quarta-feira, 8 de junho de 2011

Arqueologia da Bíblia


Qual a fronteira entre ficção e história real em algumas das mais famosas narrativas bíblicas, como a dos patriarcas que deram origem ao povo israelita, a saga do êxodo, que culmina na conquista da terra prometida, os inúmeros milagres e eventos extraordinários relatados no Novo e no Velho Testamento e a própria história de Jesus Cristo?

Um cético convicto responderia que essas narrativas não passam de uma colagem de mitos e lendas sem nenhum valor histórico. Os mais religiosos alegariam que se trata de uma história completamente verídica e inspirada diretamente por Deus.

Para responder à mesma questão, GALILEU ouviu arqueólogos, historiadores, teólogos e consultou as pesquisas mais recentes nessa área. A conclusão pode ser sintetizada na frase do arqueólogo Francisco Marshall, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Como a Bíblia trata da memória cultural do povo de Israel, é sempre possível traçar correspondências entre o texto bíblico e a arqueologia, mas essas correspondências jamais são exatamente nos termos da Bíblia." É o que pode ser verificado a seguir.

Não há nenhum indício arqueológico que indique a existência de Abraão, Isaac e Jacó

Reprodução
Ancestrais
ilustração russa retrata Abraão, Isaac e Jacó.

Conta a Bíblia que a formação do povo de Israel tem início quando Deus aparece a Abrão (que depois terá seu nome mudado para Abraão) e lhe ordena que deixe sua terra e parta para outra, que lhe será posteriormente indicada (Canaã). Em troca, ele tem a promessa de formar uma grande nação, que irá ganhar todas as terras, do rio Nilo ao Eufrates. Abraão obedece e é assim que, segundo o livro do Gênesis, sua família dá origem a todas as nações da região.

Mas será que existe alguma evidência arqueológica de que essa narrativa e a própria existência dos patriarcas tenham fundamento histórico? Com relação aos patriarcas - Abraão, Isaac e Jacó - não existe nenhuma prova de que tenham existido de fato, mas esse não é um consenso entre os pesquisadores. Há os que dizem que é provável que tenham sido reais, mas como não eram pessoas importantes financeira ou politicamente, não deixaram vestígios. "Dificilmente a arqueologia vai encontrar algo contundente, pois não foram reis, não escreviam e não construíram grandes palácios. Temos que dar um crédito justamente à modéstia que cercava a vida dessas pessoas", diz Pedro Vasconcellos, professor de Teologia da PUC de São Paulo. "Estamos lidando com condições sociais muito precárias, pobres, muito insignificantes socialmente para ter resíduos históricos", concorda o teólogo Milton Schwantes, professor da pós-graduação em ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Idealizações do passado

Outros argumentam que os patriarcas são representações das tribos seminômades que viviam na região do Crescente Fértil (entre os rios Tigre e Eufrates) entre 2000 e 1500 a.C., portanto não são figuras reais. "O próprio nome Abraão, em hebraico, significa antepassado, o que já indica se tratar de um personagem fictício. Do ponto de vista histórico, são idealizações a respeito de uma época. O que a arqueologia mostra é que aquele contexto em que ele está retratado na Bíblia realmente existiu, como as cidades mesopotâmicas mencionadas", diz o arqueólogo Pedro Paulo Funari, professor de história e arqueologia da Unicamp.

Mas há controvérsias mesmo em relação à verossimilhança das narrativas, no que diz respeito aos costumes da época em que a Bíblia situa a história dos patriarcas. Segundo alguns pesquisadores, os relatos refletiriam a realidade da região do antigo Oriente no período em que os textos foram compilados, por volta de 700 a.C., não no período a que se refere a Bíblia. É o que sustentam os arqueólogos Neil Silberman, um dos editores da revista "Archaeology", e Israel Finkelstein, da Universidade de Tel-Aviv, no livro "A Bíblia não Tinha Razão".

Eles argumentam que a genealogia dos patriarcas, as nações que surgiram de seus lugares de encontro, os casamentos e as relações familiares descritas no Gênesis mostram um mapa humano mais recente do antigo Oriente, do ponto de vista dos reinos de Israel e Judá, nos séculos 8 e 7 a.C. "Não apenas inúmeros termos étnicos e nomes de lugares podem ser datados nesse período, mas as respectivas caracterizações se enredam perfeitamente com o que sabemos sobre as relações dos povos e reinos vizinhos de Israel e Judá", escrevem.
Como exemplo, citam as repetidas menções aos camelos como animais de carga nas histórias dos patriarcas. As pesquisas arqueológicas mostram que esses animais só passaram a ser domesticados para esse fim depois de 1000 a.C.

Camelos imaginários

Na história da venda de José (um dos 12 filhos de Jacó) como escravo por seus irmãos, por exemplo, são descritas caravanas de camelos carregando "resina, ungüento e mirra", que são os principais produtos lucrativos do comércio árabe durante os séculos 8 e 7 a.C. "A história dos patriarcas parece ter sido familiar e muito interessante para o povo de Judá no século 7 a.C. A paisagem desses relatos é uma visão romântica e sonhadora do passado campestre, costurada a partir da memória, de fragmentos de costumes antigos, de lendas sobre o nascimento dos povos e de preocupações provocadas pelos conflitos contemporâneos", concluem.

Apesar de reconhecer a existência de anacronismos, como o caso dos camelos nos relatos sobre os patriarcas, o arqueólogo israelense Amihai Mazar diz, no livro "Arqueologia na Terra da Bíblia", que as similaridades entre a cultura dos séculos 20 a 18 a.C. e aquela ilustrada nas histórias do Gênesis são próximas demais para serem ignoradas.

A terra de Canaã, por exemplo, aparece nesses relatos como possuidora de uma próspera cultura urbana, com clãs de pastores vivendo entre as cidades, exatamente como era a situação em aproximadamente 1800 a.C. "Essas narrativas do Gênesis devem ter sido tradições muito antigas, passadas oralmente de geração em geração até que foram escritas pela primeira vez, talvez durante a época do Reino Unido de Davi e Salomão", escreve Mazar. Segundo ele, como é da natureza da transmissão oral, muitos aspectos podem ter sido acrescentados; contudo, a origem das tradições pode remontar mesmo ao período a que se refere a Bíblia. Se do ponto de vista da ciência as narrativas que envolvem Abraão são motivos de debates acalorados, no campo da fé pelo menos há a certeza de que ele foi e continua sendo uma das principais bases das três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.

Divulgação
Os Dez Mandamentos
Cena do épico do diretor norte-americano Cecil B. De Mille mostra a saga dos hebreus pelo deserto conduzidos por Moisés (interpretado por Charlton Heston)

A mais espetacular narrativa da Bíblia, que descreve o cativeiro dos hebreus como escravos no Egito e, posteriormente, sua fuga pelo deserto durante 40 anos, guiados por Moisés (cuja história, não menos fantástica, já foi tema de produções cinematográficas) é um dos principais alvos das pesquisas arqueológicas. De cara, as investigações concluíram que não há nenhum indício concreto de que Moisés tenha mesmo existido. Já com relação a toda a saga da fuga dos hebreus, acredita-se que há algumas bases históricas, mas não da maneira relatada na Bíblia, de acordo com os arqueólogos Neil Silberman, um dos editores da revista "Archaeology", e Israel Finkelstein, da Universidade de Tel-Aviv.

Algumas situações descritas na Bíblia podem ser comprovadas por achados arqueológicos e textos históricos, dizem os pesquisadores no livro "A Bíblia não Tinha Razão".

Entre elas, citam os imigrantes vindos de Canaã para o Egito e se estabelecendo nas regiões da fronteira no leste do rio Nilo. Fazia parte do grupo de imigrantes uma comunidade maior de semitas que chegaram de Canaã para se fixar no delta do Nilo, por uma ampla variedade de razões, e alcançaram níveis diferentes de sucesso. Alguns tornaram-se escravos nas terras cultivadas dos templos do Estado, outros eram recrutados como trabalhadores na construção de obras públicas e ainda havia os que subiram na escala social, chegando a se tornar funcionários do governo, soldados e até mesmo sacerdotes.

Desse modo, o relato da ascensão de José no início do livro do Êxodo é verossímil. A Bíblia conta que o filho de Jacó, após ser vendido como escravo para os egípcios pelos próprios irmãos, tornou-se um alto funcionário do faraó. Ele perdoou a família e levou todos de Canaã ao Egito, dando início à grande imigração. Segundo os estudiosos, existem outras fontes que descrevem a mesma situação. A mais importante foi registrada pelo historiador egípcio Mâneto, no século 3 a.C., que descreveu uma massiva e brutal invasão do Egito por estrangeiros do leste, a quem chamou de "hicsos" (palavra grega que significa "governantes de terras estrangeiras"). Segundo Mâneto, os hicsos se estabeleceram em uma cidade chamada Avaris e fundaram uma dinastia que dominou o Egito, com grande crueldade, por mais de 500 anos. Esses hicsos foram identificados por arqueólogos como os povos provenientes de Canaã.

Lendas e memórias contemporâneas

Mas existe um paralelo mais interessante entre os hicsos e a saga bíblica dos hebreus, de acordo com os relatos de Mâneto. Eles dizem que a invasão desse povo acabou devido a um rei egípcio, que atacou e derrotou os invasores "matando muitos deles e expulsando os remanescentes para as fronteiras da Síria". Mâneto diz que, depois de expulsos do Egito, os hicsos fundaram a cidade de Jerusalém, onde construíram um templo, como dizem as narrativas bíblicas.

Outra descoberta da arqueologia que, de alguma maneira, cruza-se com os relatos da Bíblia é a construção de cidades-armazéns no Egito na época do êxodo. "Uma dessas cidades chamava-se Ramsés, que é o nome do faraó do Egito naquele período", diz Pedro Vasconcellos, professor de Teologia da PUC de São Paulo. Mesmo que esses paralelos, à primeira vista, dêem a impressão de que os relatos de fontes extrabíblicas se referem mesmo aos hebreus, Finkelstein e Silberman mostram que não há nenhum indício concreto de que esses imigrantes semitas fossem o povo da Bíblia, nem de que a data de sua permanência no Egito se encaixe com a da cronologia bíblica (por volta de 1446 a.C.). Com relação a Ramsés, por exemplo, eles dizem que no século 15 a.C. esse nome seria inconcebível. "O primeiro faraó chamado Ramsés chegou ao trono só em 1320 a.C., mais de um século depois da tradicional data bíblica." A maioria dos estudiosos considera a referência ao nome Ramsés uma memória histórica, mas sustenta que o êxodo ocorreu no século 13 a.C.

A menção mais antiga a Israel num texto extrabíblico foi encontrada no Egito, na estela (coluna com inscrição) que descreve a campanha do faraó Meneptah em Canaã, no final do século 13 a.C. Ela relata uma campanha militar egípcia naquela região e a destruição de um povo chamado Israel. Finkelstein e Silberman também dizem que não há vestígios de que, mesmo que em número inferior ao citado na Bíblia (600 mil), um grupo de pessoas tenha vagado pelo deserto durante 40 anos. "Alguns traços arqueológicos dessa geração deveriam ser aparentes", concluem.

As indicações sugerem que existem bases históricas para a narrativa do Êxodo, mas não se referem ao período bíblico. São lendas de tempos remotos misturadas a memórias contemporâneas que fazem parte de uma saga nacional. "A Bíblia foi escrita por pessoas que faziam um relato, às vezes com origem popular, acrescido de interpretação e de metáforas. Na história de Moisés, por exemplo, a mensagem é a de trabalhar para as próximas gerações", diz o arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp.

O êxodo segundo a Bíblia

A saga dos hebreus tem início com seu cativeiro como escravos no Egito, onde construíam cidades sob as ordens de um faraó cruel e opressivo. Preocupado com o crescimento da população de escravos, temendo uma revolta, o faraó resolveu matar todos os recém-nascidos do sexo masculino. Foi nessa época que nasceu Moisés e, para salvá-lo, sua mãe o escondeu em um cesto nas margens do rio Nilo. Ele foi achado pela filha do faraó, que o adotou e o criou no palácio egípcio. Já adulto, Moisés presenciou um feitor egípcio bater em um hebreu e, revoltado com a injustiça, matou o soldado e fugiu do Egito para Midiã.

Durante o tempo que passou em Midiã, Moisés visitou o monte Sinai e viu uma sarça ardente que não se consumia com o fogo. Dela saiu a voz de Deus e lhe disse para tirar os israelitas do Egito, levá-los ao monte Sinai e depois à terra prometida de Canaã. Moisés obedeceu. Diante da recusa do faraó em libertar os escravos, Deus lançou dez pragas sobre os egípcios, o que fez com que ele os deixasse ir.

Após terem saído do Egito a caminho do monte Sinai, o faraó mudou de idéia e mandou seu exército persegui-los. Uma sucessão de eventos extraordinários e milagres permitiu que chegassem ao monte Sinai, onde Moisés recebeu os Dez Mandamentos. Construíram a Arca da Aliança, onde guardaram as leis firmadas com Deus, e seguiram para lutar e conquistar a terra prometida de Canaã.

Longe de ser uma epopéia, a ocupação de Canaã pelos israelitas teria sido gradual e sem grandes batalhas

Assim como nas histórias dos patriarcas e do êxodo, a narrativa das grandes batalhas travadas entre israelitas e cananeus pela conquista de Canaã, a terra que lhes foi prometida por Deus no tempo de Abraão, também não teria sido exatamente como relata a Bíblia.

O que a arqueologia mostra é que "mesmo que os israelitas tivessem sido os invasores de certas cidades, a devastação não teria sido levada a cabo em um só golpe durante a mesma campanha militar, mas teria sido resultado de um processo arrastado de guerras regionais, em que uma tribo ou um grupo de tribos conseguiu destruir certas cidades cananéias. Esses embates locais sucessivos entre israelitas e cananeus foram compilados na Bíblia de modo a produzir a tradição de uma única conquista" .

A explicação do arqueólogo israelense Amihai Mazar, no livro "Arqueologia na Terra da Bíblia", é a teoria mais aceita entre os estudiosos do tema: a da ocupação gradual, em que algumas cidades-Estados cananéias, fracas e pobres, devido aos 300 anos de dominação egípcia, foram substituídas entre 1200 a.C. e 1000 a.C. por uma nova entidade nacional, Israel.

Além disso, completam Neil Silberman, um dos editores da revista "Archaeology", e Israel Finkelstein, da Universidade de Tel-Aviv, no livro "A Bíblia não Tinha Razão", é improvável que as guarnições militares egípcias em todo o país tivessem permanecido impassíveis enquanto um grupo de refugiados do Egito estivesse provocando devastação em toda a Província de Canaã, conforme a narrativa bíblica.

Sem muralhas ou trombetas

Os autores também dizem que a famosa história da tomada de Jericó (que diz que as muralhas foram derrubadas no sétimo dia da marcha dos israelenses, em decorrência do som ensurdecedor de trombetas de guerra) não passa de uma miragem romântica. "As cidades de Canaã não eram fortificadas e não existiam muralhas que pudessem desmoronar. Em Jericó não havia traços de povoamento no século 13 a.C."

Apesar das discrepâncias entre as evidências arqueológicas e o discurso bíblico, nenhuma das fontes deve ser invalidada, dizem os pesquisadores, pois ambas, a seu modo, contribuem para a reconstituição histórica de Israel. "A Bíblia trata de memória mítica, e nas sociedades antigas o mito era transmitido em escalas de tempo muito longas (por vezes de vários milhares de anos) e através de distâncias geográficas imensas, o que gera uma certa descontextualização histórica da memória", resume o arqueólogo Francisco Marshall, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Davi e Salomão existiram, mas não governaram da maneira heróica relatada pela Bíblia


Até o começo da década de 1990 havia suspeitas entre os historiadores bíblicos de que os reis Davi e Salomão não passavam de personagens literários e seus feitos e conquistas seriam apenas idealizações nacionalistas de um passado glorioso. Mas um artefato encontrado em 1993 pôs fim à dúvida, pelo menos em relação à existência dos dois.

Uma inscrição em aramaico com os dizeres "Casa de Davi", descoberta em um sítio arqueológico de Tel Dan, ao norte de Israel, relata detalhes de uma invasão de Israel por um rei arameu, cujo nome não é mencionado nos pedaços encontrados.

Silberman e Finkelstein dizem que dificilmente pode-se questionar que o fragmento relata o ataque de Hazael, rei de Damasco, ao reino de Israel, por volta de 835 a.C. Essa guerra ocorreu na época em que Israel e Judá eram reinos separados, e o resultado foi a derrota de ambos. Outra referência a Davi pode ser encontrada em uma inscrição do século 9 a.C., o que indica que a casa de Davi era conhecida em toda a região.

Isso, segundo os autores, confirma a descrição bíblica de uma figura chamada Davi, que se tornou fundador de uma dinastia de reis judaicos em Jerusalém.

O que é questionado pela arqueologia são as descrições de Davi como um poderoso guerreiro criador de um grande Estado e Salomão, seu filho, como iniciador de elaborados projetos de construção (inclusive o templo de Israel). "A arqueologia não encontrou nada muito concreto que pudesse substanciar o que se fala de Davi. Mesmo sobre Salomão, há muitos detalhes feitos posteriormente por teólogos", diz o arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp.

Apenas falta de indícios

Para Pedro Vasconcellos, professor de Teologia da PUC de São Paulo, no entanto, o fato de a arqueologia ainda não ter encontrado esses indícios não invalida por completo os textos bíblicos. "Jerusalém é a típica cidade que foi construída e reconstruída diversas vezes. Isso significa que é preciso escavar muito mais até chegar, quem sabe, ao templo de Salomão, já que depois dele houve um templo construído com apoio dos persas, outro por Herodes e depois parte daquilo virou mesquita. Ou seja, são camadas de construções e edificações que se sucedem e é preciso fazer um trabalho de escavação muito delicado."

Bíblia x Arqueologia
Rei
Período
Testemunho bíblico
Achados arqueológicos
Davi
1005-970 a.C.Conquista Jerusalém, tornando-a sua capital; estabelece um vasto império, abrangendo a maioria dos territórios de Israel

Nenhuma evidência para as conquistas de Davi ou para seu império; nos vales, a cultura canaanita se mantém ininterrupta; nas regiões montanhosas, continuação do sistema de assentamento da Idade do Ferro 1 (1200 a.C.-1000 a.C.)

Salomão
970-931 a.C.Constrói o templo e o palácio em Jerusalém; ativo também em Megido, Hazor e GezerNenhum sinal de arquitetura monumental ou de cidade importante em Jerusalém; nenhum sinal de construções em larga escala em Megido, Hazor e Gezer; no norte, continua a cultura material de Canaã

Fonte: "A Bíblia não Tinha Razão"


As narrativas sobre os últimos dias da vida de Jesus são uma invenção, segundo pesquisadores

Se existe uma parte da Bíblia sobre a qual a arqueologia tem bem pouco a dizer é quanto à reconstituição histórica da vida de Jesus, já que dificilmente uma pessoa pobre e sem importância política deixa vestígios. E, dizem os especialistas, era exatamente esse o caso do fundador do Cristianismo. "Quem é que deixa vestígios? É quem tem poder. Se existem ruínas de uma cidade, o que vai sobrar: a choupana do camponês ou um pedaço do palácio? No Novo Testamento temos o mesmo problema. Jesus e seus seguidores eram andarilhos que iam de uma cidade para outra mendigando, portanto, dificilmente deixariam vestígios", explica Pedro Vasconcellos, professor de Teologia da PUC de São Paulo.

Dentre os raros indícios arqueológicos relacionados a Jesus, as citações feitas por dois historiadores, o judeu Flávio Josefo (37-100 d.C) e o romano Tácito (56 - 120 d.C), e pelo Talmude da Babilônia (tratados jurídicos, religiosos e filosóficos que definem o modo de ser judeu) são os mais diretos (todos se referem à sua morte). No livro "Excavating Jesus" (Escavando Jesus), ainda sem tradução no Brasil, o irlandês John Dominic Crossan, professor de estudos bíblicos da Universidade De Paul, nos Estados Unidos, relaciona cinco descobertas arqueológicas que fornecem indícios sobre os relatos da vida de Jesus descritos nos Evangelhos (veja quadro acima). Nenhuma delas faz referência direta a Jesus, mas a pessoas e objetos relacionados a ele, de acordo com as narrativas bíblicas.

Mesmo diante da falta de provas extrabíblicas consistentes, poucos estudiosos sérios colocam sua existência em dúvida atualmente. "Sobre outros personagens históricos, como Pitágoras e Sócrates, tivemos mais dúvidas no passado do que sobre a existência de Jesus", diz o professor de filosofia e teologia Gabriele Cornelli, da Universidade Metodista de São Paulo. Ele explica que as únicas certezas com relação a Jesus são as de que ele existiu e teve uma morte violenta, por motivos religiosos. Provavelmente, os últimos dias de sua vida não ocorreram da maneira relatada nos Evangelhos. "Nem quem os escreveu sabia o que aconteceu. Fica muito claro pela narrativa bíblica que os evangelistas fogem, eles não estão lá. Jesus fica sozinho em seus últimos dias. Não tenho a menor dúvida em afirmar que os detalhes da narrativa são ficcionais, são uma invenção", diz Cornelli.

Paixão nem sempre foi narrada

Esse ponto de vista polêmico é defendido por John Dominic Crossan, em um dos principais livros de referência sobre o assunto, "O Jesus Histórico". Segundo Crossan, a narrativa dos evangelistas é uma releitura do Antigo Testamento. Eles contam a história da morte de Jesus de modo que ela confirme as profecias sobre o Messias - que seria enviado por Deus para morrer e salvar os homens de seus pecados. Mas nem sempre essa história foi contada. Segundo Cornelli, no manuscrito original do apóstolo Marcos, que é a base de todos os Evangelhos, não havia a narrativa da Paixão. Mas então o que motivou o início dessa narrativa? "No meu ponto de vista é porque os primeiros cristãos estavam sendo perseguidos na época em que os Evangelhos foram escritos. Jesus se confronta com os romanos, com a elite religiosa judaica (Sinédrio) e com o poder civil da Palestina (Herodes). Toda essa estrutura dramática reproduz a situação das primeiras comunidades cristãs e diz a essas pessoas como deviam agir", opina Cornelli. "Hoje não conhecemos tão bem o contexto histórico no qual a Bíblia hebraica foi escrita, por isso achamos que aquilo tudo aconteceu mesmo. Quem o conhecia sabia fazer essas referências." Colaboram para essa visão o relato seco e objetivo das fontes extrabíblicas sobre a morte de Jesus e as contradições nos Evangelhos, como mostra o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

É o caso da passagem em que Pôncio Pilatos lembra aos judeus que eles poderiam libertar um prisioneiro durante as festas pascais. "Se havia quatro condenados, por que a escolha fica somente entre Barrabás e Jesus? Também não há registro do costume de libertar um prisioneiro para satisfazer os desejos das multidões em outras partes do Império Romano", explica.

Até a crucificação já foi questionada, já que não era costume enterrar os corpos dessas pessoas. As dúvidas acabaram em 1968, quando arqueólogos encontraram o corpo de um judeu crucificado. "Isso comprovou que, em casos raros, essas pessoas eram enterradas. Jesus também poderia ter sido exceção. A maioria dos cientistas dá crédito a esse fato", diz Chevitarese.

Relatos verdadeiros

Existem oito momentos nos relatos bíblicos sobre a vida de Jesus que podem ser considerados reais, segundo os pesquisadores André Chevitarese, da UFRJ, e Gabriele Cornelli, da Universidade Metodista de São Paulo. Esses episódios foram escolhidos com base em dois critérios, o do constrangimento e o da múltipla confirmação. No constrangimento, as informações prejudicam a imagem da figura central da narrativa. Na confirmação, a situação é narrada por fontes diferentes, que nunca tiveram contato. Portanto, nos dois casos, é pouco provável que as histórias tenham sido inventadas.

Jesus é batizado por João
Aplica-se aqui o critério do constrangimento, pois o batismo realizado por João era o de arrependimento para remissão de pecados. Portanto, a atitude de Jesus não condizia com a de messias.

Jesus escolhe discípulos
Aplica-se novamente o critério do constrangimento. Na medida em que Jesus escolhe pessoalmente os 12, é de se perguntar: como ele, sendo o filho de Deus, não previu a traição de um deles.




Jesus e seus discípulos iniciam o ministério na Galiléia

Critério da múltipla confirmação. A localização de Jesus e do seu movimento na Galiléia não deixa dúvida quanto à região onde começou o Cristianismo. O fato é citado pelos quatro evangelistas.

A visão negativa que seus parentes têm da sua missão
Dois critérios podem ser aplicados: do constrangimento e da múltipla confirmação. É constrangedor saber que nem os parentes mais próximos de Jesus acreditam nele, conforme demonstram Marcos e João.

Jesus é acusado de ter um demônio
A passagem de João mostra como os oponentes de Jesus viam suas ações. O seu poder reside em Satanás. Esta visão deve ter perdurado até a época do autor do quarto evangelho. O critério é o do constrangimento.

Jesus é traído por Judas
O episódio é constrangedor e citado pelos 4 evangelistas.

Jesus ameaça destruir o templo de Jerusalém
O critério aplicado aqui é o da múltipla confirmação.



Jesus é crucificado
Há dois critérios aplicados aqui: o da múltipla confirmação e o do constrangimento. Uma leitura de Paulo (Filipenses 2:6-8), um texto anterior às narrativas evangélicas, já deixa claro o quanto era difícil para o indivíduo grego ou judeu reconhecer como Messias alguém que morreu na cruz, já que se tratava de uma sentença reservada a escravos, criminosos perigosos e agitadores políticos.

O episódio também é citado por todos os evangelistas.






Pistas arqueológicas sobre Cristo
1. Ossário que comprova a existência do sumo sacerdote Caifás, um dos articuladores da morte de Jesus
2. Inscrição que confirma o alto cargo de Pôncio Pilatos como governador. É a primeira prova física da existência dessa figura-chave na narrativa evangélica
3. Casa do apóstolo Pedro
4. Barco de pesca usado no mar da Galiléia no tempo de Jesus e no qual cabiam 13 pessoas. É semelhante ao descrito como "Barco de Jesus" na Bíblia
5. Esqueleto de Yehochanan, um judeu morto por crucificação, o que mostra que, em raras situações, um crucificado podia ser enterrado


Autores tentam justificar milagres descritos na Bíblia por meio de fenômenos naturais

Existem duas vertentes quando se trata da análise histórica da Bíblia: entender os milagres como metáforas, ficção, sem a preocupação de verificá-los, ou tentar explicá-los cientificamente. A segunda corrente, apesar de muito criticada pela maioria dos estudiosos da Bíblia, que acham que milagres são exclusivamente questão de fé e, portanto, não são passíveis de verificação científica, encontra muitos adeptos entre o público leigo religioso. Os estudiosos, no entanto, olham com desconfiança para essas explicações. "O grande equívoco é tentar subordinar a arqueologia, a matemática e as outras ciências à teologia. Os fatos e os argumentos são distorcidos para provar que a Bíblia tinha razão. A melhor maneira de equacionar isso é perceber que os milagres são escritos e produzidos para quem crê. Quem não crê não vai se convencer com esse tipo de explicação, pois não vive a experiência religiosa necessária para isso", diz o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

No mais recente lançamento sobre o tema, "Os Milagres do Êxodo", o físico inglês Colin Humphreys, da Universidade de Cambridge, especula quais podem ter sido as causas naturais por trás de eventos extraordinários como as dez pragas do Egito, a abertura do mar Vermelho e a sarça ardente que não se consome. "Muitos cientistas não acreditam em milagres, pois acham que eles quebram as leis científicas estabelecidas. Eu mostro em meu livro que praticamente todos os milagres do Êxodo são eventos naturais, que não quebram nenhuma dessas leis, ao contrário, podem ser explicados por todas elas. Acredito que meus argumentos tornam esses milagres mais compreensíveis aos cientistas e a todas as pessoas", disse Humphreys a GALILEU.

Por mais que se pretendam científicas, teorias como essas têm uma base teológica por trás. Por exemplo: supondo que todos os milagres narrados no livro do Êxodo tenham mesmo uma causa natural, como explicar que todos eles ocorressem no momento exato para facilitar a fuga dos israelitas do Egito? "Acredito que seja uma evidência de que Deus está agindo por meio da natureza. Acho mais plausível dizer que foi a mão de Deus do que pura sorte", responde Humphreys. Conheça algumas das explicações naturais sobre os milagres descritos no livro do Êxodo, que narra a fuga dos hebreus do Egito, e sobre outros textos da Bíblia e tire suas próprias conclusões.

Estrela de Belém

O que diz a Bíblia:
No dia do nascimento de Jesus, uma estrela de intenso brilho apareceu no céu para indicar o local do nascimento do Messias.
Explicações naturais: A conjunção de Saturno e Júpiter na constelação de Peixes; um cometa ou uma supernova (estrela que explode e se torna extraordinariamente brilhante).

Dilúvio

O que diz a Bíblia:
Insatisfeito com o rumo que tomara a humanidade, Deus decidiu destruí-la por meio de um dilúvio. Mas decidiu salvar um homem justo com sua família e um representante de cada espécie animal.
Explicações naturais: gigantesca invasão das águas do Mediterrâneo no mar Negro há mais de 7 mil anos.

Dez pragas do Egito

O que diz a Bíblia:
Moisés regressou ao Egito e pediu ao faraó que deixasse os hebreus partirem. Diante da recusa, Deus lançou dez pragas de gravidade crescente sobre os egípcios, até que o faraó os libertou. As pragas: o Nilo torna-se sangue e os peixes morrem; invasão de sapos e rãs; enxame de mosquitos; invasão de moscas; mortandade dos animais; proliferação de úlceras e tumores entre homens e animais; chuva de pedras; praga dos gafanhotos; três dias de escuridão e morte dos primogênitos.
Explicações naturais: Pode ter ocorrido na época uma sucessão de catástrofes ecológicas encadeadas, que teriam começado com a poluição do Nilo por partículas de terra vermelha associadas a algas nocivas. A poluição teria forçado rãs e sapos a saírem para terra firme e morrerem de fome, deixando moscas e mosquitos livres para se reproduzirem. A mortandade dos animais e as úlceras estariam ligadas a doenças transmitidas pelas moscas e mosquitos. A escuridão seria uma chuva de granizo particularmente forte, na qual a areia úmida se tornou depósito de ovos de gafanhotos. A morte dos primogênitos estaria ligada a toxinas produzidas nos cereais estocados em virtude da chuva. Como os primogênitos eram os filhos mais importantes, provavelmente teriam sido os primeiros a se alimentar, ingerindo os grãos contaminados.

A sarça ardente

O que diz a Bíblia:
Depois de fugir do Egito por ter matado um feitor que torturava um escravo hebreu, Moisés instalou-se na terra de Midiã, fora da jurisdição egípcia. Durante esse tempo, visitou o monte Sinai e viu uma sarça (espécie de arbusto) ardente, que não desabava. Nessa sarça Moisés ouviu Deus lhe pedir para tirar os israelitas do Egito, levá-los ao monte Sinai e conduzi-los à terra prometida de Canaã.
Explicações naturais: a sarça ardente estaria localizada em uma região que continha gás natural. Esse gás subiria pela sarça através de rachaduras nas rochas, inflamando-se espontaneamente ou pela ação de raios, o que resultaria em "uma chama de fogo, do meio de uma sarça que ardia e não se consumia". Outra explicação proposta por Humphreys é a de que a sarça poderia estar localizada em cima da chaminé de um vulcão (fenda por onde escapam os gases e o magma que vêm do interior da crosta terrestre).

Abertura do mar Vermelho

O que diz a Bíblia:
Diante das pragas, o faraó decidiu libertar os hebreus. Assim que eles deixaram o Egito, o faraó se arrependeu e mandou seu exército persegui-los, alcançando-os junto ao mar Vermelho. Nesse momento, um forte vento fez o mar recuar, permitindo aos hebreus atravessá-lo. Quando o exército tentou fazer o mesmo, o mar retornou rapidamente e os soldados morreram afogados.
Explicações naturais: Fenômeno climático no qual um vendaval muito forte empurra grandes quantidades de água criando uma espécie de parede, que parece dividir as águas ao meio.

Eliana Assumpção
* Pedro Vasconcellos
é professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC de São Paulo

As pesquisas em torno da Bíblia e as investigações de cunho histórico-arqueológico há certo tempo vivem uma relação tensa. Se até o século 19 o livro sagrado judeu-cristão era praticamente o único documento a partir do qual se podia fazer a história de muitos povos do Antigo Oriente Médio, desde então avanços nas ciências humanas, como a descoberta de novos documentos e a decifração de antigos sistemas de escrita (do Egito, da Mesopotâmia e de Canaã) lançaram novas luzes sobre aquele mundo ao mesmo tempo tão distante e tão próximo a nós.

Nessa relação se estabeleceram duas posições extremas. A primeira quer afirmar, a ferro e fogo, a veracidade histórica de todos os elementos da narrativa bíblica. A arqueologia é utilizada, nessa perspectiva, para confirmar o que o texto já garante de antemão. Não se discutem as especificidades dele, seu gênero literário, suas intencionalidades.

O outro posicionamento procura evidenciar as contradições entre os ditos bíblicos e os achados arqueológicos. Convencidos do caráter basicamente religioso dos textos, mas também desconfiados do tom ideológico deles, os estudiosos que se alinham nessa posição tendem a colocar sob suspeita seus enunciados até prova em contrário, que deverá vir da pesquisa científica.

O problema de ambas as posições é que elas supõem (ou exigem) dos textos e dos achados uma espécie de concordância de fundo. Mas, por um lado, os livros bíblicos, dado seu caráter religioso, lidam de forma muito livre com os dados históricos; sua intenção não é informar sobre o que já ocorreu, mas educar para os desafios atuais e aqueles por vir. Suas leituras do passado estão comprometidas com a construção do presente e do futuro. Assim, pedir aos textos exatidão histórica seria o mesmo que pedir leite a uma fonte d'água.

Por outro lado, deve-se levar em conta que a história bíblica é mais de famílias camponesas que de reis, menos de sacerdotes que de clãs. E esses grupos deixam poucos vestígios. Obviamente é muito mais fácil achar ruínas de palácios e templos. Mas como encontrar utensílios deixados por famílias como a de Abraão? E deduzir, apenas do não-encontro dos vestígios, que tal personagem não existiu também é temerário. Li uma vez respeitado autor afirmar que os impostos pagos pelas famílias camponesas a reis em Israel, Egito e Mesopotâmia, citados na Bíblia e supostos em tantas fontes, não existiram, pois não deixaram indícios. Talvez um caminho para resolver essa tensão entre os estudos bíblicos e histórico-arqueológicos seja uma abordagem que incorpore um olhar antropológico. Nessa perspectiva os relatos sobre Abraão (para ficar nesse exemplo) poderão valer por informações eventuais sobre o tempo em que ele supostamente terá vivido. Mas sua maior importância residirá no fato de eles revelarem a percepção de um grupo sobre um aspecto importante de seu passado e a forma de ele se compreender na relação com os demais. E a pergunta se a Bíblia tem razão ou não deverá ser recolocada: qual é a razão, qual o sentido que determinado texto bíblico tem?

Para ler
• "A Bíblia não Tinha Razão", Neil Silberman e Israel Finkelstein. A Girafa. 2003
• "Arqueologia na Terra da Bíblia", Amihai Mazer. Paulinas. 2003
• "Abraão - Uma Jornada ao Coração de Três Religiões", Bruce Feiler. Sextante. 2003
• "Os Milagres do Êxodo", Colin Humphreys. Imago. 2004
• "O Jesus Histórico", John Dominic Crossan. Imago. 1994
• "Jesus - Esse Grande Desconhecido", Juan Arias. Objetiva. 2001
• "Excavating Jesus", John Dominic Crossan e Jonathan Reed. Harper San Francisco. 2002

Revista Galileu

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