sexta-feira, 3 de junho de 2011

Literatura portuguesa: Trauma de 1974



Gilberto Freyre viajou pelas colônias portuguesas e notou semelhanças delas com a formação da sociedade brasileira, sintetizada no equilíbrio de contrários e na facilidade de adaptação do colonizador europeu nessas terras no novo mundo. O encanto foi enorme, e ele acabou formulando a utopia de império luso-tropical, sob o comando naquele momento, os anos 1940 e 1950, do ditador Antonio Salazar. Foi o encontro dos tradicionalismos de Portugal e do Brasil. Por sorte, a utopia delirante naufragou tal qual a uma jangada de pedra e o salazarismo morreu em abril de 1974.

A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, rompeu com o liberalismo extremamente conservador, criado nos anos 1930, que transformou Portugal no país mais atrasado da Europa e detentor de colônias na África e na Ásia. Essa história está bem contada em “A Revolução dos Cravos”, de Lincoln Secco, e “O Império derrotado”, de Kenneth Maxvell. Os salazaristas perderam não apenas o controle do governo português, como também assistiram à onda de libertação nacional com a descolonização de países como Angola e Moçambique.

O pós-1974 provocou um despertar do romance português nos anos seguintes. José Saramago, que lançara o livro “Terra do pecado” em 1947, demorou 30 anos para retomar a carreira de romancista com “Manual de pintura e caligrafia” (1977). Segundo Eduardo Lourenço, os acontecimentos de abril trouxeram uma crise de identidade de cultura e a vontade de “desenhar um outro mapa” para saber “em que país estávamos, que país, nos tínhamos tornado com a perda desse Império que nós pensávamos que fazia parte integrante da História portuguesa há séculos”.

É no novo período que se desenvolveram a obra de Saramago (na verdade, renascida após 1974) e António Lobo Antunes. Cada qual a sua maneira, ambos buscaram a História, a experiência e a memória para entender a situação da sociedade e do indivíduo traumatizado naqueles tempos. Na década de 1980, o primeiro escreve “Levantado do chão”, “Memorial do convento” (a longínqua história da construção do convento de Mafra), “Jangada de pedra” e “História do cerco a Lisboa”. O que vai ficar de fora desse projeto é a narrativa da descolonização, que será uma das questões centrais de livros de Lobo Antunes, como “Esplendor em Portugal” (1997).

“O que Saramago tentou fazer depois [de Memorial do Convento], com as diversas obras que escreveu, foi inventar um outro passado para Portugal, mesmo um Portugal-Outro”, assinala Eduardo Lourenço, num ensaio do livro-coletânea “A escrita e o mundo em António Lobo Antunes” (2003). As narrativas históricas de Saramago alcançaram ampla repercussão internacional e, nos últimos anos, deram lugar a trabalhos que enfocam mais os problemas contemporâneos.

Lobo Antunes era médico psiquiatra nos últimos anos da catástrofe da colonização portuguesa. Os tempos difíceis em Angola estão documentados no livro “D´este viver aqui neste papel descripto – cartas de guerra” (2005), organizado por suas filhas Maria José e Joana. De volta do apocalipse africano, o autor mistura a vida cotidiano em Lisboa e as cicatrizes lembradas do trabalho como médico na colônia num imenso romance, que seria publicado em três livros separados: “Memória de elefante” (1979), “Os cus dos judas” (1979) e “Conhecimento do inferno” (1979).

O trauma da Revolução dos Cravos aparece em “Fado alexandrino” (1983), no qual Lobo Antunes reúne quatro militares numa mesa de bar para relembrar o ocorrido em abril de 1974. Com esses trabalhos, Saramago e Lobo Antunes criaram um novo imaginário português e alargaram o horizonte para as colônias. E é da África portuguesa e pós-colonial que surgem os nomes renovadores e estimulantes de Pepetela, Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Luandino Vieira. Eles narram as catástrofes deixadas pelo salazarismo e a tentativa de se criar uma cultura autônoma.

Revista Bula

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