por Vitor Bartoletti Sartori *
György Lukács » Foi um filósofo húngaro. Sua obra História e Consciência inicia a corrente de pensamento que passou a ser conhecida como marxismo ocidental. O livro é notável pela contribuição ao debate concernente à relação entre sociologia, política, filosofia e marxismo, e pela reconstituição da teoria marxista da alienação antes de os escritos de juventude de Marx terem sido publicados.
Social-democracia » Ideologia política de esquerda lançada no fim do século XIX por partidários do marxismo que acreditavam que a transição para uma sociedade socialista poderia ocorrer sem uma revolução, por meio de uma evolução democrática. Embora a ideologia pregue uma gradual reforma legislativa do sistema capitalista, a fim de torná-lo mais igualitário, o conceito tem mudado com o passar das décadas.
Quando se fala de marxismo hoje, muitos torcem o nariz dizendo se tratar de uma visão de mundo ultrapassada e, depois da falência do chamado "socialismo real", comprovadamente fadada ao fracasso. No entanto, é preciso notar que, mesmo que reiteradamente se diga que o marxismo está morto, a publicação de textos de Karl Marx e Friedrich Engels continua. Seriam os marxistas cegos? Meros utopistas? Acreditamos que não. A publicação recente de O Socialismo Jurídico de Engels pode mostrar que aqueles que melhor expuseram as críticas àquilo que foi chamado de "socialismo" no século XX são os próprios fundadores da tradição marxista.
É bom destacar que enquanto as publicações de Marx e Engels e de marxistas como György Lukács crescem, certa tradição marxista não pode mais ser encontrada nas livrarias: os livros de Stalin, por exemplo, sequer são editados na atualidade. Ou seja, é preciso notar que as obras dos fundadores da tradição marxista talvez possam ser extremamente atuais. Aquilo defendido nelas também. No entanto, a visão de mundo corporificada no "marxismo oficial" dos partidos ligados à extinta URSS certamente perdeu sua força. O marxismo, assim, pode não estar morto, mas o stalinismo está.
Papel do Direito
As duas principais - embora não as únicas - formas pelas quais a esquerda se articulou no século XX foram, de um lado, a social-democracia, no Ocidente, e de outro lado o "comunismo", de molde soviético.
A primeira tradição primou pela universalização dos direitos sociais, do direito ao trabalho e dos direitos civis, buscando diminuir as desigualdades sociais no terreno capitalista. Eventualmente, chegou a ponderar uma transição gradual e progressiva ao socialismo. Doutro lado, aqueles que tiveram a URSS e a transição revolucionária ao socialismo ("em um só país", como defendeu Josef Stalin) por modelo, primaram pela propriedade estatal dos meios de produção, o que, supostamente, configuraria a coletivização da produção social. Desta última perspectiva, seria central a busca de um Direito socialista, não mais calcado na propriedade privada, mas na propriedade coletiva.
Socialismo jurídico » Concepção de mundo surgida no final do século XIX, segundo a qual a regulamentação jurídica da sociedade seria capaz de suprimir os vícios decorrentes do modo de produção capitalista.
Por conseguinte, a primeira questão a observar é o papel que desempenhou o Direito nessas concepções: ele foi central. A esfera jurídica foi considerada "instrumental" tanto para a ampliação das conquistas social-democratas como na regulamentação da propriedade juridicamente coletiva. A esquerda, pois, permaneceu, em grande parte, no "terreno do Direito". Fez justamente aquilo que Engels criticou ainda no século XIX, em sua obra O Socialismo Jurídico.
Isso dito, é preciso apontar que tanto os social-democratas como o marxismo oficial nominalmente apoiaram-se em Marx, assim disse o maior colaborador do autor alemão: "O direito jurídico, que apenas reflete as condições econômicas de determinada sociedade, ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34).
É preciso notar que as obras dos fundadores da tradição marxista talvez possam ser extremamente atuais
Há duas hipóteses a considerar: ou a esquerda não podia buscar auxílio no autor de O Capital, ou essa esquerda não soube, não pôde (ou não quis) compreender de modo adequado a teoria em que se baseou. Sobre essas hipóteses, é bom lembrar que o próprio Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha, teceu comentários ácidos acerca do movimento socialista de sua época, movimento esse que buscava o chamado "direito ao fruto integral do trabalho": "O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" (MARX, 2012, p. 33).
O socialismo que triunfou no século XX, ainda que de modo limitado, foi o que, em prol da coletividade, teve uma regulamentação jurídica da produção e da distribuição confundida com o socialismo
Na passagem, Marx critica aqueles que, tal qual a social-democracia do século XX, não buscaram a transformação substancial da produção social, deixando intocados os alicerces da relação-capital e: "o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho, um processo que, por um lado, transforma os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores imediatos em operários assalariados" (MARX, 1988, p. 252).
Caso se queira falar em socialismo, seria preciso, segundo o autor, superar a separação entre o trabalhador e suas condições de vida. É sobre essa base que se assenta o modo de produção capitalista, tendo por tarefa essencial à política anticapitalista a supressão daquilo que Marx chamou acima de relação-capital.
O autor de O Capital defende a transformação das bases da produção social. E, aqui, já se pode dizer: aqueles que entendem a distribuição de renda como uma medida socialista, como os militantes que o autor alemão criticava, deixariam justamente aquilo que precisaria ser questionado intacto. Tratar de "expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" seria um erro crasso, pois. Dando-se independência à distribuição ter-se-ia, na melhor das hipóteses, um "socialismo vulgar". Portanto, aos olhos do autor, a tradição social-democrata pode ser vista como aquela que, juntamente com parte dos "democratas" de sua época, "herdou da economia burguesa" equívocos que precisam ser ultrapassados por aqueles que buscam um socialismo digno de tal nome.
Essa busca somente seria possível com a supressão da relação-capital. E nesse último ponto é preciso apontar: as duas passagens de Marx mencionadas logo acima não atingem só a esquerda social-democrata. Os autointitulados comunistas não passam incólumes às críticas do autor.
As duas principais formas pelas quais a esquerda se articulou no século XX foram a social-democracia e o "comunismo" soviético
Trabalhador x propriedade
Na URSS, muito embora possam ter ocorrido alguns avanços em pontos específicos, como saúde e educação, a "separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho" permaneceu. Continuaram a existir "meios sociais de subsistência e de produção" como capital, e "produtores imediatos" como "operários assalariados" - por conseguinte, a relação-capital permaneceu nas sociedades de tipo soviético. E, da perspectiva marxista, talvez se possa dizer que esse tenha sido o problema fundamental dessas sociedades.
A social-democracia primou pela universalização dos direitos sociais, do direito ao trabalho e dos direitos civis, buscando diminuir as desigualdades sociais do capitalismo e ponderando uma transição gradual e progressiva ao socialismo
A fonte das vicissitudes da sociedade capitalista, mesmo que modificada, esteve presente de modo que, ao final, o socialismo do tipo soviético girou, principalmente, "em torno da distribuição".
Direito: impensável além do capital
Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Segundo o marxismo, no capitalismo, a raiz, a base da sociedade, está assentada na perpetuação da relação-capital. Uma crítica radical, pois, tem consigo busca da supressão da mencionada relação. E essa última traz consigo as figuras do burguês e do trabalhador assalariado.
O assalariamento, por sua vez, pressupõe tanto a relaçãocapital como o mercado. No caso, o mercado de trabalho, no qual a força de trabalho é uma mercadoria como outra qualquer. Em uma crítica marxista verdadeira é preciso considerar a mercantilização da vida cotidiana - nesta última, na sociedade capitalista, o homem aparece reduzido a uma engrenagem na reprodução social. Para que essa crítica possa ter fundamentos sólidos, é bom entender os mecanismos capitalistas em sua complexidade, a qual envolve a esfera jurídica. "O desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social - isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos - engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade - normas jurídicas estabelecidas pelo Estado. [...] Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 19).
A expansão do mercado em escala tendencialmente universal é uma exigência da produção capitalista. Ela traz consigo o domínio político do Estado e a regulamentação do Direito, os quais darão uma veste jurídica ao caráter universal do mercado.
Os indivíduos passam a se deparar com seus semelhantes como concorrentes potenciais, sendo, a despeito de suas diferenças reais, considerados "livres produtores de mercadorias" e "iguais" perante o Direito. Na esfera jurídica, pois, têm-se a igualdade e a liberdade, grandes ideias da burguesia em sua fase ascensional e revolucionária (basta pensar na Revolução Francesa) como essenciais.
No entanto, esses ideais, segundo Engels, estão realizados na própria sociedade capitalista - não são incompatíveis com a dominação. Antes, são componentes da igualdade e da liberdade jurídicas, as quais dizem respeito, em verdade, à concorrência, à situação do homem como vendedor de mercadorias. Portanto, os ideais mencionados, ao menos na forma como aparecem no discurso burguês, têm um solo específico, aquele da produção capitalista. Eles não podem ultrapassar esse solo.
Com a concorrência, "a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia" porque a "concessão de incentivos e créditos" e a compra da força de trabalho alheia sustentam a relação entre trabalho e capital, e essa relação configura o burguês como tal. Vê-se, assim, que a defesa do discurso jurídico liga-se à consolidação da ordem capitalista. Porém, não é só: dado que o papel central do Direito é essencial no encobrimento das desigualdades reais presentes na sociedade, segundo Engels, a "concepção jurídica de mundo" torna-se clássica para a burguesia. "A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 18).
Se a concepção religiosa fora "clássica" para a nobreza, a concepção jurídica assim pode ser considerada para a burguesia. Tem-se uma "nova concepção de mundo". Ela tem seu solo nas relações econômicas engendradas na separação entre o trabalhador e os meios de produção. Está também relacionada com a consolidação do trabalho assalariado em escala tendencialmente universal. Tratase de uma concepção de mundo que visava à preservação da nova ordem tal qual a visão teológica buscara preservar a ordem feudal: "trata-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado" (ENGELS, KAUTSKY, 2012, p. 18).
Para Engels, pois, o Direito tem uma função essencialmente conservadora na sociedade capitalista. Ele mascara as relações reais, dando a elas uma veste de "igualdade" e de "liberdade" - por conseguinte, para aqueles que buscam uma crítica radical ao capitalismo, vale aquilo que György Lukács disse: é preciso "afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica" (LUKÁCS, 2007, p. 57). O autor de O Socialismo Jurídico, inclusive, é explícito quando se trata da necessidade da crítica à concepção jurídica de mundo por parte daqueles engajados no movimento dos trabalhadores. "A classe trabalhadora [...] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes da burguesia" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 21).
A concepção jurídica de mundo, pois, é indissociável do domínio capitalista, sendo incapaz de ir "além do capital".
Conclui-se, desse modo, que em ambas as figuras pelas quais a esquerda se apresentou preponderantemente no século XX, como disse Engels acerca do socialismo jurídico, deixou-se - mesmo que com tensões que não podem ser analisadas aqui - "de modo mais ou menos intacto o cerne do problema, a transformação do modo de produção" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20).
Em ambos os casos mencionados se permaneceu, em grande parte, no nível da distribuição de bens e de renda. A superação da relação-capital (com a consequente transformação real do modo de produção) acabou sendo vista, no melhor dos casos, como uma tarefa futura. Pode-se dizer que a espécie de socialismo que triunfou de modo limitado no século XX foi aquele que Marx chamou de "vulgar" - nele a regulamentação jurídica da produção e da distribuição, em teoria, em prol da coletividade, foi confundida com o socialismo.
Portanto, deve-se perceber que uma crítica às experiências passadas pode vir da direita ou da esquerda - o século XXI vem sendo aquele do triunfo do neoliberalismo, da crítica de direita. Assim, é preciso ver a crítica marxista também. Ela, em considerável parte, baseia-se na crítica à "total incapacidade de compreender aquilo que ultrapasse o estreito horizonte jurídico" (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 35). Ou seja, tem-se postura contrária tanto ao capitalismo como às formas ilusórias de superá- lo, como o socialismo vulgar.
A postura marxista é radical, certamente - busca a transformação substantiva da tessitura da sociedade. No entanto, diante de uma sociedade em que o "socialismo real", a social-democracia e o projeto neoliberal foram golpeados de modo sério, o radicalismo consequente talvez seja proveitoso.
Marx teceu comentários ácidos acerca do movimento socialista de sua época, que herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção
O marxismo hoje
Agora já se pode dizer: tanto a socialdemocracia como o "socialismo real" ficaram vinculados, mesmo que com tensões, ao domínio do capital. Ou seja, seguindo Marx e Engels, ao contrário do que se diz muitas vezes hoje, a esquerda não fracassou por querer demais.
O que O Socialismo Jurídico esclarece para o presente não diz respeito só à necessidade da crítica à "concepção jurídica de mundo"; a obra deixa claro que sem a radicalidade não há crítica verdadeira ao capitalismo. Quando se trata de "transformação do modo de produção", não há meio termo. A busca de uma sociedade mais humana, uma sociedade emancipada, não vem com as conquistas parciais que pressupõe o capitalismo; também não parte pela mera mudança do regime de propriedade (da propriedade juridicamente individual para a propriedade coletivo-estatal).
Pode-se dizer que a espécie de socialismo que triunfou de modo limitado no século XX foi aquele que Marx chamou de "vulgar"
A teoria marxista pode ser mais atual do que nunca por ser a única capaz de ir às raízes dos problemas que afligem a vida do homem da sociedade capitalista. Diante do fracasso relativo da esquerda do século XX e das desigualdades e distorções geradas pelo neoliberalismo, a mencionada obra de Engels pode nos fazer questionar os próprios fundamentos da sociedade contemporânea - esse seria o único caminho para um mundo essencial e verdadeiramente melhor.
* Vitor Bartoletti Sartori é mestre em História pela PUC-SP, doutorando em Filosofia do Direito pela USP e autor do livroLukács e a Crítica Ontológica ao Direito.
E-mail: vitorbsartori@gmail.com
Referências
ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O Socialismo Jurídico. Trad. de Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.
LUKÁCS, György. O Jovem Marx e Outros Escritos Filosóficos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.
_______. O Capital. Vol. II. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital: Rumo a uma Teoria da Transição. Trad. de Paulo Cezar Castanheda e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002
Revista Sociologia
Um comentário:
Georg Lukach não e hungaro, mas sim, um racista judeu! No comunismo os pederastas veados foram exterminados como Lixo Capitalista e Burguesia Degenerada! Bandeira de pederastas homossexuais existe só no Ocidente podre, não no comunismo!
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