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Trabalhadores negros num porto do rio James, Virgínia
Anne-Claire Fauquez
O que o mercado da Filadélfia, as igrejas protestantes de Newport, as tavernas de Nova York e os armazéns de Boston tinham em comum? Todos eles eram palcos de leilão de escravos negros. Assim era o cotidiano das colônias ao norte da linha Mason-Dixon, um traçado imaginário de 400 km de comprimento, estabelecido antes da proclamação da independência, em 1776, que serviu, até o século XIX, de fronteira oficial entre o norte e o sul dos EUA.
Os presidentes Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, heróis da guerra contra os britânicos pela independência, compravam, vendiam e empregavam também mão de obra africana. Os primeiros escravos foram trazidos logo após a criação das colônias. Na Nova Inglaterra, apesar do clima severo e do solo árido, Samuel Maverick tornou-se em 1624 o primeiro proprietário de dois escravos, apenas quatro anos depois da chegada dos primeiros colonos ingleses, os pilgrims. Dois anos mais tarde, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais trouxe 11 africanos para Nova Amsterdã.
Quando os ingleses tomaram posse dessa colônia e a rebatizaram de Nova York, em 1664, os escravos representavam 20% da população da cidade. Na Pensilvânia, o colono inglês William Penn autorizou em 1684 a vinda de 150 africanos; ele mesmo possuía alguns em sua propriedade de Pennsbury e disse preferir os escravos aos serviçais brancos, pois podia conservá-los pela vida toda. Durante o século XVIII, a população negra continuou a crescer, chegando a atingir 14% em Nova York, 12% em Nova Jersey e 10% em Rhode Island.
As companhias de comércio e os proprietários de colônias incentivaram a importação oferecendo aos novos colonos dezenas de hectares para cada escravo para compensar a escassez de mão de obra. Os índios, a única força de trabalho presente no continente, foram pouco escravizados por dois motivos: porque foram dizimados pelas doenças que os europeus trouxeram para o Novo Mundo; e porque os europeus tinham a preocupação de manter relações pacíficas com as tribos. Apenas os prisioneiros de guerra vindos da Carolina do Sul e Antilhas eram empregados no norte.
COLEÇÃO PARTICULAR
Nas cidades portuárias do Norte, os escravos executavam trabalhos de construção e carga; no campo, eram empregados em pequenas e grandes lavouras
A grande maioria desses escravos não vinha diretamente da África, mas do Caribe. Geralmente eram os mais velhos ou aqueles com problemas de saúde, que não tinham sido vendidos nos mercados caribenhos ou do sul. Apesar de temidos por sua natureza rebelde e obstinada, eram apreciados por dominar o inglês, conhecer as tarefas que deveriam cumprir e ter imunidade às doenças. Nova York se distinguia pela forte presença de angolanos e congoleses – provenientes dos antigos armazéns portugueses nos quais holandeses se abasteciam – e malgaxes (nativos de Madagascar). Essa particularidade pode ser explicada pela estreita relação entre os comerciantes nova-iorquinos e alguns piratas no oceano Índico.
A imagem do escravo, sob o olhar benevolente de seu senhor, dedicando-se apenas às tarefas domésticas e ao artesanato, longe do exaustivo trabalho no campo, já foi desmentida pela história. Escavações em um cemitério africano descoberto em Nova York, em 1991, revelaram nos esqueletos numerosas deformações físicas decorrentes de atividades penosas. Eles certamente foram obrigados a puxar e a levantar objetos grandes e pesados, carregá-los na cabeça e nos ombros, e a dobrar repetidamente o tronco e os joelhos.
Nas cidades portuárias do norte, os escravos eram responsáveis por diversos trabalhos de construção e carga. A célebre Wall Street era originalmente uma simples paliçada de madeira, construída em parte pelos escravos para proteger a cidade dos ataques indígenas e ingleses. Muitos dos que trabalhavam para os artesãos, açougueiros, padeiros, sapateiros, ferreiros, e carpinteiros tiveram de se adaptar mais rapidamente a fim de dominar a língua e o ofício do senhor.
No campo, os escravos trabalhavam em uma agricultura de subsistência temporária, mais diversificada que a do sul, em pequenas fazendas onde raramente havia mais de cinco cativos. Porém, ao norte da cidade de Nova York, ao longo do rio Hudson, em Long Island, e no condado de Narragansett, ao sul de Rhode Island, existiam grandes áreas que empregavam, como na Virgínia, por volta de 20 escravos. Madeira, cereais, farinha, biscoitos, leite, frutas, legumes, peixe seco, gado e cavalos serviam ao comércio local e eram exportados para a Europa e o Caribe.
UNIVERSIDADE DE VIRGINIA
Nas Antilhas, toda a terra era usada para cultivo do açúcar e os alimentos eram importados do norte dos EUA
As colônias do norte marcaram assim a entrada no comércio triangular e participaram das trocas transatlânticas e intercoloniais. Nas Antilhas, onde toda a terra era usada para o cultivo do “ouro branco”, o açúcar, não havia espaço para plantar alimentos, que deviam ser importados do norte. O açúcar e seus derivados, como o melaço, eram enviados às refinarias na Nova Inglaterra para a produção de rum, bebida usada como moeda de troca na aquisição de novos escravos na África. A partir de 1644, ano da primeira viagem entre Boston e as Antilhas, essas transações continuaram a crescer, fazendo de Newport, Perth Amboy e Nova York os portos e mercados negreiros mais importantes das colônias americanas.
Às vésperas da proclamação da independência, dois terços dos navios americanos envolvidos no tráfico partiam de Rhode Island e 80% das exportações da Nova Inglaterra seguiam para as Antilhas britânicas. Durante a Guerra da Independência, quando os navios não puderam ser enviados para as ilhas, cerca de 15 mil escravos morreram na Jamaica, entre 1780 e 1787. O comércio era muito rentável para os habitantes da região, de mercadores, investidores, seguradores, armadores e capitães até marinheiros, para não falar de muitas profissões indiretamente dependentes desse comércio, como os fabricantes de cordas, ferreiros, carpinteiros e veleiros. As destilarias multiplicaram-se. Havia 12 em Nova York e 22 em Newport. A imprensa também se beneficiou, publicando anúncios de escravos para alugar ou de fugitivos.
A maior parte das elites do norte foi forjada na sua relação com o tráfico. Ezra Stiles, presidente da Universidade de Yale entre 1778 e 1795, era proprietário de escravos; seis prefeitos da Filadélfia eram comerciantes de escravos. Muitos fazendeiros ingleses partiram de Barbados para se estabelecer na colônia de Nova Iorque: Nathaniel e Grissel Sylvester se instalaram em Shelter Island, na ponta leste de Long Island, onde fundaram a fazenda Sylvester Manor; Lewis Morris, por sua vez, adquiriu terras em Nova Jersey e ao norte da cidade de Nova York, às quais deu o nome de Morrisania, hoje um bairro. Quando morreu, em 1691, ele deixou 66 escravos.
Essas colônias eram totalmente marcadas pela escravidão. Do desenvolvimento econômico à estrutura social, passando pela mentalidade dos colonos, que conviviam com essa realidade. Ao contrário das grandes plantações da Carolina do Sul, poucos proprietários na cidade tinham recursos para hospedar sua mão de obra em um alojamento separado. Os escravos eram obrigados a dormir na cozinha, no sótão ou no porão. Privados de intimidade, ficavam sujeitos às vontades de seus donos, que podiam vendê-los a qualquer momento, por falta de trabalho, para aproveitar a oportunidade de uma transação financeira ou para sanar uma dívida.
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Anúncios de escravos para alugar ou de fugitivos eram comuns na impresa. Este oferece recompensa pela captura ou perdão ao escravo se ele retornar por vontade própria
À medida que a população negra crescia, as autoridades elaboraram leis para contê-la. A primeira colônia americana a reconhecer legalmente a escravidão foi Massachusetts, em 1641. Seguiram-se muitos regulamentos tendo como objetivo controlar essa população e evitar conspirações e rebeliões. Limitou-se a liberdade de circulação, os escravos foram proibidos de portar armas, eram forçados a carregar um passe quando se afastavam da casa, e a respeitar o toque de recolher. Já os habitantes da cidade foram desencorajados de comercializar bens com eles. Em 1706, o destino dos escravos nova-iorquinos foi selado quando foi decretado que o batismo não podia mudar sua condição de servo, tornando-a assim hereditária, através da mãe. Em caso de infração, as punições iam do açoitamento em praça pública a várias formas de tortura, como o pelourinho, as marcas a ferro quente, mutilação, desmembramento ou venda para o Caribe. Em 2 fevereiro de 1697, um negro condenado por assassinato foi encontrado morto na cela. A cidade decidiu, mesmo assim, infligir a punição ao cadáver. Para que essas leis funcionassem, as autoridades tentavam ganhar o apoio da população condenando brancos e negros livres que entretivessem os escravos (pois isso os incentivaria a mendigar), que os ajudassem a escapar ou lhes oferecessem hospedagem. Mas a implementação dessas leis repressivas e punitivas não foi suficiente para sufocar os impulsos de revolta por parte dos escravos.
Em 1657, um grupo de negros ajudou índios a atear fogo em um edifício em Connecticut; em 1708, no condado de Queens, um escravo índio chamado Sam assassinou a machadadas, com o auxílio de uma mulher negra, a família de seu senhor, William Hallett Jr.; em 7 de abril de 1712, 23 africanos e índios se reuniram para atear fogo a um alpendre e atrair para a armadilha os habitantes que tentavam apagá-lo. Armados com pistolas, facas e machados, eles mataram nove brancos e feriram sete. Cientes do perigo que representavam os escravos, os habitantes de Nova York sucumbiram, em 1741, à paranoia e à histeria, quando passaram a suspeitar, a partir de rumores, que uma conspiração se tramava. O caso terminou com a execução e a deportação de centenas de indivíduos. Dois anos mais tarde, Nova Jersey enfrentou a mesma crise e prendeu 30 suspeitos.
Tribunais foram especialmente criados para julgar os crimes dos escravos. As leis foram reforçadas, dirigidas por sua vez aos negros livres, cujo acesso à propriedade privada foi proibido. As sanções contra eles se tornaram mais pesadas, ameaçava-se escravizá-los novamente, por exemplo, em caso de casamento ou relação sexual com brancos. Vistos como encargos para a sociedade, que temia sua influência, suas condições de emancipação foram restringidas, exigia-se que os senhores pagassem uma caução de 200 libras esterlinas para que a cidade se encarregasse deles, o que poucos proprietários podiam pagar.
O processo de emancipação foi lento e tortuoso, pois os ideais abolicionistas atacavam a forma já instaurada de coexistência entre as duas raças. O estado de Vermont foi o primeiro a abolir a escravidão, em sua constituição de 1777, seguido por Massachusetts e New Hampshire, em 1783. Nos estados do sul da Nova Inglaterra e do centro, o processo foi gradual. Na Pensilvânia, em 1780, depois em Connecticut e Rhode Island, em 1784, a lei libertou os escravos nascidos antes dessas datas; quanto aos que nasceram depois, eles só podiam ser alforriados ao atingir uma determinada idade (24 anos para os homens e 21 para as mulheres, na Pensilvânia). Os dois últimos a legislar em favor da emancipação foram os estados de Nova York, em 1799, e Nova Jersey, em 1804, que só libertaram, e aos poucos, os escravos nascidos após a lei. No primeiro, foi preciso esperar até 1817 para que uma segunda lei alforriasse, a partir de 1827, os escravos nascidos antes de 4 de julho de 1779. Esse truque legislativo possibilitou que os senhores obtivessem uma compensação pela perda de sua propriedade. Ou até mesmo a conservassem, como mostra o caso de Caesar, um escravo da família Nicoll-Sill, de Bethlehem, no condado de Albany. Nascido em 1737, ele morreu em 1852 com a idade de 115 anos, sem saber da existência da lei de 1817 e, assim, serviu seu senhor por seis gerações.
VERMONT HISTORICAL SOCIETY
Primeira página da Constituição de Vermont, 1777: o estado foi o primeiro a decretar o fim da escravidão
Em 1810 havia ainda 27 mil escravos nos estados livres, principalmente em Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia. Se, por um lado, as cidades assistiram ao aumento da população negra livre, a escravidão permaneceu firmemente enraizada no campo. Houve também uma mudança nas tarefas atribuídas aos negros, que perderam o controle do trabalho qualificado e foram relegados a tarefas domésticas ou não qualificadas.
Apesar de no norte a segregação não ser explicitamente codificada – no sul havia as com as chamadas Jim Crow laws, série de decretos e regulamentos promulgados no final do século XIX – lá os negros livres sofreram segregação de fato antes da Guerra de Secessão. Em A democracia na América, Alexis de Tocque-ville disse que “o preconceito racial (lhe) parece mais forte nos estados que aboliram a escravidão do que naqueles onde a escravidão ainda existe, e em nenhum lugar ele se mostra tão intolerante quanto naqueles estados onde a escravidão foi sempre desconhecida”. De fato, casamentos mistos eram desencorajados, os negros eram dissuadidos de votar ou de participar do júri em julgamentos, enquanto o desenvolvimento de escolas e igrejas segregadas era incentivado.
Essa população recém-emancipada incomodava porque usurpava o trabalho dos brancos, chegando a provocar revoltas raciais, como em 1834, na Filadélfia. Por fim, viu-se também o nascimento dos primeiros trabalhos científicos sobre a inferioridade dos negros – os de Samuel G. Morton, por exemplo, alegando uma correlação entre a capacidade intelectual de uma raça e o tamanho do crânio.
Os lados separados pela Guerra Civil foram também cúmplices, pois a mesma escravidão que permitiu ao sul tornar-se o rei do algodão ajudou o norte a crescer e a prosperar.
Revista História Viva
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