A dívida em relação ao passado se impõe. Somos solicitados a honrar uma certa memória para que sejamos responsáveis por ela, porém o convite tende a metamorfosear-se em imperativo e a responsabilização em culpa
por Samuel Tomei
Como divindades infernais encarregadas da vingança dos deuses, os editorialistas, especialistas e políticos convocam constantemente a História a serviço de uma moral ameaçadora. Periodicamente, colocam-nos alerta, por exemplo, contra o aparecimento de um novo Hitler: Gamal Abdel Nasser, em 1956, Saddam Hussein, em 1991, e mais recentemente Slobodan Milosevic. Contudo, na história, a comparação nem sempre tem, necessariamente, a força da razão. Na época da intervenção em Kosovo, nossos arautos repetiam, como papagaios, propagandas imutáveis, sem demonstrarem lembrar grande coisa das supostas lições do passado. O moralismo fundado sobre a história, nas mídias ocidentais, é exatamente o contraponto à "Voz da Rússia", monoliticamente pró-Sérvia.
Se a tentativa de instituir o passado como guia de boa conduta para o presente demonstra uma intenção louvável, o apelo ao dever de memória, que supostamente nos responsabiliza pelo que permitiria compreender a realidade, conduz à discordâncias.
Desvios do dever de memória Segundo Paul Ricoeur, a exortação de Israel ? Izkor (Lembra-te) ? é uma invocação, não uma ordem. Da invocação à lembrança, se passaria pela intimação
A prática do dever de memória é indispensável à manutenção da unidade de um grupo, conferindo-lhe coerência de valores, normas comuns. Sua invocação baseia-se na moral; a memória comum é nosso código. O dever de memória invoca a religião. Ora, como observa Serge Bernstein: "Qualquer sistema que deseje atingir uma certa estabilidade deve resgatar algo de religioso1" Nesse contexto, podemos entender o "religioso" nos dois sentidos que sugere a etimologia ambivalente do termo. Religioso no sentido de relegere (Cícero), tornar a ler o passado, e também reler no sentido de reinterpretar: a causa é, aqui, a manutenção da coesão social através da definição de uma identidade comum ? religare, religar (Lucrécio). O dever de memória, ou culto de uma memória que nos deve ser comum, é, do ponto de vista de qualquer poder, o princípio de coesão por excelência. A memória coletiva deve, para constituir-se, ser inteligível e libertar-se de qualquer trabalho crítico, sob pena de perder sua função: "Ela escolhe o que lhe interessa na matéria histórica" ? escreve Mona Ozouf2 - "dando-se o direito de isolar tal episódio revelador, de fixar-se em núcleos temporais, e ao mesmo tempo ignorar longas seqüências." Logo, ela também se estabelece através de silêncios obrigatórios3. Ela homogeneíza e tende a dissolver o indivíduo no grupo.
Segundo Paul Ricoeur, a dívida em relação ao passado se impõe; ele salienta que a exortação de Israel ? Izkor (Lembra-te) ? é uma invocação, não uma ordem. Ora, da invocação à lembrança, teríamos passado à intimação4. Somos solicitados a honrar uma certa memória a fim de sermos responsáveis por ela, porém o convite tende a metamorfosear-se em imperativo e a responsabilização em culpa. Os desvios recentes do dever de memória foram analisados e denunciados com força e fineza por Pierre Nora e Henry Rousso: "Quando o dever de memória se transforma em moral de substituição, e pretende erigir em dogma a consciência permanente, imprescritível e universal do crime cometido, chega a um impasse. [...] A moral, ou melhor, o moralismo, não combina com a moralidade histórica. Para conservar sua força de edificação, o dever de memória acaba falsificando os fatos [...].5"
Colonização a ferro e fogo Se os intelectuais denunciam as distorções da "realidade histórica", eles defendem uma memória tão seletiva e moralizadora quanto a que rejeitam
Ora, ainda que alguns intelectuais denunciem as distorções que o dever de memória impõe à "realidade histórica", eles o fazem para defender uma memória não menos seletiva e tão moralizadora quanto a que rejeitam. Condenam a mistificação da memória republicana, por exemplo ? que não pode ser negada ?, menos para buscar uma aproximação com a verdade do que para degradar a República em seu princípio.
Dois exemplos: dever de memória em relação aos povos oprimidos por uma República colonizadora amnésica; e dever de memória em relação a povos reprimidos por uma República jacobina.
As revelações do general Aussaresses admitindo ter torturado na Argélia causaram indignação, e com justa razão. Só poderíamos acolher seu testemunho com repulsa, ainda que confirme o que é amplamente conhecido e denunciado desde a época em que os fatos ocorreram6. Esse caso permitiu que alguns comentaristas provocassem uma discussão mais ampla sobre o colonialismo francês, considerado como um "impensado da história da França", como se não fosse abundante a literatura sobre a questão. A lógica é simples: a República colonizou a ferro e fogo, ultrajou seus princípios e deve arrepender-se; ela está desqualificada.
A "culpabilização" hipócrita
A realidade é menos simples. O colonialismo não nasceu com a República. E, se o direito e o dever das raças pretensamente "superiores" de civilizar as raças supostamente "inferiores" encontraram um advogado apaixonado em Jules Ferry ? cujo governo caiu devido à questão colonial ? devemos lançar ao esquecimento a tradição, ainda que minoritária, porém combativa, de um anticolonialismo arraigadamente republicano? Basta lembrar o longo discurso de Georges Clemenceau em 30 de julho de 1885, que combate o argumento vazio do princípio da colonização: "Não, não existe o direito de nações supostamente superiores contra nações inferiores." E o chefe radical coloca-se na mesma linha dos revolucionários de 1789: de 7 a 15 de maio de 1791, a Constituinte debateu as colônias e concedeu direitos políticos aos homens de cor nascidos de mães livres. Em 16 do Pluvioso7 do ano II (4 de fevereiro de 1794), a Convenção aboliu a escravidão, restabelecida, depois, por Bonaparte, em 1802. E a Constituição Republicana de 1848 proclamou: "A República não pretende mais fazer distinções entre a família humana."
As recentes revelações do general Aussaresses permitiram que alguns comentaristas provocassem uma discussão mais ampla sobre o colonialismo francês
Marc Ferro acentua a existência "de um escândalo da colonização. Na Indochina, na África, a República traiu seus valores. [?] Contudo" ? acrescenta ? "hoje reina uma espécie de "culpabilização" que me choca ainda mais pela reação de uma parte da opinião pública, que reage como se tudo lhes houvesse sido escondido. Não é verdade. Nos manuais da minha geração, no período entre guerras, estava escrito com todas as letras que, na Argélia, Bugeaud queimava os douars8 em massa e que Gallieni, em Madagascar, passava vilarejos inteiros a fio de espada."
A vez do colonialismo interno
Segundo o coordenador dos Annales, se a integração não existia socialmente, professores, mestre-escolas e médicos, "realizaram uma obra de que não têm do que se envergonhar9". Da mesma forma, Charles-Robert Ageron dedica-se minuciosamente a desconstruir "esse falso mito da Exposição de 1931, lugar de memória da República e apogeu da idéia colonial republicana. O esquecimento, a ignorância, a nostalgia, e até, para algumas pessoas, a habilidade política, puderam tornar essa fábula crível10". Mais uma vez, o dever de memória a que somos levados não passa do negativo da memória colonial, limitando-se a apresentar os supostos benefícios da expansão francesa. A moral que daí se depreende não tem nada de melhor.
Depois de incriminar a expansão externa, faz-se o mesmo com o colonialismo interno. De forma que, principalmente a partir da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, cresce a propensão de fustigar um certo jacobinismo republicano em nome da memória das minorias regionais oprimidas; alguns historiadores, como Pierre Chaunu, de forma um tanto provocadora, sem dúvida, chegam a falar do "genocídio" cometido na Vendée11 pela República: "Nunca tivemos uma ordem escrita por Hitler a respeito do genocídio judaico, mas possuímos as de Barère e de Carnot com respeito à Vendée12."
A intensidade trágica da História O esquecimento, a ignorância, a nostalgia ? e até, para algumas pessoas, a habilidade política ? puderam tornar crível a fábula da Exposição de 1931
Outros tentam difamar uma memória republicana apresentada de maneira simplificada, com traços de um jacobinismo autoritário, defendida ardorosamente por uns poucos nostálgicos, sobreviventes de uma França rançosa, a "France bolorenta", na expressão de Philippe Sollers. Essa velha França se enrugaria numa memória condenada: "em tempos de Internet" (comentário inevitável!), como ousar o ridículo de defender noções tão desgastadas como nação, república, escola laica, ou mesmo como ousar desconfiar de corpos intermediários, como tantos feudos potenciais, contrários ao princípio de igualdade? Só Maurras pregava, em nome da tradição, a volta desses corpos intermediários (corporações, províncias...) e rejeitava o estatismo, a centralização administrativa.
Não é possível fundar uma moral sobre uma memória unívoca. Ora, o trabalho histórico destrói a idéia da univocidade dos fatos; se a memória não se perturba com as nuances, a história deve sacrificar-se a elas. O desvio do dever de memória defende o trabalho histórico. Já em 1865, Edgard Quinet tentava "trazer o espírito crítico à história da Revolução, pois muita gente quer fazer dela um livro fechado a sete chaves em que não se pode tocar13". Se, atualmente, a tentativa é de pôr a história a serviço da memória, o autor de La Révolution já procurava libertar um pouco a história da memória, dando ao trabalho histórico uma base crítica. A história deve desmitificar, desmistificar. Diante do caráter "religioso" do dever de memória, a história seria uma operação de "laicização" da memória, relegando ao passado comum toda sua relatividade.
Enquanto não se quiser compreender que o esforço de contextualizar, de submeter incessantemente um acontecimento histórico à crítica, não é diminuir sua eventual intensidade trágica, estará sendo invocado, peremptoriamente, um dever de memória em detrimento da pesquisa permanente, assimptótica e difícil da verdade. Explicitar não é justificar. Jean-Noël Jeanneney salienta que "pode-se dizer que cabe justamente aos historiadores defenderem os atores contra o fascínio das repetições, lembrando que nada recomeça de forma idêntica e que a seqüência é sempre nova14". No entanto, isto não significa que não exista nada a ser aprendido com o estudo da história, ainda que apenas um instrumento de decifração aproximativa da complexidade do mundo. (Trad.: Teresa Van Acker)
1 - Ler, de Serge Bernstein, La République sur le fil, ed. Textuel, Paris, 1998, p. 52 2 - Ler entrevista de Mona Ozouf a Jean-Françosi Chanet,, "Le passé recomposé", Magazine littéraire nº 307, fevereiro de 1993, p. 93. 3 - Ler, de Jean-Noël Jeanneney, La République a besoin d?Histoire, col. Interventions, ed. Seuil, Paris 2000. 4 - Ler, de Paul Ricoeur, "La mémoire heureuse", Notre Histoire, setembro de 2000. 5 - Ler, de Henri Rousso, La hantise du passé, ed. Textuel, Paris, 1998, pp 44-45; e também, de Eric Conan e Henry Rousso, Vichy, un passé que ne passe pas, Paris 1996. 6 - Ler artigos de Pierre Vidal-Naquet, e também a edição de 21 de maio de 2001 de Le Monde, que publicou algumas cartas de Hubert Beuve-Méry ao ministro-residente Robert Lacoste. 7 - N.T.: Quinto mês do calendário republicano. 8 - N.T.: Pequenos acampamentos de nômades, comuns no Norte da África. 9 - Ler, de Marc Ferro, "La République a trahi ses valeurs", Les Collections de l?Histoire n°11, abril de 2000, p.9. 10 - Ler, de Charles-Robert Ageron, "L?Exposition coloniale de 1931, mythe républicain ou mythe impérial?", in Les lieux de mémoire, organizado por Pierre Nora, Paris, ed. Gallimard (Quarto), 1997, vol. I, p.493-515. 11 - N.T.: A Vendée
Le Monde Diplomatique Brasil
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