segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A nossa África


Em visita ao continente, Freyre pôde ver de perto o que antes só conhecia pelos livros

Alberto da Costa e Silva

Em 1843, durante um debate no Senado sobre o tráfico negreiro, Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) argumentou que o Brasil necessitava de escravos africanos porque a África civilizava a América. Antes e depois dele, houve algumas vozes, em geral discretas, que apontaram a influência africana sobre certos aspectos da vida brasileira. Tardaria, porém, quase um século para se ler em Pandiá Calógeras (1870-1934), na sua Formação Histórica do Brasil (1930), que tinham sido os negros que introduziram a metalurgia de ferro em Minas Gerais, em forjas africanas e com técnicas africanas. 

Três anos mais tarde, em 1933, em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre salientaria a importância da bagagem de experiências de vida nos trópicos trazida pelos africanos para o Brasil, com ênfase nas técnicas de produção econômica, no preparo do ferro, na mineração do ouro e na ourivesaria, na agricultura, na criação extensiva do gado, na tecelagem e no trabalho do couro e da madeira. Em seu livro, Freyre mostrava que o negro, ou seja, a África, estava dentro de cada brasileiro, entranhada nos seus modos de vida, em casa e na rua, na infância, na juventude, na maturidade e na morte. 

Para Freyre, a África era coautora do Brasil. Mas a África que ele conhecia era a que os escravos trouxeram consigo e a que lhe chegara pelas leituras – e tinha então em sua estante não mais do que uma ou duas prateleiras com livros sobre o continente africano. Na África, havia estado apenas em Dacar. E só muitos anos depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, visitaria aquelas partes do continente sob o domínio de Portugal, atendendo a um convite que lhe fez, em 1951, o governo de Lisboa. Dessa viagem a Cabo Verde, Guiné, Angola, São Tomé e Moçambique, fez um belo relato em Aventura e rotina (1953), no qual fica evidente que as autoridades coloniais não deixaram que demorasse o olhar sobre o que mais lhe interessava. Não andou sozinho por parte alguma. Parecia que tinham a intenção de que não visse a África e os africanos, mas tão somente o que se fizera português na África. Algumas vezes teve de pedir paciência a seus guias e acompanhantes para ver melhor o que para estes não passava de um vilarejo de pretos, para conversar com um soba (nome dados aos chefes africanos) ou desenhar um penteado de mulher. 

A exceção deu-se em Moçambique, porque Freyre se desentendeu, logo à chegada, com o governador português e, graças à ausência de solicitude deste, pôde ver o que não estavam interessados em mostrar-lhe: a riquíssima multiplicidade de culturas da ilha que deu o nome ao país. As formas, as cores e os perfumes da África do Índico entraram-lhe alma adentro. Nessa ilha pequenina, viam-se lado a lado, conciliados, conflitantes ou até mesmo confundidos, prédios, móveis, vestidos, comidas e modos de ser da África, da Arábia, da Pérsia, da Índia, da Indonésia, de Portugal e do Brasil. Freyre deslumbrou-se com tudo, mas principalmente com as mulheres, nas quais – as palavras são dele, em Aventura e rotina  a mestiçagem alcançava “vitórias esquisitas de beleza e graça nas formas, nas cores, no sorriso, na voz e no ritmo do andar”. Não podia ele deixar de ver nisso uma prova de que estava correta a sua teoria do lusotropicalismo. Na verdade, porém, a mestiçagem étnica e cultural em Moçambique antecipara de muito a chegada dos portugueses. O seu início datava de mais de 2.500 anos, e envolvera bantos, somalis, etíopes, árabes, persas, guzerates, cholas, malabares, cingaleses, javaneses e muitos povos mais. 

Mesmo em Angola, apesar dos antolhos que nele puseram, não lhe escaparam muitas coisas. E emocionou-se com várias delas. Por exemplo, com as lápides no cemitério dos brancos em Moçâmedes, nas quais leu que este, e aquele, e aquele outro haviam nascido em Pernambuco. Eram os filhos brasileiros dos portugueses, muitos deles já abrasileirados, que fugiram do Recife, na metade do século XIX, por causa das perseguições antilusitanas, e foram, pode-se dizer, refundar aquela cidade entre o mar e o deserto. Mas foi o cemitério dos negros – posteriormente objeto de um opúsculo, Em torno de alguns túmulos afro-cristãos – que o fascinou, como uma mistura de tradições de sepultamento africanas e europeias. Nas lápides pintadas com cores vivas, via-se uma cruz de desenho complicado, tendo abaixo, em relevo, figuras humanas, como a Madona com o Menino, ou um grupo de pessoas a olhar-nos de frente, ou, ainda, os instrumentos de trabalho do morto (martelo, serrote, alicate, no caso de um carpinteiro), tendo à frente um vaso para recolher a comida e a bebida que se ofertavam periodicamente ao morto. 

Gilberto Freyre se interessava principalmente pela África que havia no Brasil. Não deixou, contudo, de fascinar-se com aquela África que, abrasileirada, atravessou de volta o Atlântico. Quem dela lhe deu as mais pormenorizadas e entusiásticas notícias foi o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996). Com base em suas informações, Freyre escreveu os textos que acompanharam as fotografias de Verger numa série de reportagens publicada em 1951 na revista O Cruzeiro, e que, reelaborados, dariam um ensaio brilhante sobre os ex-escravos que regressaram à costa ocidental da África e ali criaram as comunidades de brasileiros, também conhecidos como agudás ou amarôs. 

Nas duas ou três ocasiões em que lhe contei o que vira e vivera em minhas viagens pela África, ele se inclinou na minha direção a fim de ouvir melhor. E animou a conversa com sua curiosidade inesgotável. Mais de uma vez, não escondeu a frustração por não ter voltado ao continente africano, não só para aprender mais sobre o que o Brasil devia à África, mas também para conhecer Tombuctu, Ajudá, Abomei, Lagos, Kano, Zanzibar e as igrejas escavadas na pedra da Etiópia. 


Alberto da Costa e Silva é membro da Academia Brasileira de Letras e autor de O quadrado amarelo (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009). 

Parecia que tinham a intenção de que não visse a África e os africanos, mas tão somente o que se fizera português na África

Saiba Mais - Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.FREYRE, Gilberto. Em torno de alguns túmulos afro-cristãos de uma área africana contagiada pela cultura brasileira. Salvador: Universidade da Bahia/Livraria Progresso Editora, 1959.FREYRE, Gilberto. “Acontece que são baianos...” IN: Problemas brasileiros de Antropologia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962.
Revista de História  da Biblioteca Nacional

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