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A mulher e seu cão (em imagem termográfica): em todas as culturas humanas, há um padrão de relacionamento com os cães
Tudo começou há 15 mil anos, no Paleolítico Superior, com a primeira divisão de trabalho entre os sexos da espécie humana. Os homens caçavam e garantiam a segurança do grupo. As mulheres, com vida mais sedentária, coletavam alimentos e cuidavam dos filhos. Foi neste contexto que se iniciaram as relações entre humanos e canídeos. Pesquisas na área de zooarqueologia e antropologia sugerem que foram as mulheres que forjaram a aproximação entre as duas espécies, e as responsáveis pelo primeiro impulso de domesticação e convivência harmoniosa entre humanos e os ancestrais dos cães domésticos de hoje, os lobos selvagens.
Baseada em consistente bibliografia, a pesquisadora Mary Elizabeth Thurston, no livro The lost history of the canine race, uma elegante síntese sobre o tema, aponta que os primeiros contatos se deram de forma prosaica, mas admirável: a adoção. Matilhas de lobos sempre ameaçaram populações humanas. E os homens, determinados a se defender de ataques, eliminavam os animais adultos que rondavam os entornos de suas habitações. Ao abater os adultos, no entanto, inúmeros filhotes ficavam órfãos, entregues a um meio hostil, com chances mínimas de sobrevivência. Atraídos principalmente pelos odores produzidos pelas atividades humanas, os filhotes acabavam se aproximando. E as mulheres, em vez de simplesmente darem a eles restos de alimentos, amamentavam-nos com o mesmo leite dispensado aos filhos. Essa aproximação fez com que filhotes se integrassem ao grupo, na qualidade de recém-chegados
e se ambientassem ao convívio humano. A pesquisadora aponta que evidências dessa teoria foram encontradas a partir do século 19, entre povos indígenas em várias partes do mundo. Elas comprovariam a maneira como cães e humanos se aproximaram para consolidar uma relação que, agora, faz desse animal o melhor amigo do homem.
Quando iniciei a elaboração deste artigo deparei-me com um livro que, a meu ver, é uma sugestiva leitura para todos aqueles que trabalham ou apenas se interessam por animais. Trata-se
de Cool cats, top dogs, and other beastly expressions, escrito pela especialista em dicionários Christine Ammer. São mais de 1.200 palavras, provérbios e expressões da língua inglesa relacionadas a animais, ou melhor, criadas através dos tempos a partir das relações entre humanos e outras espécies animais que os cercam.
O que torna o livro ainda mais fascinante é perceber, com a ajuda dele, que muitas das palavras, provérbios e expressões em inglês têm correspondência, por exemplo, em português. Trata-se, obviamente, de um processo de universalização de ideias, conceitos e, principalmente, comportamentos humanos. A contribuição mais importante da autora, nesse caso, é a dimensão histórica, ou etimológica, que procurou dar a cada item incluído no livro. Neste sentido, vale destacar aqui a frase com a que Christine Ammer intitula o capítulo específico sobre o universo sociocultural criado em torno do cão. Provocativamente, ela chamou o capítulo de “A dog’s life”, “uma vida de cachorro”, ou “uma vida de cão” expressão conhecida e largamente utilizada no Brasil e em muitas outras partes do mundo.
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Índia Guajá amamenta porco-do-mato: prática comum também com filhotes de lobo ajudou na aproximação com os humanos
Para nós, brasileiros, não são necessárias longas explicações sobre o que significa ter ou levar uma vida de cão. Aos menos a maioria certamente sabe de que se trata. Segundo a autora, “O cão pode ser o melhor amigo do homem, mas nossa língua não demonstra que o inverso seja verdade”, e isso porque, segundo ela, com muito mais frequência os termos relativos a cães têm conotação negativa, depreciativa ou humilhante.
A expressão “uma vida de cão” muito provavelmente surgiu a partir da observação direta desses animais, ou melhor, foi criada de maneira espontânea, refletindo o que os humanos impingiam a esses animais. Ao abandoná-los, persegui-los e torná-los objeto de violência ou de puro interesse, estavam, de muitas maneiras, reproduzindo o que faziam com membros de sua própria espécie. Mas, no caso dos cães, o grau de sadismo, frieza e indiferença foi, historicamente, não apenas maior, mas, eventualmente, ainda mais requintado. A bibliografia que registra a história dessas relações – como por exemplo os livros de Thurston e Ammer – é reveladora e nos faz pensar tanto na origem quanto nas implicações da expressão “uma vida de cão”. Além disso, questiona nossa postura nesse longo processo de relações com os outros animais.
O domínio da espécie humana sobre os canídeos também começou na pré-história. Domesticados, de animais de companhia e convivência, os lobos muitas vezes se transformaram, principalmente durante os períodos de grande fome, em fonte de alimento. À medida que as experiências do homem foram se tornando mais complexas suas relações com animais, particularmente com os cães, também passaram a formas cada vez mais intrincadas e paradoxais. No Egito Antigo, por exemplo, cães eram considerados sagrados e serviam de guardiães para monarcas. Atingiram respeito tão elevado que a cidade de Hardai ficou conhecida como “a cidade dos cães”. Estavam por todas as partes, sob a institucionalização e popularização do culto de Anúbis, deus da morte e dos moribundos, com corpo de homem e cabeça de cão.
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O deus Anúbis egípcio: cães tinham privilégios faraônicos, como circular por templos, mas também eram usados em sacrifícios
Egito, Privilégios e Sacrifícios
No Egito, se por um lado os cães tinham privilégios faraônicos, podendo inclusive viver no interior de templos sagrados, por outro eram o principal instrumento de sacrifício. No século 19, britânicos que faziam escavações em cemitérios, tumbas e câmaras subterrâneas encontraram milhares de múmias de cães, gatos, falcões e outros animais remanescentes de sacrifícios.
Relatos apontam que mais de 100 mil corpos desses animais foram encontrados nesse período. Por volta de 1880, toneladas deles, mumificados, foram levados do Egito para a Inglaterra e,
em seguida, pulverizados e usados como fertilizantes em jardins. Assim, o que era sagrado em uma cultura, não foi mais que adubo para outra.
Conforme Thurston, acredita-se que peregrinos que lotavam a cidade de Hardai, em períodos específicos do ano, eram estimulados a pagar para que muitas dessas múmias fossem enterradas, uma forma de expressar devoção ao deus Anúbis. Milhares de cães eram mortos e embalsamados em canis anexos aos templos. Pesquisas arqueológicas utilizando exames com raios X demonstram que essas múmias eram produzidas em massa, às pressas e, muitas vezes, com abate de filhotes, a maioria com menos de um ano de idade. Acredita-se que os filhotes eram preferíveis porque o processo de mumificação era mais rápido e econômico, já que o objetivo principal era a quantidade deles para abastecer a cidade, nos momentos dos festivais religiosos ao deus Anúbis.
A matéria-prima principal para a confecção das múmias era farta e em constante crescimento. Além dos canis, de propriedade dos templos, as ruas das cidades egípcias estavam repletas desses animais sem dono.
Sacrifícios aos Deuses
Essa mesma história do Egito se repetiria na Grécia Clássica e também em Roma. Na Grécia, no entanto, deliberadamente optou-se pelos cães de “classe baixa”, principalmente por serem acessíveis às camadas pobres da população. Assim, animais abandonados tornaram-se populares nos sacrifícios religiosos. Milhares deles eram oferecidos anualmente aos deuses com a intenção de aplacar tanto as violentas tempestades de verão como secas prolongadas que inviabilizam a produção dos campos. Os belicosos espartanos tinham uma particularidade: escolhiam especificamente cães pretos para serem sacrificados ao deus Ares e à deusa Hécate. Do sagrado ao secular, em se tratando da história dos cães, a passagem foi muito rápida.
Nesse período, personalidades começaram a se fazer acompanhar de grandes cães. Alexandre, o Grande, tinha cães de caça trazidos da Índia. Segundo Thurston, ele ficou chocado com o que viu envolvendo cães: a luta, em uma arena, entre um cão molosso e um leão. Durante a demonstração, a mando de um nobre indiano, dono do animal, várias partes do cão iam sendo amputadas para comprovar que mesmo assim ele continuava “bravamente” atacando e tentando se defender do rival. No final do “espetáculo” Alexandre recebeu exemplares de presente.
Em Roma a situação não era diferente. Frequentemente cães eram usados para lutar com gladiadores, leões e ursos. Em outras ocasiões, após terem sido mantidos durante dias privados de alimentação, eram empregados como “carrascos” para atacar e devorar prisioneiros. Iniciava-se, também por essa época, o uso dos cães-de-guarda. Foi quando surgiram os primeiros avisos alertando sobre “cave canem”, que, para quem nunca estudou, ou se esqueceu do latim, significa literalmente “cuidado com o cão”. Rapidamente percebeu-se que esses animais, devidamente treinados, trariam grande ajuda na guerra: eram velozes, fortes e, tornados violentos, podiam derrubar um soldado do cavalo e matá-lo em seguida.
Assim como a religião e a tecnologia de guerra, a ciência da Antiguidade também utilizou cães para seus interesses. O médico grego Cláudio Galeno, que viveu entre os anos de 129 e 199 d.C., talvez tenha sido o primeiro a fazer sessões de vivissecção para investigações anatômicas. Em suas aulas se valia de cães, mas apenas os apanhados nas ruas, para demonstrar suas descobertas a seus admirados alunos.
Em contraposição, foi na Antiguidade que também começou a tomar forma o reconhecimento da fidelidade, sensibilidade e bondade do cão para com o homem e vice-versa. Segundo Thurston, greco-romanos foram tocados pela qualidade “humana” da personalidade canina. Isso surgiu porque escritores mais sensíveis observavam que, mesmo tendo suas vidas constantemente ameaçadas, ainda assim os cães procuravam a companhia humana.
Infelizmente, grande parte das relações entre o homem e o cão, na atualidade, não decorre da fidelidade animal e muito menos da memória remanescente de 15 mil anos, iniciada por fêmeas humanas do Paleolítico Superior. A maior parte de nossas atitudes para com os animais em geral, e os cães em particular, tem como fonte experiências mais sombrias que começaram a se desenvolver na Antiguidade. Desse período até agora, em todos os campos de atuação humana, das ciências às tecnologias, das artes às religiões, da vida pública aos recônditos da vida privada, guardadas as proporções e especificidades, temos utilizado como trampolim para novas “descobertas” o que muitos egípcios, gregos e romanosjá faziam com os animais no passado.
Biblioteca Nacional, Paris
tratamento das enfermidades dos cães , pintura de Gaston Phoebus, mostra a atenção que recebiam na Idade Média
Na Idade Média, os cães foram estigmatizados e associados à catástrofe da Peste Negra: fugia-se deles como da própria doença. Na conquista da América foram treinados para devorar populações indígenas: as sessões conhecidas como “doggings” eram verdadeiras carnificinas. A caça, desde que se transformou em esporte, principalmente da elite, nunca dispensou os cães e essa prática foi sistematicamente uma forma de demonstrar status e eficácia. Desde o século 17, cães foram empregados na tração de pequenas carroças e na movimentação incessante de moinhos e de outros pesados equipamentos domésticos. Eram a opção mais barata, comparada aos cavalos e muares. Durante as duas grandes guerras mundiais, e também nos conflitos do Vietnã e da Coreia, milhares de cães foram arrebanhados para “servir” nas frentes de luta: terminados os conflitos, os poucos que sobreviveram eram vistos como equipamento bélico usado e, assim, abandonados onde quer que estivessem. Pouquíssimos foram devolvidos a seus antigos donos.
No século 19, acentuaram-se as competições de cães de raça: muitas delas foram tão acirradas que era comum cães adversários serem envenenados ou terem a pelagem simplesmente destruída. A partir de 1870, com a revolução científico-tecnológica, cães se transformaram, entre inúmeras outras coisas, em cobaias exemplares. Hoje é difícil saber ao certo quantos são,
diariamente, usados nos milhares de laboratórios de todo o mundo.
Foi só no século 19, na Inglaterra, que começaram os primeiros movimentos mais efetivos em defesa dos animais. Em 1830, seis anos após sua fundação, a mais antiga organização do gênero, a Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals, iniciava no Parlamento Britânico uma campanha para banir o uso de cães como animais de tração de veículos. Em 1839, apesar dos protestos de criadores e comerciantes, a Inglaterra seria também o primeiro país a outorgar uma lei inicialmente proibindo essa prática em Londres e, em 1855, no país como um todo. A partir daí, os Estados Unidos e diversos países europeus seguiram o exemplo britânico e foram criando suas próprias organizações e leis. Essas ideias chegaram tardiamente ao Brasil, mais especificamente à cidade de São Paulo. Aqui, apenas em 1895 foi fundada, na cidade de São Paulo, a União Internacional Protetora dos Animais (UIPA). Não deixa de ser sintomático o fato de São Paulo sediar a primeira organização de proteção animal no Brasil e de, nos primeiros anos, as ações dessa organização ficarem restritas quase exclusivamente a cães.
Até a primeira metade do século 19, a cidade continuava praticamente a mesma desde sua fundação.Com população aproximada de 20 mil pessoas, abrigava por volta de 4 mil prédios e fisicamente pouco avançara para além dos limites dos rios Tietê e Tamanduateí. A partir de 1870, com o desenvolvimento da cafeicultura, que estimulou o ferroviarismo, chegaram as indústrias, refletindo, entre outras situações, muitas das descobertas da revolução científico-tecnológica iniciada na Europa e Estados Unidos. Em curto espaço de tempo, a cidade transformou-se em um dos principais polos de atenção nacional e internacional.
Acervo da Biblioteca Municipal Mário de Andrade , São Paulo
Charge publicada no jornal Diabo Coxo, com texto de Luís Gama e ilustração de Angelo Agostini, ironiza a matança de cães no século 19
Essas condições levaram a uma profunda transformação urbana, ecológica, sociocultural e políticoeconômica. Um dos fenômenos mais surpreendentes relacionado a essas mudanças foi o explosivo crescimento populacional. Se em 1860 a cidade abrigava 20 mil pessoas, apenas uma década depois, conforme aponta o geógrafo Aroldo de Azevedo, já existiam 31 mil habitantes.
Daí por diante o crescimento foi exponencial: em 1890 dobrou para 64.934; em 1900 atingiu 239.820; em 1920: 579.033; em 1940 passou de 1 milhão, chegando à cifra de 1.318.539 pessoas; e, em 1950, duplicou novamente para um total de 2.198.096 habitantes. Acompanhando esse crescimento da população, houve aumento significativo no número de cães na cidade. Contra a parcela de animais vivendo nas ruas, tratravou-se uma operação de guerra, principalmente por parte dos órgãos públicos municipais.
Cães, abandonados ou não, sempre foram vistos por aqui como um problema para a municipalidade. Em 19 de julho de 1578 foi tomada a primeira medida legal para tentar evitar que cães continuassem a atacar e matar bezerros de criadores instalados na cidade. Como ocorrera com a cidade, o trato com os cães mudou muito pouco desse período até a primeira metade do século 19. Mas, com a vereança de 1578, começou um dos mais complexos processos históricos que se desenvolveu em São Paulo. Uma história ainda praticamente desconhecida, com mais de cinco séculos de existência, marcada por beleza e sensibilidade, evidência de contradição e constâncias de perversidade.
O Fim das Bolas Envenenadas
O ano de 1899, por exemplo, foi um marco na história dos cães da cidade. Antônio da Silva Prado, assim que assumiu a prefeitura da cidade, em uma de suas primeiras medidas, procurou acabar com uma prática havia muito utilizada no controle da população canina. A Lei no 384, de 21 de março daquele ano, reconhecia “como dívida certa e líquida a quantia de trezentos mil réis, proveniente de fornecimento de bolas envenenadas, feito por Manoel José Gonçalves,”. Em seu primeiro relatório, como prefeito da cidade, ele esclarecia a medida: “Eram gerais e justíssimas as queixas contra o bárbaro sistema de matança de cães, por meio de bolas envenenadas, distribuídas nas ruas centrais e dos arrabaldes”. Pelo menos desde 1875 esse método era legalmente usado, pois no Código de Posturas desse ano existem referências diretas a ele. O uso das bolas foi tão frequente no cotidiano da cidade que não passou ileso à pena incisiva do cartunista Angelo Agostini, o mais conhecido da época.
Como sugere Agostini, esses “canicídios”, legais ou ilegais, atingiam além dos cães abandonados, animais de raça e crianças pobres, talvez filhos de escravos ou negros libertos que, muito provavelmente, também consumiam as bolas envenenadas. O crescimento desordenado da cidade, a partir da década de 1880, além de trazer uma série de outros problemas, comprometeu ainda mais o já tão precário sistema de infraestrutura e saneamento básico disponível.Mas as reclamações contra os descasos da Prefeitura eram constantes, mesmo antes
dessa década.
Acervo da Biblioteca Municipal Mário de Andrade , São Paulo
Charge do Diabo Coxo, de Gama e Agostini, associava os cães abandonados com a falta de limpeza de São Paulo
A partir daí, em nome do sanitarismo, higiene e saúde pública, os cães passariam para outro patamar de vigilância e importância. O Artigo 60, do Código de Posturas de 1886, por exemplo, estipulava que era proibido soltar nas ruas da capital e povoações vizinhas animais hidrófobos ou atacados de outra qualquer moléstia contagiosa. Se veio a proibição, evidentemente é porque essa era uma prática comum. Para tentar freá-la, o infrator pagaria 30 mil réis de multa, soma elevada para o período, e ficaria oito dias na prisão. Os animais que fossem encontrados naquele estado, vagando pela cidade e seus arredores, seriam imediatamente eliminados pela fiscalização. Não se conhecia, ainda, a vacina antirrábica. Na realidade, data exatamen-te de 1886 o período em que o microbiólogo francês Louis Pasteur, finalizava o desenvolvimento desse medicamento.
Nesse contexto, apareceria nova associação depreciativa em torno do cão. A partir das leis de 1893, trocou-se a forma de nomear os cães sem raça, soltos pelas ruas. Esses animais, então, foram taxativamente qualificados de “vagabundos”, uma forma de diferenciá-los dos “cães de raça especial” de propriedade da elite econômica paulistana. Antes de 1893 eram conhecidos como cães “vagantes” que, na acepção ligada ao movimento, tem conotação mais amena e positiva que “vagabundo”. Vagante é o ser que anda sem rumo certo, perambula, vagueia ou movimenta-se de forma descomprometida. “Vagabundo”, homem ou cão, é aquele que leva vida errante, que de forma afrontosa vagabundeia, leva a vida no ócio, é indolente e vadio. Age sem seriedade ou com desonestidade, é malandro e canalha, não tem constância e é volúvel. É de má qualidade, inferior, ordinário e barato, não tem residência habitual. Para os desejos de construção de uma cidade moderna essa diferenciação era fundamental, e portanto, todos os “vagabundos”, humanos ou cães, deveriam ser retirados de cena.
Foi nesse contexto que Antônio da Silva Prado pagou o último fornecimento de bolas envenenadas. Naquele mesmo dia, 21 de março de 1899, outra importante lei foi promulgada no sentido de garantir o fim do “sinistro e deprimente espetáculo” apresentado diariamente nas ruas da “progressista” São Paulo. Segundo a Lei 390, Silva Prado tentaria “organizar o serviço de extinção de cães vagabundos e sem donos, de modo a evitar o sistema até agora em uso, de aplicar veneno aos animais por meio de bolas, em qualquer parte em que são encontrados”. Para isso, esclarecia a legislação, “poderá o Prefeito entrar em acordo, se lhe parecer conveniente, com a União Internacional Protetora dos Animais [Uipa], confiando-lhe uma parte ou todos estes serviços”.
Foi o que fez Antônio Prado. Ciente do problema que tinha nas mãos, e da dificuldade e complexidade para resolvê-lo, aproximou-se dessa entidade. Preocupado com a quantidade de cães nas ruas e das “ameaças” que representavam para a população, conhecedor das atividades desenvolvidas no mundo por entidades de proteção animal, resolveu pedir ajuda da UIPA, responsabilizando-a “pela segurança e alimentação de todos os animais que ali [no Depósito Municipal] derem entrada”. É importante observar que, mesmo com a abolição das bolas envenenadas, continuou-se a usar o termo “vagabundo”. Além disso, o principal mecanismo no controle da população canina continuou a ser o abate sumário e, por mais paradoxal que possa parecer, a entidade incumbida oficialmente dessa prática foi a UIPA.
“Expedindo o Regulamento n. 36 de 22 de maio de 1899, [esclarecia o prefeito] que encontrareis em anexo, contratei, a 16 de outubro, o serviço, tanto da apreensão, como da extinção, com a Sociedade Protetora dos Animais, a qual se esforça por bem cumprir as estipulações, a que se obrigou, e de cujas vantagens ainda parece cedo para julgar, não cessando a Prefeitura de reclamar-lhe toda atividade. (...) Havendo a associação, a que me referi, começado os seus trabalhos em meados de novembro último, pode-se calcular o quanto tem feito, considerando-se que até à presente data foi de 2.551 o total de cães apreendidos dos quais mataram-se 2.313, entregara-se aos respectivos donos 72 e venderam-se 166. Não julgo, portanto, difícil dentro em breve vermos a cidade livre do perigo que constantemente ameaçava os transeuntes e o qual, não há dúvida, já diminui de modo considerável.”
Em 70 anos de legislação municipal que analisamos, ou seja, de 1870 a 1940, percebem-se claramente tentativas inúteis, e invariavelmente cruéis, de controlar a população de cães nos espaços urbanos. Caracterizada por revogações, emendas e acréscimos fica evidente que o poder público municipal, em seus projetos de modernização da cidade, não encontrava uma forma de “harmonizar” esses animais a seus anseios. Das bolas envenenadas ao rígido registro e cobrança de licenças e multas não havia meio de eliminar a noção de “vagabundagem” que caracterizava a vida dos cães na cidade, independentemente do fato de serem de raça ou não. A rigidez jurídico-administrativa enfrentava dificuldades para acomodar-se às maleabilidades da vida. É curioso observar que, em São Paulo, a UIPA, nos seus primórdios, esteve totalmente atrelada ao poder público municipal. Pelo que se pode observar na legislação referente a essa entidade, além de ser subvencionada pela Prefeitura, era ela que determinava o destino dos animais abandonados. O problema com os cães chegou a um ponto em que, pelas leis, são estes os únicos animais mencionados nos itens referentes às obrigações da entidade.
Antônio da Silva Prado encerrou sua longa gestão como prefeito no ano de 1911 sem conseguir resolver o destino dos cães. Mesmo com a iniciativa de se aproximar da UIPA e abolindo o uso
de bolas envenenadas, terminou sua administração sem sucesso nessa área.
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Cena típica de São Paulo, em 1905, com cães soltos nas ruas: “vagabundos” era eliminados com bolas envenenadas
Nova alteração na vida dos cães ocorreria quatro anos mais tarde. O prefeito-historiador Washington Luiz continuaria, como seus antecessores, “preocupado” com a enorme quantidade de cães soltos. Como nenhum outro, ele queria transformar São Paulo em símbolo máximo de progresso, cultura, ciência e tecnologia. Nesse sentido, para resolver o incômodo causado pelos cães, promulgou uma longa e detalhada lei, a de número 1.882, de 9 de junho de 1915, que regulamentava a “apreensão de animais perigosos ou não, encontrados errantes nas vias públicas e atacados de raiva”. Essa apreensão seria diária, e os cães encontrados, levados ao Depósito Municipal, onde ficariam pelo prazo máximo de quatro dias. A novidade oficializada pelo futuro presidente do Brasil ficou reservada ao breve Artigo 5o, quase oculto em meio a tantas normas e obrigações, e que dizia respeito à pequena parcela de animais “poupados” do “sacrifício”: “Findo, sem reclamação alguma, o prazo estabelecido no artigo anterior, os animais serão sacrificados ou cedidos a estabelecimentos científicos para pesquisas”. Curiosamente, nessas leis, foi utilizada a palavra de conotação religiosa “sacrifício”.
Com isso estava instituído, de forma oficial, o fornecimento regular de cobaias vivas para os laboratórios e institutos de pesquisa que se instalavam na cidade. Essa prática já existia pelo menos desde 1895, mas não institucionalizada e abastecida diretamente pela prefeitura. Nesse ano, o presidente da Câmara, Pedro Vicente de Azevedo, promulgou uma lei que proibia os “abusos e maus-tratos” a animais em geral. O artigo 6o dizia: “Aos animais destinados às experiências científicas de vivissecção e outras, serão aplicados anestésicos e mais meios apropriados em ordem e minorar-lhes, quanto possível, os sofrimentos”. Não esclarece, no entanto, de onde vinham esses animais, nem a que instituições científicas eram destinados. Mas, é importante lembrar, que exatamente no ano de 1895 a UIPA havia sido fundada. Ainda em 1895 surgiria a primeira associação de médicos, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
Nesse período o Museu Paulista, conhecido como Museu de História Natural, iniciava suas atividades, voltadas quaseexclusivamente à zoologia. O primeiro diretor foi o médico e zoólogo Hermann von Ihering. Em 1893 havia sido implantada a Escola Politécnica de São Paulo que, entre outros cursos, ofereceria o de engenharia agronômica, com várias disciplinas relacionadas à criação animal. Em 1892, o Laboratório de Bacteriologia do Estado de São Paulo também começava a funcionar.
Em 1915 Washington Luiz regulamentaria de fato a prática. As estatísticas do período são estarrecedoras. No Relatório do Prefeito do ano anterior consta que foram recolhidos das ruas da capital 1.097 animais de espécies variadas, 513 veículos e 1.251 volumes. A população de cães era tão grande que, nessas estatísticas, era citada separadamente. Em 1914, sob a regência de Washington Luis, foram apreendidos 5.643 cães, dos quais apenas 842 foram retirados por seus donos, após o pagamento de matrículas e multas, sendo os restantes, 4.801, “sacrificados”. Três anos depois, nas tabelas de 1917, o número aumentou para 7.427 cães, 6.880 “sacrificados”, 190 retirados, 42 mantidos em depósito e 315 enviados para estudos. A lei também não identificava as instituições de pesquisa científica e ensino a que se referia. Outro dado que não deve ser esquecido é que essas quantidades representam apenas o número oficial anunciado pelas estatísticas governamentais. “Servir” à ciência” teria sido uma forma de “dignificar” os cães “vagabundos” ou essa foi apenas uma justificativa para amenizar um problema que havia anos onerava os cofres públicos, desafiava prefeitos, vereadores e fiscais e, principalmente, maculava o esplendor e progresso da “cidade do futuro”?
Para ter apenas uma ideia aproximada da “eficiência” e dos objetivos do novo prefeito, em três anos, 1916-18, foram apreendidos 25.811 cães, e nada menos que 22.563 deles foram mortos e outros 535 utilizados em “pesquisas”. Essa verdadeira campanha de guerra da prefeitura contra os cães da cidade desenvolveu-se, com algumas alterações de métodos e eficácia, mas não de objetivos, por todo o século 20. Foi só muito recentemente, em 2008, pela lei estadual 12.916, de 16 de abril, que uma nova e positiva possibilidade foi oficialmente lançada. Essa lei estipula o controle da reprodução de cães e gatos assim como o fim do extermínio realizado pelos centros de zoonoses.
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Reportagem da revista Manchete, de 1959, mostra garoto tentando impedir a captura de cão, o Piloto: graças à repercussão, alguns meses depois ele conseguiu reaver seu animal de estimação
Ao longo de todo esse tempo, de forma espontânea e quase paralelamente às medidas governamentais, parte da população encontrou meios para dar uma chance de vida a esses animais. Essas pessoas não deixavam de representar uma espécie eficaz de “resistência” aos projetos modernizantes e autoritários de “limpeza” da cidade. Zélia Gattai, em seu livro, Anarquistas, graças a Deus, relata a certa altura que “pelo nosso enorme portão, aberto de par em par, entravam, procurando guarida, cães abandonados ou escorraçados por moleques da rua. Penalizada, mamãe recolhia e tratava quantos aparecessem por lá.” Ela se refere à história de Flox que “apareceu um dia, fugindo das pedradas de um bando de meninos. Machucado, atingido numa das patas traseiras, sangrando, corria com dificuldade, sustentado por três pernas apenas. Encontrou o providencial portão aberto, entrou, escondeu- se debaixo de um automóvel estacionado na garagem. Morta de pena, como sempre, mamãe o acolheu; conquistou a confiança do animal assustado, oferecendo-lhe água fresca, falando-lhe com carinho. (...) Tratado com todo o carinho, adotado, Flox tornou-se o nosso melhor e mais fiel amigo; em nossa companhia, viveu cerca de oito anos, eficiente guardião das crianças, sempre atento a defendê-las se fosse preciso. Seu único e grande defeito era gostar de rua”.
Os Homens da Carrocinha
Como Flox, muitos outros cães também gostavam de rua. Como Zélia Gattai e sua mãe, muitos outros moradores da São Paulo de 1910 também tinham verdadeiro asco da “carrocinha de cães”. “Eu detestava os ‘homens da carrocinha’. (...) Quando os via acuando um cão – dois e três homens, armados de laços, contra pobre e indefeso animal – sentia ódio dos covardes. Muitas vezes agarravame ao bichinho, sem jamais tê-lo visto antes, para evitar que fosse laçado.
Uma vez, enquanto os laçadores, distraídos no afã de alcançar sua presa correndo em disparada, distanciaram-se deixando a carrocinha repleta e desprotegida, Tito, um amigo e eu aproveitamos a ocasião para, num abrir e fechar de olhos, abrir a porta da jaula, soltando os cães, que nos acompanharam em desabalada carreira. Temendo ser perseguida, olhei para trás e divisei um cãozinho, todo aparvalhado, sem saber que rumo tomar, onde meter- se. Voltei rapidamente e agarrei-o a tempo de impedir que fosse laçado novamente pelos homens encolerizados. Esbravejando, eles avançavam em minha direção, dispostos a arrebatar-me o animal:
– Este cachorro é meu! – gritei, chorando, o animalzinho apertado contra o peito. – Ninguém leva o meu cachorro!
As pessoas paradas em torno da disputa tomavam minha defesa, não escondendo sua animosidade contra os “inimigos”, que não tiveram outra alternativa senão desistir. Eu já era sua conhecida de aventuras passadas e por isso me detestavam. Se pudessem me laçavam também, como aos cães.”
Por seus animais de estimação, aqueles que financeiramente podiam pagavam multas, matrícu-las e faziam longas caminhadas para reaver seus cães das “garras” da prefeitura. Quando Flox não conseguia se safar da “carrocinha” era levado, com outros cães, para um depósito municipal localizado na Ponte Pequena, nas proximidades do Clube de Regatas Tietê. Quando não havia, na linha de bondes, o “caradura”, o veículo dos operários que também permitia animais domésticos, não restava outra opção a não ser levar o cão, pela coleira, do depósito municipal
até o local de residência, no caso a Alameda Santos. “Chegávamos em casa exaustas, mas por seus cães mamãe enfrentava tudo, modificava até sua maneira de ser – normalmente cordial e cerimoniosa”. Porém, em uma cidade em ritmo acelerado de transformação, contingências da modernidade muitas vezes extrapolavam os limites da própria condição humana.
“– Moça – era um homem avisando –, seu cachorro foi atropelado...
Saímos todos correndo. Lá estava Flox estendido no meio da rua, ensanguentado, morto. Um carro passara sobre sua cabeça quando procurava fugir dos laçadores da carrocinha de cachorro. (...)
Em torno, juntavam-se curiosos. Alguns paravam rapidamente, olhavam e seguiam seu caminho, na maior indiferença, nada demais havia acontecido... Eu chorava, consumida de tristeza, quando ouvi o comentário de um homem apressado: ‘... não foi nada, não! É um vira-lata que morreu atropelado’...”
Para a construção da São Paulo moderna, vidas efêmeras e frágeis como a de Flox mostravam- se inconciliáveis, indesejáveis. Ironias da história, o pai de Zélia Gattai era dono de uma oficina mecânica. Paradoxos da modernidade. Depois de Flox, a família Gattai deparou-se com a seguinte situação: “O animalzinho [uma cadelinha de raça maltesa] fora encontrada vagando pelas ruas, sem rumo certo, uma orelha enorme inflamada, contrastando com seu corpo pequeno. A ferida aberta purgava. Dado seu tamanho, a princípio pensamos tratar- se de um filhote. Como de hábito, mamãe se encheu de pena e a recolheu: “Gente sem coração, abandonar na rua um bicho nesse estado!...” Cadelinha linda, de pelos lisos e sedosos, bege quase rosa, parecia de brinquedo. Depois de examinar bem a ferida, dona Angelina deliberou: “Vou salvar essa pobrezinha”.
Do Paleolítico Superior aos sofisticados pet shops da atualidade, cada época, cada região, cada povo e cada sistema sociocultural e políticoeconômico tem estabelecido com o cão distintas relações. De animal sagrado nos templos do deus egípcio Anúbis às criações muitas vezes clandestinas e em massa da atualidade, o homem tem usado os cães para os mais diversos objetivos. Alguns repletos de sensibilidade e troca efetiva entre espécies, outros, a maioria, marcados por abuso, maustratos, exploração, escravização. Mas é importante ter sempre claro que, na maior parte dessa longa história, as relações de humanos e cães não se estabelecerem essencialmente pela fórmula maniqueísta do bem contra o mal.
© Jefferson Coppola/Folha Imagem
Cão à espera de adoção no Centro de Controle de Zoonoses, em São Paulo (SP). Das ruas de São Paulo são recolhidos cerca de 10 mil animais por ano, e outros 3 mil são levados pela
população ao CCZ, órgão da prefeitura responsável por recolher e abrigar esses animais. Lá, ficam três dias à espera do dono. Caso ninguém apareça, os animais saudáveis e sociáveis são
vacinados, vermifugados, castrados e encaminhados para adoção. Os demais ainda são eliminados.
O que torna essa situação ainda mais complexa é que, por trás de atitudes muitas vezes aparentemente mais sensíveis, pode existir um substrato nebuloso em que o homem acaba quase sempre impondo sua vontade, poder, força, capacidade intelectual, necessidade, crença e interesse econômico. Estima-se que hoje, no Brasil, existam cerca de 29 milhões de cães domiciliados. Qual o número dos que vivem nas ruas? Difícil saber. Para suprir parte desse fabuloso mercado formal, somente em São Paulo é possível encontrar mais de 1.300 pet shops. Num mundo como este, cães e outros animais são transformados em objetos de consumo e, em muitos casos, são descartáveis.
Ainda assim, é importante nunca esquecer que é também do centro desse gigantesco cadinho que se fundem, que nascem as mais profundas manifestações de respeito e convivência.Talvez tenhamos buscar inspiração não no curto espaço de tempo de apenas 6 mil anos conhecido como História. Talvez esteja no período anterior, na Pré-história, naquele tempo profundo e quase desconhecido, ou mais especificamente nas relações das mulheres do Paleolítico Superior com os filhotes de lobo, a chave e a centelha para uma melhor convivência com todas as espécies animais que ainda nos cercam.
Scientific American Brasil
2 comentários:
Nossa, texto incrível. Adoro história e aqui, fala-se dos cães de São Paulo, minha terra natal. É frustrante saber que em tantos anos, pouca coisa mudou para nossos fiéis amigos.
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