correspondiam aos seus territórios originais.

Nas décadas de 1950 e 1960, depois das independências conquistadas individualmente, mas num grande movimento de solidariedade entre nações, as linhas de divisa colonial foram de modo geral absorvidas na configuração dos países atuais, a partir de então com seus próprios governos. Mesmo assim, até hoje são países que lutam com dificuldade, tentando recuperar suas origens ancestrais, e prosseguir suas vidas dentro do quadro da globalização imposto mundialmente. As lutas civis, e a presença de ditadores compactuados com potências estrangeiras na África atual refletem ainda os problemas que a exploração européia e a ideologia do desenvolvimento causaram aos povos africanos, esgotando seus minérios e suas florestas, degradando seu meio ambiente, alterando seu ecossistema, estabelecendo uma ordem completamente diferente sobre uma experiência secular de vida.

É evidente que a exploração da África não se deu apenas na sua colonização, esta já tão truculenta em si mesma, lembrando que durante esse período os africanos não foram apenas usurpados em suas economias e territórios, mas em seus modos de existência e de pensamento, principalmente através de ações missionárias. Sabemos como a Igreja manipulou o Cristianismo sob pretexto de uma ação civilizatória compactuada com países europeus.

Aqui estamos falando apenas daqueles que permaneceram no continente e não dos que foram sequestrados para a industria da escravidão que durou pelo menos quatro séculos. Podemos dizer que se o futuro de alguns africanos (os que foram feitos escravos) continuou aqui no Brasil (e nas Américas), e o passado de povos africanos na África ficou na memória coletiva e no silêncio da cultura material, temos muito a repensar sobre a nossa história em comum, encontrando, oxalá, nossos valores para o futuro.

Por isso, não podemos admitir nada de primitivo na história e na cultura material dos povos africanos, vez que se trata de sociedades que têm atrás de si mesmas existência milenar. Temos testemunhos plásticos e iconográficos do séculos V, VI e até VII a.C. nos países do Mediterrâneo antigo, que demonstram não apenas a presença da civilização egípcia, como também das civilizações da África sub-saariana, esta chamada de África negra. Vê-se aqui a antiguidade das culturas africanas, bem como sua dinâmica, alimentada não apenas por fluxos internos, mas também externos, desde longa data. Ao lado de tudo isso, lembrar que descobertas arqueológicas vêm demonstrando a precedência da espécie humana e de suas indústrias no continente africano, antes dos seus vestígios em território europeu, como o caso do exemplar mais antigo do homo sapiens sapiens (nossa espécie) descoberto no Quênia, datado de 130 mil anos atrás.

É importante, portanto, ter sempre em vista que o continente africano é imenso, com centenas de grupos étnicos ou sociedades, que não devemos chamar de tribos, pois o sistema de parentesco, além de não ser a única forma de organização, manifesta-se em grande diversidade e complexidade na composição dos grupos culturais. Hoje as sociedades africanas são sociedades modernizadas, o que não quer dizer que antes elas não tinham organização. Com uma hierarquia de obrigações e direitos, e com uma tecnologia própria ditada pela sua economia, seja ela de subsistência ou de comércio, algumas sociedades tradicionais voltavam-se mais para a agricultura, outras para a caça e pesca, e não raro, essas atividades eram mescladas. Não há conhecimento de grupos africanos sem um tipo de organização, seja em pequenas chefias a grandes repúblicas e reinos, até que as grandes potências ocidentais invadiram e colonizaram o território africano.

Em contrapartida, devemos também estar alertos para não nos valermos do que, entre nós, é tido como premissa de civilização, achando que com isso chegamos à compreensão de outros povos. Ao lado de técnicas de metalurgia ou cultivo, ao lado de chefias ou de um comércio ativo, cada sociedade, cada cultura tem um sistema de categorias próprias de pensamento e existência, sendo ele o que a diferencia das outras, e o que lhe dá real relevância perante a Humanidade. A cultura material e a arte, pelo seu caráter concreto (de "coisas", objetos), podem ser veículos eficientes para que tais categorias não fiquem tão vulneráveis à ação destruidora de nosso etnocentrismo, desde que sejam enfocadas como produtos de sociedades diferentes e não desiguais.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Capangas da imperatriz

Sob a batuta da czarina, os irmãos Orloff traíram, derrubaram e mataram Pedro III da Rússia

Alvaro Opperman

A coisa estava ruça no verão de 1762 em São Petersburgo. Alexei Orloff chegou à residência de campo do czar deposto Pedro III e foi saudado sem palavras pela guarda imperial, que mantinha prisioneiro o ex-soberano da Rússia. Alexei entrou resolutamente no castelo. Quando Pedro III o viu, não entendeu o porquê da visita. Que diabos um maldito Orloff ainda queria com ele? Primeiro, Gregori – irmão mais velho de Alexei – se tornara amante de sua esposa, Catarina. Depois, os três juntos conspiraram para tirá-lo do trono. Agora, aquela visita. Alexei fez Pedro III entender rapidinho o motivo da sua presença. De um golpe, jogou o czar ao chão. Depois, com a ajuda de membros da guarda, o estrangulou. O czar se debateu por alguns minutos, em vão. Alexei Orloff largou o corpo sem vida no meio da sala e saiu do recinto a passos lentos. Apanhou a carruagem que o esperava numa alameda e abandonou o castelo.
Gregori e Alexei Orloff eram destacados militares do exército russo. A varíola acometeu Pedro, então herdeiro do trono, em 1745, ano do casamento com Catarina. Ele ficou para sempre com as marcas da doença no rosto e perdeu boa parte do cabelo. Não que Catarina se importasse: "Eu não ligo pro Pedro, mas sim para a coroa", dizia. Em pouco tempo, ela engatou uma série de romances, até conhecer Gregori Orloff – sujeito boa-pinta, que logo caiu nas graças da futura czarina. Gregori era também astuto e ambicioso. Com o tempo, ele e seu irmão se tornaram figuras de prestígio na corte.
Pedro III não se importava que a esposa tivesse casos extraconjugais, pois ele também os tinha. Só não gostava de Gregori, cuja ascendência sobre Catarina o preocupava. E ainda temia Alexei, um homem com fama de sanguinário, que ostentava no rosto uma ameaçadora cicatriz ganha em batalha. Segundo alguns, Catarina também foi amante de Alexei.
O reinado de Pedro III foi desastroso. Descontentou o povo, profundamente nacionalista, com uma política de abertura internacional. E enfureceu a poderosa Igreja Ortodoxa Russa ao cortar privilégios do clero. Gregori Orloff orquestrou uma conspiração contra o czar, mas a notícia vazou na corte. Alexei procurou Catarina no dia 28 de junho de 1762 e lhe expôs a situação. Ou ela dava um golpe de Estado, ou eles terminariam enforcados.
A czarina não titubeou. Com apoio de Gregori, Alexei e da guarda imperial, depôs o marido e foi coroada Catarina II da Rússia. Alexei, porém, não se sentia seguro. Resolveu matar Pedro III. Quando Catarina soube da morte, mandou dizer que o marido morrera de uma cólica violenta. A Europa inteira bradou contra tal cinismo, e ela se deu conta de que teria de despachar da corte os incômodos irmãos Orloff. Gregori perdeu seu posto para o Conde de Potemkin, um garotão de 22 anos. Tentou reconquistar a czarina, enviando para ela um belo diamante. O presente não cumpriu seu objetivo, mas se tornou uma das jóias mais famosas do mundo e eternizou o nome Orloff – até no Brasil, onde há uma vodca homenageando a gema. Mas a pedra não amoleceu o coração de Catarina.
Gregori exerceu ainda algumas funções públicas, mas morreu recluso em Moscou, em 1783, aos 49 anos. Alexei foi mantido no exército. No fim da vida, se tornou criador de cavalos. Quanto a Catarina, ela modernizou a Rússia em 34 anos de reinado. Com mão de ferro: em 1773, suprimiu uma revolta popular massacrando 10 mil camponeses famintos. O filósofo Voltaire, amigo e admirador, a apelidou de "Catarina, a Grande". No fim da vida, era mesmo grande e gorda. E sem dentes. Mas, mesmo assim, ainda mantinha rapazes como amantes.

Revista Superinteressante

A (indiscreta) história da pornografia


Dos gregos que elegiam as melhores "nádegas de Vênus" ao sucesso de Garganta Profunda, conheça a saga do sexo sem-vergonha

Marco Antônio Lopes


Os gregos se divertiriam muito se visitassem um sex shop. Os habitantes de Atenas, há cerca de 2 500 anos, adoravam ver representações de sexo e nudez. As ruas eram decoradas com estátuas de corpos bem definidos. Nas casas, cenas eróticas enfeitavam vasos. Em procissões, famílias erguiam peças fálicas como se fossem imagens sagradas, cantando hinos recheados de palavrões cabeludos. Depois do evento, muita gente ia para casa fazer festinhas em que o deus do vinho, Dionísio, era venerado na prática.
Os homens tinham outra maneira de se divertir: concursos com mulheres nuas. O que mais chamava atenção era uma específica parte do corpo, "as nádegas de Vênus", que eram avaliadas e recebiam notas de juízes. Para os mais cultos, o teatro contava histórias picantes. Em Lisístrata, de Aristófanes, a personagem principal convoca as atenienses à greve de sexo enquanto durar a Guerra do Peloponeso. "Nenhum amante se aproximará de mim com ereção", brada uma personagem. "Não erguerei ao teto minhas sandálias persas", berra outra. Desesperados, os guerreiros encerram o conflito.
Atenas deixou o protagonismo na história, mas a sacanagem não. Toda civilização deu um jeito de manifestar seus ímpetos sexuais. Coube aos gregos definir a devassidão. O termo "pornográfico" apareceu pela primeira vez nos Diários de uma Cortesã, em que Luciano narra histórias sobre prostitutas e orgias – a palavra pornographos significa "escritos sobre prostitutas". "Aos poucos, qualificou-se como pornográfico tudo o que descrevia as relações sexuais sem amor", afirma o historiador francês Sarane Alexandrian, em História da Literatura Erótica.
O sentido da palavra mudou. Hoje, nos dicionários, pornografia é a expressão ou sugestão de assuntos obscenos. E por que a maioria de nós gosta de ver pornografia? O proibido e "o buraco da fechadura" podem explicar esse hábito que há mais de 30 mil anos sobrevive a todas tentativas de repressão em nome da moral e dos bons costumes.

Primeiras orgias
O registro mais antigo de um objeto representando o nu é uma peça com aparência nada sensual: a Vênus de Willendorf, encontrada em 1908 na cidade austríaca de mesmo nome, à beira do rio Danúbio, esculpida em calcário por volta do ano 30 000 a.C. Alguns padrões de beleza definitivamente mudaram de lá para cá: a ninfa das cavernas tem peito e quadris enormes, barriga saliente e lábios grossos (veja no quadro ao lado). Há outras peças arqueológicas parecidas, do mesmo período, encontradas na África, Américas e Oceania. Curiosamente, todas com formas exageradas. Provavelmente eram objetos de culto – parte da pornografia da época vinha sob o manto da adoração aos deuses e deusas da fertilidade.
Com o tempo, o homem parou de usar eufemismos religiosos para dar vazão às suas taras. Os romanos já não escondiam os verdadeiros intuitos de seus hábitos. Famosos pelas festas de sexo em banhos públicos, eles decoravam as casas com esculturas eróticas. Luminárias em forma de falo não faltavam numa sala de classe alta – o pênis ereto era considerado símbolo da sorte. Nos muros de Pompéia, arqueólogos encontraram grafites com frases obscenas e desenhos de transas. Nas paredes do templo ao deus da virilidade Príapo, em Roma, os fiéis deixavam textos pornográficos. A decoração inusitada foi idéia do imperador Augusto, que governou entre 27 a.C. e 14 d.C., e gostava de que seus súditos venerassem Príapo. Um dos textos é assinado por uma dançarina, que reza pedindo ao deus: "Que uma multidão de amantes fique excitada como a Sua imagem".
Havia até escritor especializado em vida sexual. Em Ars Amatoria ("A Arte de Amar"), Ovídio descreve, intimamente, seu casamento e suas escapadas: "Feliz daquele que esgota o duelo amoroso! Façam os deuses com que isso seja a causa de minha morte." Ovídio elaborou um guia do sexo em Roma, como os que a revista Playboy publica hoje. Há sugestões de como e onde homens e mulheres da capital do império podem encontrar os mais belos parceiros, como abordá-los e como satisfazê-los. Também sugere como um amante deve proceder na cama para aumentar o prazer do outro, com direito a minúcias de especialista.
Ars Amatoria é contemporâneo a um trabalho semelhante, mas que ganhou fama internacional como estrela maior da pornografia. O Kama Sutra, escrito na Índia no século 2 d.C., tem passagens ainda mais detalhadas que as do livro de Ovídio. Na cultuada coletânea compilada pelo nobre Mallanaga Vatsyayana, há descrições de mais de 500 posições sexuais. O estudioso indiano selecionou textos milenares sobre sexo e fez uma defesa da liberdade sexual. Para ele, o sexo faz parte da criação divina, e por isso precisa ser venerado e praticado. Não é à toa que o livro faz sucesso até hoje.

Pecado capital
No início da Idade Média, por volta do século 6, clérigos católicos listaram a luxúria entre os pecados capitais. Na opinião deles, entregar-se aos prazeres carnais afastava o cristão da redenção espiritual. Aos tarados, sobrou apenas a opção de ouvir os "contadores de história", como eram conhecidos os andarilhos que faziam aparições em tabernas narrando histórias picantes sobre mulheres insaciáveis, defloramento de virgens e orgias.
A tolerância foi diminuindo até que, em 1231, a criação da Inquisição fez sumir da vista de todos a nudez e o sexo. A partir dali, homens e mulheres deveriam ser retratados com túnicas largas e longas. Nem mesmo o menino Jesus podia ser retratado do jeito que veio ao mundo. E os que narravam estripulias sexuais podiam ser condenados à fogueira ou ao exílio.
Foi o que aconteceu com um dos mais criativos autores da Idade Média. O florentino Giovanni Boccaccio, que escreveu o lendário Decameron entre 1349 e 1351, tornou-se uma espécie de Galileu da pornografia, um digníssimo mártir da carne. Seu livro tem cem histórias narradas por sete mulheres e três homens reunidos numa casa isolada, onde contam peripécias de sexo com sátiras à Igreja.
Numa delas, o personagem Filostrato descreve as peripécias de um jardineiro que se finge de mudo para conseguir emprego num convento de freiras. Contratado, ele transa com todas as religiosas. Em outro trecho, um monge seduz uma virgem durante uma prece. Para azar de Boccaccio, entre os poucos que tiveram acesso ao livro na época (adaptado para o cinema pelo italiano Píer Paolo Pasolini, em 1970) estavam alguns clérigos, que o acusaram de heresia. Boccaccio teve de fugir e se isolar no vilarejo de Certaldo, onde morreria em 1375. Só por volta do século 15, já no Renascimento, é que os artistas aproveitariam o afrouxamento do poder católico para deixar escapar uns pelados nas telas. Foi o que fez Sandro Botticcelli na pintura O Nascimento de Vênus, quadro clássico da época, que exibe no centro uma mulher nua e voluptuosa (veja no quadro da página seguinte).

Os libertinos
A tolerância renascentista não durou muito tempo e a censura voltou a operar com força durante a Reforma, no século 16, que tratou de reacender o lado carola do velho continente. Entraram em cena, então, autores "subversivos" que questionavam o moralismo religioso. Na França, em meados do século 18, surgiram os primeiros libertinos, artistas e intelectuais pró-liberdade sexual que se reuniam em organizações secretas como a Sociedade para a Promoção do Vício, Clube do Fogo do Inferno ou Ordem Hermafrodita, onde promoviam leituras ou encenações de livros eróticos que culminavam em orgias. Os franceses tinham à disposição mais de cem desses clubes, alguns com até 400 integrantes entre homens e mulheres.
Oficialmente, o objetivo não era apenas o culto à carne. Quando dava tempo, os participantes também discutiam política. Mais tarde, alguns dos integrantes dessas organizações se juntariam ao pensamento iluminista – o mesmo que lutaria pelo fim da monarquia absolutista na Revolução Francesa. Outros viraram autores que atacavam a nobreza e a moral religiosa. Um deles, Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade, entraria para a história como um ícone da pornografia.
Nascido em 1740, o nobre foi oficial do exército e se casou aos 23 anos. Como libertino que se preze, apaixonou-se pela empregada da casa, Juliette, a quem dedicou o romance que leva o nome dela. Quando Juliette morreu, Sade partiu para a libertinagem desenfreada, nos clubes secretos. Experimentou num deles aquilo que o tornaria célebre – juntar brutalidade ao sexo, prática conhecida mais tarde por sadismo. Acabou preso na Bastilha, acusado de estuprar e açoitar uma mulher de 36 anos e participar de orgias com flagelações. Foi nessa época que escreveu suas obras mais famosas, Os 120 dias de Sodoma e Os Crimes de Amor. Morreu num hospício, um final de vida comum para os pornógrafos do passado. "Sade soube retratar, com precisão, o que acontecia na época. E nesses eventos, os participantes muitas vezes incorporavam práticas de brutalidade e tortura ao sexo", diz a professora da PUC-SP Eliane Robert de Moraes, autora de Marquês de Sade, Um Libertino no Salão dos Filósofos.

Pornografia digital
A fotografia e as máquinas de impressão, que tornavam a produção em série mais barata, deram força à pornografia a partir da segunda metade do século 19. Fotos de modelos nuas e livros ilustrados começaram a ser vendidos nas principais cidades do mundo. A onda chegou ao Brasil por volta de 1870 e ganhou milhares de fãs. No Rio de Janeiro, circulavam centenas de títulos com histórias picantes. "No final do século, metade dos 500 mil habitantes da cidade sabia ler. Muitos compravam livros eróticos importados. Os editores perceberam o filão e lançaram autores nacionais", diz a antropóloga Alessandra El Far, autora de Páginas de Sensação, que conta a trajetória da literatura pornô brasileira entre 1870 e 1924. Os livros que tratavam de sexo, ou "romances para homens", falavam de adultério, padres que largavam a batina, aventuras em prostíbulos ou incestos. Os autores, anônimos, morreram desconhecidos. Mas deixaram alguns títulos históricos – entre os melhores, Memórias do Frei Saturnino; Amar, Gozar, Morrer; As Sete Noites de Lucrécia e o enigmático Camarões Apimentados.
No fim do século, mais uma vez a tecnologia seria peça fundamental para a popularização pornográfica. Agora, a novidade era o cinema. Em 1896, apenas um ano após os irmãos Lumière estrearem seu invento com a exibição de A Saída dos Operários da Fábrica, cineastas já utilizavam a novidade para fins sacanas. Os filmes tinham nomes como Wonders of the Unseen World ("Maravilhas de um mundo não visto") e mostravam strippers tirando a roupa para a câmera. Um escândalo. Com o sucesso – e o lucro – desses filmetes, produtores resolveram ir além e exibir cenas de sexo explícito. Uma das mais antigas de que se têm registro está em Free Ride, de 1915, sobre um sujeito que dá carona em seu calhambeque a duas mocinhas – com quem transaria depois, sob uma árvore. Chamadas de stags films ("filmes para rapazes"), as fitas tinham de 7 a 15 minutos e eram filmadas na França, Estados Unidos e Argentina, um dos primeiros pólos mundiais de produção cinematográfica erótica. Os diretores não aliviavam no repertório de opções: havia sexo oral, lesbianismo e ménage à trois, sempre em cenas reais. A ousadia pode ser explicada porque os censores ainda não haviam atentado para o "perigo da imoralidade pornográfica".
Nas décadas de 1930 e 1940, os americanos aprovaram a primeira lei sobre censura no país e as fitas escassearam. O explícito deu lugar à insinuação. Assim entraram em moda os peep shows, onde o espectador pagava para assistir a um filme com mulheres dançando e tirando a roupa – mas não tudo. Poucos produtores arriscavam e faziam circular fitas de sexo explícito, exibidas em prostíbulos, cinemas clandestinos ou festas de ricaços moderninhos. Eram rodadas na Suécia, que permitia a pornografia.
O clima hippie de paz e amor e as passeatas por mais liberdade sexual nos anos 60 contribuíram para que os fãs dos filmes de sexo explícito pudessem, enfim, ser felizes para sempre – ainda que escondidinhos em cinemas de qualidade duvidosa. Em 1972, pela primeira vez uma produção pornográfica fez sucesso comercial. Era Deep Throat, a Garganta Profunda, história louquíssima de uma ex-engolidora de espadas que tem o clitóris na traquéia e procura solução para o problema transando com o médico, amigos e namorados. O filme arrecadou cerca de 600 milhões de dólares e fez de Linda Lovelace, a atriz principal, uma celebridade.
Linda tinha 23 anos quando filmou Garganta Profunda e recebeu 1 250 dólares de cachê. Ninguém poderia imaginar que, após Linda, as atrizes pornôs seriam multimilionárias e teriam trânsito livre em festas badaladas. Entre as estrelas da pornografia, ninguém supera a húngara radicada na Itália Ilona Staller, a Cicciolina. Em 1987, após fazer campanha mostrando os seios, ela foi eleita deputada. No Parlamento, defendeu projetos como a liberação da pedofilia e atuou entre militantes pela paz. Na primeira Guerra do Golfo, ofereceu uma solução ao seu estilo para o conflito: transar com George Bush e Saddam Hussein. "Um de cada vez!", dizia.
Muito do sucesso de Cicciolina aconteceu graças à invenção do videocassete. A conexão é simples: com as fitas em VHS, os apreciadores do pornô não precisavam mais se expor na porta de salas sujas e lotadas. Podiam se divertir na privacidade de casa. "Com a chegada do vídeo, o pornô passou a ser produzido em larga escala, como uma linha de montagem. E isso marcou uma transformação significativa do produto", diz Nuno César Abreu, autor do livro O Olhar Pornô. O videocassete também barateou a produção pornô e fez o mercado erótico se multiplicar. Milhares de fitas com cenas de sexo, nas mais variadas modalidades, lotaram as locadoras. Hoje, estima-se que o mercado de DVDs, fitas VHS e canais de TV a cabo pornô movimente, anualmente, cerca de 14 bilhões de dólares no mundo – equivalente às vendas anuais de armamentos dos Estados Unidos.
O maior símbolo da fase "erótico em casa" é o americano John Stagliano, o Buttman (ou o "homem-bunda"). Dono de um império comercial, ele inventou um gênero conhecido como "porno-humorístico", em que manipula a câmera e, com ela ligada, conversa e faz piadinhas com os atores em cena. Muitas vezes, sai dos bastidores e participa da ação. A fórmula fez de Stagliano o maior vendedor mundial de filmes nas duas últimas décadas, lançando títulos como Exercícios de Buttman, As Férias Européias de Buttman e Buttman Vai ao Rio – ele adora filmar no Brasil, apesar de ter contraído aqui o vírus HIV. Buttman ficou milionário e sua empresa, a Evil Empire, é umas das gigantes do gênero, editando revistas e distribuindo filmes dele e de outros diretores para o mundo todo. "Sou um voyeur incansável. Adoro mostrar o sexo desse jeito divertido", costuma dizer. Será que os gregos gostariam desse estilo?

1. Esculpida no Paleolítico, a primeira imagem erótica conhecida mostra uma deusa da fertilidade com seios, coxas e nádegas fartas
2. Na Grécia antiga, famílias decoravam a casa com cenas de sexo, como nesta ânfora do século 5 a.C.
3. Escrito originalmente no século 2 a.C., o Kama Sutra compilou pelo menos 500 posíções sexuais praticadas pelos nobres indianos
4. O Renascimento foi uma fase de tolerância aos nus após as "trevas" da Idade Média. Boticelli pintou O Nascimento de Vênus, obra-prima da época
5. A imagem de autor anônimo ilustrou um livro no século 18, quando os libertinos franceses começaram a escrever, debater – e viver – a pornografia
6. Pôster de Garganta Profunda, primeiro sucesso comercial pornô. O filme sobre uma engolidora de espadas com o clitóris na traquéia faturou 600 milhões de dólares

Na livraria:
Erótica: Antologia Ilustrada da Arte e do Sexo - Charlotte Hill e William Wallace, Ediouro, 2003
Páginas de Sensação – Literatura Popular e Pornográfica no Rio de Janeiro - Alessandra El Far, Companhia das Letras, 2004
O Olhar Pornô - Nuno César Abreu, Mercado de Letras, 1996
O que é Pornografia - Eliane Moraes e Sandra Lapeiz, Abril Cultural/Brasiliense, 1985
Revista Superinteressante

O que é o tempo?


Alexandre Versignassi

Se não me perguntarem, eu sei o que é. Se tiver de explicar para alguém, não sei. O problema é que o passado não está mais aqui, o futuro ainda não chegou e o presente voa tão rápido que parece não ter extensão alguma. Aliás, se o presente só surge para virar passado, não daria pra dizer que o tempo é uma caminhada rumo à não-existência?
Santo Agostinho, Bispo do século 5. Famoso por ter adaptado o pensamento da grécia antiga ao cristianismo.

É o jeito que a natureza deu para não deixar que tudo acontecesse de uma vez só.
John Wheeler, Um dos maiores físicos do século 20.

Uma ilusão. A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão.
Albert Einstein

Não há fluxo. Os eventos, independentemente de quando ocorram, simplesmente existem. Todos existem. Eles ocupam para sempre o seu ponto particular no espaço-tempo. Se você estava se divertindo a valer no réveillon, você ainda está lá, pois esta é uma das localizações imutáveis do espaço-tempo.
Brian Greene, Físico americano da universidade de Colúmbia e autor best seller de divulgação científica. Aqui o professor explica do jeito dele o ponto de vista de Einstein.
Revista Superinteressante

Caça aos comunistas


Tela: "Las manos del terror", do pintor Oswaldo guayasamín.

Cíntia Cristina da Silva


Eram os anos 50 e, em meio à guerra fria, os EUA entraram em histeria contra o perigo vermelho. Qualquer opinião pró-União Soviética ou simpatia ao comunismo rendia convite para esclarecimentos diante de uma comissão parlamentar. E do outro lado da mesa poderia estar o senador Joseph McCarthy, um homem que se orgulhava de caçar cidadãos em "atividades antiamericanas".
Em 1953, o apresentador Edward R. Murrow, do programa See It Now, da CBS, resolveu enfrentar o senador e exibir o caso de Milo Radulovich, expulso do Exército sem direito a defesa por se recusar a denunciar o pai e a irmã como comunistas.
Os bastidores do programa são o tema do filme Boa Noite e Boa Sorte – o título é referência ao bordão de despedida de Murrow. Mesmo morto há meio século, McCarthy tem papel de destaque: ele aparece vociferando contra Murrow, sempre em imagens de arquivo gravadas na época.
Filmado em preto-e-branco, Boa Noite e Boa Sorte é dirigido por George Clooney, que, entre um blockbuster e outro, encarna um dos melhores atores engajados do cinema. Faz filmes sobre o petróleo (o elogiado Syriana, inédito no Brasil) e a Guerra do Golfo (Três Reis), mas está longe de ser comunista. Nos anos 50, quando McCarthy elegeu Hollywood como alvo, astros como ele provavelmente seriam chamados para um papo com o senador – e talvez saíssem da conversa banidos do cinema.

• Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas foi para Hollywood investigar a indústria cinematográfica. Entrevistou mais de 40 pessoas que apontaram colegas de esquerda. O diretor Elia Kazan, de Sindicato de Ladrões, ele mesmo ex-membro do PC, ficou conhecido como um dos mais notórios delatores.

• O roteirista Dalton Trumbo preferiu se calar e foi colocado na lista negra. Proibido de trabalhar, mudou-se para o México e começou a escrever sob pseudônimos. Às vezes, usava a assinatura de amigos. Um de seus roteiros, A Princesa e o Plebeu, ganhou o Oscar de 1953. Mas quem levou a estatueta foi Ian McLellan Hunter, que emprestara o nome para os créditos.

• Inspirado no macarthismo, o dramaturgo Arthur Miller escreveu As Bruxas de Salem (1953). Na peça, um grupo de garotas inventa culpados e denuncia inocentes para se livrar de uma acusação de bruxaria. Miller escreveu o texto pouco após uma conversa com Elia Kazan em que o diretor afirmou que ia cooperar com o senador McCarthy para continuar a fazer filmes.
Revista Superinteressante

História das drogas


O homem tem uma longa história de convivência com psicotrópicos - há milênios eles são usados desde em ritos indígenas até animadas festas romanas. Conheça a trajetória das principais drogas na nossa cultura
Texto Marco Antônio Lopes


Há cerca de 5 mil anos, uma tribo de pigmeus do centro da África saiu para caçar. Alguns deles notaram o estranho comportamento de javalis que comiam uma certa planta. Os animais ficavam mansos ou andavam desorientados. Um pigmeu, então, resolveu provar aquele arbusto. Comeu e gostou. Recomendou para outros na tribo, que também adoraram a sensação de entorpecimento. Logo, um curandeiro avisou: havia uma divindade dentro da planta. E os nativos passaram a venerar o arbusto. Começaram a fazer rituais que se espalharam por outras tribos. E são feitos até hoje. A árvore Tabernanthe iboga, conhecida por iboga, é usada para fins lisérgicos em cerimônias com adeptos no Gabão, Angola, Guiné e Camarões.
Há milênios o homem conhece plantas como a iboga, uma droga vegetal. O historiador grego Heródoto anotou, em 450 a.C., que a Cannabis sativa, planta da maconha, era queimada em saunas para dar barato em freqüentadores. "O banho de vapor dava um gozo tão intenso que arrancava gritos de alegria." No fim do século 19, muitos desses produtos viraram, em laboratórios, drogas sintetizadas. Foram estudadas por cientistas e médicos, como Sigmund Freud.
Somente no século 20 é que começaram a surgir proibições globais ao uso de entorpecentes. Primeiro, nos EUA, em 1948. Depois, em 1961, em mais de 100 países (Brasil entre eles), após uma convenção da ONU. Segundo um relatório publicado pela entidade em 2005, há cerca de 340 milhões de usuários de drogas no planeta. Movimentam um mercado de 1,5 trilhão de dólares. "Ao longo da história, as drogas tiveram usos múltiplos que alimentaram e espelharam a alma humana", diz o professor da USP Henrique Carneiro, autor de Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas. Elas deram origem a religiões, percorreram o planeta com o comércio, provocaram guerras, mudaram a cultura, música e moda. Acompanhe agora uma viagem pela história das substâncias mais famosas.

Ayahuasca
Índios da bacia Amazônica tomam esse chá alucinógeno há mais de 4 mil anos – um hábito que chamou a atenção de portugueses e espanhóis assim que eles desembarcaram por aqui, no século 16. Ao chegarem à Amazônia, padres jesuítas escreveram sobre o chá da "poção diabólica" e as cerimônias que os indígenas realizavam depois de consumir o ayahuasca. Durante todo esse tempo, a bebida provavelmente teve a mesma receita: um cozido à base de pedaços do cipó Banisteriopsis caapi.
O nome quem deu foram os índios quíchuas, do Peru. Ayahuasca quer dizer "vinho dos espíritos" – segundo eles, o chá dá poderes telepáticos e sobrenaturais. Mas os quíchuas são apenas um dos 70 povos na América Latina que tomam o chá com freqüência. Na maioria dos casos, o chá é visto como uma divindade. Mas a ayahuasca também serve ao prazer: ao final dos rituais, muitos índios transam com suas parceiras.
No século 20, a fama do chá correu o mundo. Escritores viajavam para a América do Sul, enfrentavam o calor e a umidade e dormiam em aldeias para ter experiências alucinógenas. Entre os pirados estavam o poeta beatnik William Burroughs. Burroughs esteve no Brasil e na Colômbia, em 1953. Quando voltou aos EUA escreveu o livro Cartas do Yagé (yagé é outro nome do chá, tomado na periferia de Bogotá). "Uma onda de tontura me arrebatou. Brilhos azuis passavam em frente de mim", escreveu. Depois, recomendou a bebida ao amigo Allen Ginsberg, que veio para a Amazônia em 1960. Hoje o chá é tão divulgado na internet (mais de 400 mil sites) que existem até pacotes turísticos vendidos por entidades clandestinas. A pessoa paga hotel, avião e visitas a tribos que fazem o culto. O custo: entre 1 000 e 1 300 dólares.

Cacto peiote
Cerca de 10% das mais de 50 espécies de cacto têm propriedades alucinógenas. A mais conhecida é a Lophophora williamsi, que brota em desertos no sul dos EUA e norte do México. É usada em rituais há 3 mil anos e cerca de 50 comunidades indígenas a consideram sagrada. Os huichois, do norte do México, chegam a fazer uma peregrinação anual de mais de 400 km para colhê-la. Quando a encontram, fazem um ritual: em silêncio, agem como se estivessem diante de um cervo, até lançarem uma flecha na planta. Quando voltam com o peiote para a tribo, organizam rituais e celebrações sob efeito da droga.
Algumas tribos da região, no entanto, descobriram os poderes do peiote somente no século 19. "Depois da Guerra Civil Americana, os índios comanches e os navajos viveram uma terrível crise com o extermínio dos seus búfalos e os massacres que sofreram", conta o pesquisador da USP Henrique Carneiro. Para amenizar a fase difícil, "aderiram ao consumo religioso do peiote". Numa das cerimônias, chamada "dança fantasma", os índios dançavam alucinados e diziam se comunicar com os mortos.
O escritor inglês Aldous Huxley tomou a mescalina, substância do cacto. Descreveu as viagens no livro As Portas da Percepção: "Foi como tirar férias químicas do mundo real". Mas nem só o underground era seduzido pela droga. O físico inglês Francis Crick – que em 1953 descobriu a estrutura do DNA – provou o peiote várias vezes e gostou. Em 1967, quando lançou o livro Of Molecules and Men ("Sobre Moléculas e Homens", sem tradução em português), o cientista colocou na epígrafe a frase "Este é o poderoso conhecimento, sorrimos com ele", tirada do poema Peyote Poem, do escritor e doidão Michael McClure.

Cocaína
Quando chegaram à América, os espanhóis perceberam que os índios da região tinham adoração pela folha da coca. Pragmáticos, passaram a distribuí-la aos escravos para estimular o trabalho. Acontece que os brancos também tomaram gosto pela coisa. E as folhas foram parar na Europa.
No Velho Continente, a planta era utilizada na fabricação de vinhos. Um deles, o Mariani, criado em 1863, era o preferido do papa Leão 13, que deu até medalha de honra ao produtor da bebida. Foi nessa mesma época que o químico alemão Albert Niemann isolou o alcalóide cloridrato de cocaína. Como tantos outros cientistas que você vai conhecer nesta reportagem, ele usou o corpo como cobaia: aplicou a droga na veia e sentiu a força do efeito.
O psicanalista Sigmund Freud investigou o uso da droga. Achava que ela serviria como remédio contra a depressão e embarcou na experiência: "O efeito consiste em uma duradoura euforia. A pessoa adquire um grande vigor". Até que um dos pacientes, Ernst Fleischl, extrapolou e morreu de overdose. Freud, então, abandonou a droga.
Era normal laboratórios fazerem propaganda sobre a cocaína. Dizia-se que era "excelente contra o pessimismo e o cansaço" e, para mulheres, dava "vitalidade e formosura". Somente no começo do século 20 é que políticos puritanos começaram a lutar pela proibição da droga, que praticamente sumiu do país. Só voltaria no fim da década de 1970, quando a cocaína refinada na Bolívia e Colômbia entrou nos EUA. E, mesmo proibida, não saiu mais.

Crack
Feita pela mistura da pasta de cocaína com bicarbonato de sódio, leva em segundos a um estado de euforia intenso que não dura mais do que 10 minutos. Assim, quem usa quer sempre repetir a dose. O nome crack vem desse efeito rápido, que surge como estalos para o usuário.
O consumo de crack explodiu no meio dos anos 80, como alternativa barata à cocaína. Mas a droga aparecia também em festas de universitários e até de políticos. Um desses casos ficou famoso. Em janeiro de 1990, o prefeito de Washington, Marion Barry, foi preso numa operação do FBI quando estava num quarto de hotel com uma antiga namorada, cooptada pelos policiais. Assim que ele começou a usar crack, os agentes entraram no lugar e o prenderam. Barry renunciou e ficou detido por 6 meses numa prisão federal.
Em São Paulo, o crack ainda hoje é a droga mais vendida em favelas e entre os sem-teto. No Rio, demorou muito mais para circular. "A disseminação do crack é fruto de ação do vendedor de cocaína no varejo, que produz as pedras em casa. No Rio, a estrutura do tráfico não permitia essa esperteza", afirma Myltainho Severiano da Silva, autor de Se Liga! O Livro das Drogas. Quem vendia crack era assassinado. Mas, em crise por causa de apreensões de drogas pela polícia, os chefões do tráfico passaram a permitir a venda de crack no Rio no fim da década de 1990.

Cogumelos
Existem cerca de 30 mil tipos de cogumelos no mundo, mas só 70 provocam viagens. São os cogumelos alucinógenos, com alcalóides que, quando ingeridos, dão barato. Um segredo, aliás, há tempos conhecido pelo homem: 5 mil anos atrás o cogumelo Amanita muscaria já era colhido ao pé de carvalhos no norte da Europa e na Sibéria. Quando não o encontravam, os nativos da região bebiam até a urina de renas que comiam o cogumelo, para assim conseguir o efeito entorpecente.
No Império Romano, o cogumelo utilizado era outro, o caesarea, consumido com vinho em festas que terminavam em orgias. Outra espécie, Claviceps pupurea, que nasce de parasitas do centeio, fez sucesso por acaso em regiões da Itália durante a Idade Média. Em algumas aldeias, os pães eram feitos com farinha do centeio onde o fungo crescera. Sob o efeito do cogumelo, as pessoas dançavam sem parar em festas. Os sábios, que não sabiam que era o pão que dava barato, diziam que a euforia era causada pela picada de uma aranha. Deram a essa sensação o nome de "tarantismo" (de tarântula). Dessas festas teria surgido uma dança famosa – a tarantela.
No hemisfério sul, a variedade mais comum é o psilocybe que nasce nas fezes do gado. A mesma espécie aparece na América Central, onde arqueólogos encontraram esculturas em forma de cogumelo misturadas com figuras humanas. Datam de 500 a.C. e estão em El Salvador, Guatemala e México.

Maconha
A Cannabis sativa, originária da Ásia Central, é consumida há mais de 10 mil anos. Os primeiros sinais de uso medicinal do cânhamo, outro nome da planta, datam de 2300 a.C., na China, numa lista de fármacos chamada Pen Ts’ao Ching – um estudo encomendado pelo imperador Chen Nong (a maconha servia tanto para prisão de ventre como para problemas de menstruação). Na
Índia, por volta de 2000 a.C., a Cannabis era considerada sagrada.
A planta apareceu no Brasil com escravos africanos, que a usavam em ritos religiosos. O sociólogo Gilberto Freyre anotou isso no clássico Casa Grande & Senzala, de 1933: "Já fumei macumba, como é conhecida na Bahia. Produz a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música nos ouvidos". No Brasil, até 1905, podia-se comprar uma marca de cigarros chamada
Índios. Era maconha com tabaco. Na caixa, um aviso curioso: "Servem para combater asma, insônia e catarros".
No século 19, a erva foi receitada até para a rainha inglesa Vitória. Ela fez um tratamento à base de maconha contra cólicas menstruais, indicado pelo médico do palácio. Hoje, há uma cultura em torno da droga que se mantém com revistas especializadas, sites e ongs defendendo seu uso. A maconha tem até torneio anual, na Holanda: a Cannabis Cup, que avalia a qualidade da droga de todos os continentes. O país, aliás, não permite o comércio livre da erva. A droga pode ser vendida apenas nos coffee shops e o limite por pessoa é de 5 gramas – suficiente para 5 cigarros.

Haxixe
A pasta formada pelas secreções de THC, princípio ativo da maconha, é consumida há milênios na Ásia – na China, foram encontrados registros de seu uso medicinal em 2500 a.C. Mas foi o comércio de especiarias que fez do haxixe uma droga "global". Acredita-se que por volta de 2 d.C. a substância seguiu para o norte da África e Oriente Médio pelas mãos de comerciantes que iam ao Oriente em busca de especiarias. Eles recebiam haxixe como cortesia nas operação de compra e venda.
O nome, no entanto, vem do árabe – hashish significa "erva seca". Ficou conhecido assim quando Hassan bin Sabbab, líder de uma seita xiita da Pérsia no século 11, reuniu seguidores numa fortaleza para matar soldados das Cruzadas. Antes de entrar em ação, usavam a droga. Os homens de Hassan, conhecido como Velho da Montanha, eram chamados de aschinchin – alguém sob influência do haxixe. Daí derivou a palavra assassin, ou assassino.
A droga se espalhou pela Europa no século 18. O poeta francês Charles Baudelaire e seus amigos escritores Alexandre Dumas e Victor Hugo se reuniam para fumá-la. Baudelaire gostava tanto de haxixe que fazia parte de uma ordem, a Club des Haschichiens. Nos encontros, além de usar haxixe, os participantes tinham um estranho ritual: exaltar Hassan bin Sabbab. Todos vestiam roupas árabes e um dos integrantes era eleito o Velho da Montanha.

Ecstasy
Em 1912, um químico que investigava moderadores de apetite para a empresa alemã Merck desenvolveu uma droga de nome impronunciável: metilenedioxianfentamenia, ou MMDA. Experimentou, sentiu uma leve euforia, mas arquivou a descoberta. Na década de 1960, o cientista americano Alexander Shulguin procurava um remédio que estimulasse a libido. Encontrou os papéis da pesquisa da Merk e incluiu o MMDA na lista de mais de 100 substâncias que ele testou em tratamentos psiquiátricos. A que fez mais sucesso foi justamente a MMDA, que ganhou a fama de "droga do amor". Os pacientes diziam que ela os ajudava a ser mais carinhosos – hoje, sabe-se que a droga estimula a produção de serotonina no cérebro, responsável pela sensação de prazer.
Não surpreende, portanto, o nome que fez a substância famosa: "ecstasy", de êxtase mesmo. Em 20 anos, as pastilhas da droga estavam circulando nas ruas. Eram combinadas com o som da música eletrônica em festas chamadas raves, que atravessavam o dia e só terminavam à tarde. Em 1988, o êcstasy foi a febre no verão inglês, que acabou batizado de Summer of Love, ou "verão do amor" , mesmo nome que os hippies deram ao ano de 1967, quando eles se entupiram de LSD. A comparação não era exagerada: as duas drogas estiveram por trás de boa parte da produção cultural jovem de suas épocas.

Heroína
A substância foi descoberta em 1874, a partir de um aprimoramento na fórmula da morfina. Os trabalhos de pesquisa nessa área já haviam levado, por exemplo, à invenção da seringa, criada em 1853 por um cientista francês que procurava maneiras de melhorar a aplicação da morfina. Batizado de heroína, o novo remédio começou a ser vendido em 1898 para curar a tosse. A bula dizia: "A dose mínima faz desaparecer qualquer tipo de tosse, inclusive tuberculose". O nome fazia referência às aparentes capacidades "heróicas" da droga, que impressionou os farmacêuticos do laboratório da Bayer.
Logo descobriram também que, injetada, a heroína é uma droga de efeito veloz, poderoso e que provoca dependência rapidamente. Viciados em crise de abstinência têm alucinações, cólicas, vômitos e desmaios. Assim, a heroína teve sua comercialização proibida em 1906, nos EUA. Em 1913, o fabricante alemão parou de produzi-la, mas ela manteve intensa circulação ilegal na Europa e, principalmente, na Ásia. A droga voltou a aparecer nos EUA somente no começo dos anos 70, quando soldados servindo na Guerra do Vietnã começaram a consumi-la com asiáticos. Estima-se que cerca de 10% dos veteranos voltaram para casa viciados. .

LSD
O químico alemão Albert Hofmann trabalhava no laboratório Sandoz, em 1938, investigando um medicamento para ativar a circulação. Testava a ergotamina, princípio ativo do fungo do centeio, que ele sintetizou e chamou dietilamida. Tomou uma dose pequena e sentiu um efeito sutil. Somente em 19 de abril de 1943 Hofmann resolveu testar uma dose maior. O químico, então com 37 anos, voltou para casa de bicicleta. Teve a primeira viagem de ácido de que se tem notícia: "Vi figuras fantásticas de plasticidade e coloração", contou. Apresentou o LSD (iniciais em alemão de ácido lisérgico) a amigos médicos. Hofmann hoje tem 100 anos e é um dos integrantes do comitê que escolhe o Prêmio Nobel.
O americano Timothy Leary se encarregou de ser um dos embaixadores do LSD pelo mundo. Doutor em psicologia clínica de Harvard, ministrava a droga para seus pacientes e a recomendava a alunos do campus – até ser expulso pela universidade, em 1963. Na época a cidade de São Francisco começava a se tornar capital da cultura hippie. Uma das principais atrações eram shows de rock para uma platéia encharcada de ácido fabricado em laboratórios clandestinos. Os freqüentadores pregavam o amor livre, a vida em comunidade e veneravam religiões orientais. O lema deles você conhece: "paz e amor".
Em 1967, o movimento era capaz de reunir até 100 mil pessoas num parque. As farras lisérgicas muitas vezes acabavam em sexo coletivo. Não é à toa que o ano tenha entrado para história como Summer of Love, o "verão do amor".

Ópio
O suco leitoso tirado da papoula branca é consumido há cerca de 5 mil anos no sudoeste da Ásia, em ilhas do Mediterrâneo e no Oriente Médio. Fez parte até da mitologia grega – era usado para venerar a deusa Demeter. A lenda dizia que, após ter sua filha Proserpina raptada, Demeter passou a procurá-la. Encontrou e comeu sementes de papoula, diminuindo a dor da perda. A imagem da deusa, então, ficou ligada à papoula – e rituais em sua homenagem incluíram o uso da droga. O nome ópio vem do grego opin, ou suco. A chegada da civilização romana não diminuiu a sua popularidade, inclusive para fins medicinais. "O ópio era a aspirina de seu tempo. No ano 312, havia na cidade de Roma 793 estabelecimentos que o distribuíam", afirma Antonio Escohotado, em O Livro das Drogas.
Na época das navegações, a Inglaterra chegou a monopolizar a venda mundial de ópio. Entre os principais importadores estava a China, apesar de o produto ser proibido lá desde 1729. A luta contra o contrabando levou a um conflito militar entre os dois países, que durou de 1839 a 1842 e ficou conhecido como Guerra do Ópio. Os ingleses venceram e obrigaram a China a permitir o comércio da droga. Ficaram também com o território de Hong Kong, que só foi devolvido em 1997.

Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas - Henrique Carneiro, Elsevier, 2005
O Livro das Drogas - Antonio Escohotado, Dynamis, 1995
Se Liga! O Livro das Drogas - Myltainho Severiano da Silva, Record, 1997
Álcool e Drogas na História do Brasil - Org. Renato Pinto Venâncio e Henrique Carneiro, Alameda e PUCMinas, 2005
http://www.neip.info/
http://www.erowid.org/psychoactives/psychoactives.shtml

Revista Superinteressante