Acompanhada de uma extensa análise que tenta alcançar nas estruturas e nos métodos do partido bolchevique as raízes da deformação stalinista, a pesquisa de Robert Conquest é às vezes de tirar o fôlego. Se há problemas nas análises ou em aspectos delas, e certamente há, de forma nenhuma eles estão lá onde se poderia verificar a depreciação do trabalho do historiador
Robert Conquest
Morreu ano passado nos EUA Raoul Hilberg. Foi quem produziu o mais completo levantamento da matança dos judeus pelo regime nazista da Alemanha. O resultado deste trabalho é um livro de mil e quinhentas páginas chamado “A Destruição dos Judeus na Europa” (livre tradução para “The Destruction of The European Jews”, New York, Holmer-Meyer, 1985). Obra fundamental para uma das tragédias fundamentais do século passado, lá fora foi lançada há mais de um quarto de século. Não adianta procurar nas prateleiras das nossas livrarias ou nos catálogos das editoras brasileiras porque nenhuma delas se interessou em publicá-lo por aqui. Se quiser importar uma edição em espanhol, por exemplo, vai sair por 470 reais e é possível encomendá-lo na livraria Leonardo Da Vinci, aqui no Rio de Janeiro.
Mas a lista de ausências imperdoáveis, daquelas capazes de nos deixar deprimidos e sufocados no negrume da ignorância, pode ser bem extensa. Só para citar dois importantes livros que li (ou reli) no último mês: “O Caso do Camarada Tuláyev” (Ed. Alfaguara) de Victor Serge, russo nascido na Bélgica que escrevia em francês (o que faz dele, segundo Susan Sontag, um escritor que continua “ausente... da história da literatura russa e francesa”) e “O Grande Terror — Os Expurgos de Stalin” de Robert Conquest (Editora Expressão e Cultura). A bem da verdade, “O Grande Terror” ainda pode ser encontrado em algum sebo por aí (www.estantevirtual.com.br), numa edição de 1970 (tempo em que “novo” ainda se escrevia “nôvo”). E por aí vai. As lacunas são muitas e se você, leitor desamparado por uma existência na selva, quiser nos ajudar com novos títulos para a ampliação da lista, por favor, escreva para a redação. Quem sabe não conseguimos sensibilizar nossos livreiros.
Serge, Koestler e Orwell — Ao comparar os livros de Serge, Koestler e, um pouco mais à distância, Orwell, Susan Sontag diz que “O Caso do Camarada Tuláiev” (publicado em 1947, um ano após a morte do autor, com o título de “L´affair Toulaév”) “é um romance muito menos convencional do que ´Trevas ao Meio-Dia´ (ou ´O Zero e o Infinito´, título com o qual ´Darknes at Noon´ foi publicado no Brasil) e ´1984´, cujos retratos do totalitarismo tornaram-se inesquecíveis — talvez porque aqueles romances tenham um protagonista único e uma única história” enquanto o romance de Serge, “com suas muitas trajetórias, tem uma visão bem mais complexa do personagem, do entrecruzamento da política com a vida privada, e dos terríveis métodos de inquisição de Stalin”.
Seria como for, “O Caso Tuláiev”, ainda nas palavras de Sontag, “nunca desfrutou uma fração da fama” de “O Zero e o Infinito” (publicado sete anos antes, em 1940). De fato, o livro de Koestler, editado inúmeras vezes no Brasil, ainda se encontra disponível no catálogo da Editora Globo e, eventualmente, em alguma livraria numa tradução mais ou menos recente. De igual ou maior fama é o terceiro dos livros citados por Sontag, “1984” de George Orwell. Apenas aparentado àqueles dois irmãos quase gêmeos é, provavelmente, o de mais amplo público — “1984” é onde aparece o Grande Irmão do qual foram chupados todos os nefandos Big Brothers produzidos ao redor do mundo, inclusive o da Rede Globo. Enquanto isso, “O Caso Tuláiev” continua mui injustamente relegado ao esquecimento.
No seu comovente artigo “Questão em Aberto — O Caso Victor Serge” (presente em “Ao Mesmo Tempo”, Companhia das Letras, 2007) Susan Sontag se interroga sobre os motivos desse esquecimento (menor lá fora que aqui, mas também lá relegado a um incompreensível segundo plano, onde, porém, ao menos foi e ainda é publicado). “Como encarar o descaso a respeito de ´O Caso do Camarada Tuláiev´, um romance maravilhoso que não pára de ser redescoberto e reesquecido desde sua publicação...?” Será porque seu autor, pergunta Sontag, não era “um escritor engajado de forma intermitente em militâncias e lutas políticas como Silone, Camus, Koestler e Orwell, mas sim um ativista e um agitador incessante?” Ou será “porque ele continuou até o fim a identificar-se como um revolucionário, vocação hoje tão desacreditada no mundo próspero?”, pergunta ainda uma vez. E a cada indagação se aprofunda na apresentação desse personagem cuja vida teria sido a tal ponto “impregnada pelo drama histórico” que afinal acabou por obscurecer sua obra literária, como, segundo a escritora, afirmavam alguns dos seus mais fervorosos defensores. Para ela, no entanto, “os livros de Serge são melhores, mais argutos, mais importantes do que a pessoa que os escreveu”.
Quanto à pessoa, vale lembrar o curioso depoimento do antropólogo Claude Lévi-Strauss (cujo centenário está sendo comemorado mundo afora) no seu clássico “Tristes Trópicos”. Diz ele: “Quanto a Victor Serge, seu passado de companheiro de Lênin intimidava-me, ao mesmo tempo em que eu sentia a maior dificuldade para integrá-lo a seu personagem... Aquele rosto glabro, aqueles traços finos, aquela voz clara, aliados aos modos pomposos e cautelosos, conferiam esse caráter quase assexuado que mais tarde eu haveria de reconhecer entre os monges budistas da fronteira birmanesa, muito distante do másculo temperamento e da superabundância vital que a tradição francesa associa às chamadas atividades subversivas.”
No presente texto, porém, o que importa não são nem a aparência de monge birmanês de Serge, nem aquelas questões tão graves do texto de Sontag. As dúvidas levantadas aqui estão num nível muito mais superficial — talvez erradamente — e poderiam ser reduzidas a uma pergunta única muito simples: com tanta porcaria sendo publicada sobre o período stalinista (só no ano passado foram pelo menos uns cinco calhamaços) por que até hoje nenhuma editora brasileira se interessou pelo maravilhoso “O Caso Tuláiev”?
Exatamente a mesma dúvida vale para “O Grande Terror”, de Robert Conquest.
Ignazio Silone (lembrado acima no texto da Sontag), aliás, é também citado por Conquest, num episódio em maio de 1927 que ele chamou de “a última centelha de independência do Comintern” (ou Terceira Internacional, fundada por Lênin em março de 1918): na presença de Stalin, conta Conquest, foi solicitado “que o Comitê Executivo do Comintern condenasse um documento de autoria de Trotsky... Todos os presentes estavam prontos a atender à solicitação, quando a delegação italiana — composta por (Palmiro) Togliatti e Silone — afirmou não ter visto este documento... Os italianos... disseram que não poderiam subscrever uma condenação formal a algo de que não tinham conhecimento... A partir daí, o Comintern... tornou-se simplesmente um outro elemento da máquina política de Stalin.”
Como resultado deste episódio e seus corolários, Silone acabou saindo do partido e se tornando um importante escritor. Alguns de seus romances foram publicados em vários países além da Itália, inclusive no Brasil. “Fontamara” (1930), seu primeiro e mais famoso título foi republicado recentemente mais uma vez (em 2002 pela Ed. Expressão Popular).
Ao contrário da biografia de Serge, a de Robert Conquest, a se julgar por suas companhias mais recentes, é, no mínimo, difamante. Senão, vejamos (extraído da Wikipédia): membro do Partido Comunista Britânico na juventude (no qual ingressou em 1937, justamente a época dos grandes expurgos de Stalin), anos mais tarde Conquest viria a se tornar “admirador e colaborador de Ronald Reagan, Margaret Thatcher (sua amiga pessoal, para quem chegou a preparar discursos) e, mais recentemente, de Condoleeza Rice. O livro de Conquest intitulado ´Que Fazer Quando os Russos Vierem. Um Manual de Sobrevivência´ (1984)... foi considerado uma preciosa peça de propaganda em apoio da política de rearmamento de Ronald Reagan...” E, para coroar isso que mais parece uma ficha corrida, foi “... galardoado com a ´Medalha Presidencial da Liberdade´ em Novembro de 2005” por ninguém menos que o inescedível e nefando (além de o mais mal avaliado presidente da história dos EUA, o que não é nada pouco) George W. Bush.
Ao contrário da sua biografia recente, no entanto, o livro de Conquest é uma imperdível obra-prima de história. De tão alta qualidade que nas suas mais de quinhentas fornidas páginas dificilmente se encontrará algum juizo de valor que permita acusar o autor de anti-comunismo (apesar de ter sido acusado “... de colocar a sua produção acadêmica ao serviço dos objectivos da propaganda política anti-comunista” — ainda segundo a Wikipédia).
O que há ali, em altíssima dosagem, é uma minuciosa pesquisa, um levantamento como poucas vezes se terá visto na historiografia contemporânea. Alguma coisa à altura da grandiosidade dos crimes e das deformidades do regime stalinista — onde o que em algum momento fora política no mais genuino sentido do termo, política praticada por uma comunidade de homens muitíssimo bem preparados e perfeitamente conscientes dos seus métodos e objetivos, viria a se tornar puro banditismo (“a política como tal havia desaparecido”, diz Conquest), executada por uma quadrilha de sujeitos moralmente degradados encastelada num estupidamente poderoso aparato de Estado, conscientes da brutalidade dos seus métodos e da natureza das suas mentiras.
Acompanhada de uma extensa análise que tenta alcançar nas estruturas e nos métodos do partido bolchevique as raízes da deformação stalinista, mas não apenas ali, a pesquisa de Conquest é às vezes de tirar o fôlego. Se há problemas nas análises ou em aspectos delas, e certamente há, de forma nenhuma eles estão lá onde se poderia verificar a depreciação do trabalho do historiador.
Mesmo para quem tem um conhecimento razoável da história da revolução russa e da construção do regime stalinista “O Grande Terror” tem muito para ali se abastecer. Porque, para além dos grandes lances e movimentos da política na primeira metade do século, das idas e vindas do movimento revolucionário no decorrer daquele período convulsionado (pelo menos trinta milhões de pessoas foram assassinadas na Europa de Goethe e Tolstói num espaço de apenas vinte anos das décadas de 30 e 40, numa concentração de vítimas talvez jamais vista em qualquer outro momento da história humana), das decisões equivocadas e criminosas promovidas e apoiadas por Stálin (como a insensata política zigue-zagueante da Comintern para a China de Chiang Kai-shek que resultou no massacre de aproximadamente vinte mil comunistas e trabalhadores levado a cabo pelo exército nacionalista, em Shangai, no dia 12 de abril de 1927, e meses depois em Wuhan e Cantão — magistralmente contado por André Malraux no romance “A Condição Humana” —, ou a atabalhoada diretriz imposta ao partido comunista alemão no período da ascensão dos nazistas que, entre outras coisas, preferiu enfrentar os social-democratas alemães chamando-os de social-fascistas ao invés de se aliar a eles contra o hitlerismo em ascensão... e que em seguida trataria de eliminar a ambos — derrota dia a dia anunciada e denunciada por Trotsky em “Revolução e Contra-Revolução na Alemanha”), para além da tragédia que consumiu e enterrou uma geração inteira de homens e mulheres abnegados à construção de uma sociedade menos iníqua, lá está, no texto de Conquest, os menores detalhes, os sussurros e os gritos dessa imensa tragédia emergindo da garganta dos seus mais humildes (e inocentes) personagens ou estampada na lógica absurda dos que desde o centro do poder capitularam à demência stalinista em nome da racionalidade, do homem do futuro, da luta contra o inimigo de classe e do escambau (e na descrição cuidadosa dessa lógica absurda “O Zero e o Infinito” de Koestler é insuperável).
Vale lembrar que no final dos anos sessenta quando o livro foi publicado a União Soviética ainda estava de pé e, com ela, muitos daqueles que tendo participado ativamente do grande terror, após a morte do chefe (em março de 1953) trataram de denunciar os crimes do passado (no hoje famoso “Discurso Secreto” de Nikita Kruschev) para modificar apenas superficalmente o regime e manter o poder. Kruschev e camarilha foram colaboradores diretos e partícipes ativos das atrocidades contra as quais passaram a bradar. Assim, na análise política de Conquest: “... a essência do stalinismo reside menos nos particulares períodos de terrorismo ou determinados pontos de vista sobre a organização industrial do que no estabelecimento de uma máquina política. E esta permanece substancialmente a mesma”, gerida praticamente pelos mesmos homens, tanto na URSS quanto nos PCs do mundo todo, enquanto duraram.
Pelo menos para aqueles que acreditavam (ou acreditam) que o capitalismo pudesse ser superado (no sentido marxista do termo) é nesta herança que se encontra ao menos parte da maldição: mesmo após a morte de Stálin e as denúncias de Kruschev nunca houve uma verdadeira ruptura pelo menos por uma grande parte da esquerda com os princípios e as velhas práticas stalinistas... até o momento em que o regime e a sociedade originada da revolução de 1917 simplesmente vieram abaixo. E, aí, já não havia mais o que ser recuperado. No seu lugar, emergia um Estado gerido por ex-policiais e ex-espiões (nem tão “ex” assim) e um capitalismo cujos principais núcleos de acumulação estavam nas mãos de ex-mafiosos (nem tão “ex” assim).
Mas a lista de ausências imperdoáveis, daquelas capazes de nos deixar deprimidos e sufocados no negrume da ignorância, pode ser bem extensa. Só para citar dois importantes livros que li (ou reli) no último mês: “O Caso do Camarada Tuláyev” (Ed. Alfaguara) de Victor Serge, russo nascido na Bélgica que escrevia em francês (o que faz dele, segundo Susan Sontag, um escritor que continua “ausente... da história da literatura russa e francesa”) e “O Grande Terror — Os Expurgos de Stalin” de Robert Conquest (Editora Expressão e Cultura). A bem da verdade, “O Grande Terror” ainda pode ser encontrado em algum sebo por aí (www.estantevirtual.com.br), numa edição de 1970 (tempo em que “novo” ainda se escrevia “nôvo”). E por aí vai. As lacunas são muitas e se você, leitor desamparado por uma existência na selva, quiser nos ajudar com novos títulos para a ampliação da lista, por favor, escreva para a redação. Quem sabe não conseguimos sensibilizar nossos livreiros.
Serge, Koestler e Orwell — Ao comparar os livros de Serge, Koestler e, um pouco mais à distância, Orwell, Susan Sontag diz que “O Caso do Camarada Tuláiev” (publicado em 1947, um ano após a morte do autor, com o título de “L´affair Toulaév”) “é um romance muito menos convencional do que ´Trevas ao Meio-Dia´ (ou ´O Zero e o Infinito´, título com o qual ´Darknes at Noon´ foi publicado no Brasil) e ´1984´, cujos retratos do totalitarismo tornaram-se inesquecíveis — talvez porque aqueles romances tenham um protagonista único e uma única história” enquanto o romance de Serge, “com suas muitas trajetórias, tem uma visão bem mais complexa do personagem, do entrecruzamento da política com a vida privada, e dos terríveis métodos de inquisição de Stalin”.
Seria como for, “O Caso Tuláiev”, ainda nas palavras de Sontag, “nunca desfrutou uma fração da fama” de “O Zero e o Infinito” (publicado sete anos antes, em 1940). De fato, o livro de Koestler, editado inúmeras vezes no Brasil, ainda se encontra disponível no catálogo da Editora Globo e, eventualmente, em alguma livraria numa tradução mais ou menos recente. De igual ou maior fama é o terceiro dos livros citados por Sontag, “1984” de George Orwell. Apenas aparentado àqueles dois irmãos quase gêmeos é, provavelmente, o de mais amplo público — “1984” é onde aparece o Grande Irmão do qual foram chupados todos os nefandos Big Brothers produzidos ao redor do mundo, inclusive o da Rede Globo. Enquanto isso, “O Caso Tuláiev” continua mui injustamente relegado ao esquecimento.
No seu comovente artigo “Questão em Aberto — O Caso Victor Serge” (presente em “Ao Mesmo Tempo”, Companhia das Letras, 2007) Susan Sontag se interroga sobre os motivos desse esquecimento (menor lá fora que aqui, mas também lá relegado a um incompreensível segundo plano, onde, porém, ao menos foi e ainda é publicado). “Como encarar o descaso a respeito de ´O Caso do Camarada Tuláiev´, um romance maravilhoso que não pára de ser redescoberto e reesquecido desde sua publicação...?” Será porque seu autor, pergunta Sontag, não era “um escritor engajado de forma intermitente em militâncias e lutas políticas como Silone, Camus, Koestler e Orwell, mas sim um ativista e um agitador incessante?” Ou será “porque ele continuou até o fim a identificar-se como um revolucionário, vocação hoje tão desacreditada no mundo próspero?”, pergunta ainda uma vez. E a cada indagação se aprofunda na apresentação desse personagem cuja vida teria sido a tal ponto “impregnada pelo drama histórico” que afinal acabou por obscurecer sua obra literária, como, segundo a escritora, afirmavam alguns dos seus mais fervorosos defensores. Para ela, no entanto, “os livros de Serge são melhores, mais argutos, mais importantes do que a pessoa que os escreveu”.
Quanto à pessoa, vale lembrar o curioso depoimento do antropólogo Claude Lévi-Strauss (cujo centenário está sendo comemorado mundo afora) no seu clássico “Tristes Trópicos”. Diz ele: “Quanto a Victor Serge, seu passado de companheiro de Lênin intimidava-me, ao mesmo tempo em que eu sentia a maior dificuldade para integrá-lo a seu personagem... Aquele rosto glabro, aqueles traços finos, aquela voz clara, aliados aos modos pomposos e cautelosos, conferiam esse caráter quase assexuado que mais tarde eu haveria de reconhecer entre os monges budistas da fronteira birmanesa, muito distante do másculo temperamento e da superabundância vital que a tradição francesa associa às chamadas atividades subversivas.”
No presente texto, porém, o que importa não são nem a aparência de monge birmanês de Serge, nem aquelas questões tão graves do texto de Sontag. As dúvidas levantadas aqui estão num nível muito mais superficial — talvez erradamente — e poderiam ser reduzidas a uma pergunta única muito simples: com tanta porcaria sendo publicada sobre o período stalinista (só no ano passado foram pelo menos uns cinco calhamaços) por que até hoje nenhuma editora brasileira se interessou pelo maravilhoso “O Caso Tuláiev”?
Exatamente a mesma dúvida vale para “O Grande Terror”, de Robert Conquest.
Ignazio Silone (lembrado acima no texto da Sontag), aliás, é também citado por Conquest, num episódio em maio de 1927 que ele chamou de “a última centelha de independência do Comintern” (ou Terceira Internacional, fundada por Lênin em março de 1918): na presença de Stalin, conta Conquest, foi solicitado “que o Comitê Executivo do Comintern condenasse um documento de autoria de Trotsky... Todos os presentes estavam prontos a atender à solicitação, quando a delegação italiana — composta por (Palmiro) Togliatti e Silone — afirmou não ter visto este documento... Os italianos... disseram que não poderiam subscrever uma condenação formal a algo de que não tinham conhecimento... A partir daí, o Comintern... tornou-se simplesmente um outro elemento da máquina política de Stalin.”
Como resultado deste episódio e seus corolários, Silone acabou saindo do partido e se tornando um importante escritor. Alguns de seus romances foram publicados em vários países além da Itália, inclusive no Brasil. “Fontamara” (1930), seu primeiro e mais famoso título foi republicado recentemente mais uma vez (em 2002 pela Ed. Expressão Popular).
Ao contrário da biografia de Serge, a de Robert Conquest, a se julgar por suas companhias mais recentes, é, no mínimo, difamante. Senão, vejamos (extraído da Wikipédia): membro do Partido Comunista Britânico na juventude (no qual ingressou em 1937, justamente a época dos grandes expurgos de Stalin), anos mais tarde Conquest viria a se tornar “admirador e colaborador de Ronald Reagan, Margaret Thatcher (sua amiga pessoal, para quem chegou a preparar discursos) e, mais recentemente, de Condoleeza Rice. O livro de Conquest intitulado ´Que Fazer Quando os Russos Vierem. Um Manual de Sobrevivência´ (1984)... foi considerado uma preciosa peça de propaganda em apoio da política de rearmamento de Ronald Reagan...” E, para coroar isso que mais parece uma ficha corrida, foi “... galardoado com a ´Medalha Presidencial da Liberdade´ em Novembro de 2005” por ninguém menos que o inescedível e nefando (além de o mais mal avaliado presidente da história dos EUA, o que não é nada pouco) George W. Bush.
Ao contrário da sua biografia recente, no entanto, o livro de Conquest é uma imperdível obra-prima de história. De tão alta qualidade que nas suas mais de quinhentas fornidas páginas dificilmente se encontrará algum juizo de valor que permita acusar o autor de anti-comunismo (apesar de ter sido acusado “... de colocar a sua produção acadêmica ao serviço dos objectivos da propaganda política anti-comunista” — ainda segundo a Wikipédia).
O que há ali, em altíssima dosagem, é uma minuciosa pesquisa, um levantamento como poucas vezes se terá visto na historiografia contemporânea. Alguma coisa à altura da grandiosidade dos crimes e das deformidades do regime stalinista — onde o que em algum momento fora política no mais genuino sentido do termo, política praticada por uma comunidade de homens muitíssimo bem preparados e perfeitamente conscientes dos seus métodos e objetivos, viria a se tornar puro banditismo (“a política como tal havia desaparecido”, diz Conquest), executada por uma quadrilha de sujeitos moralmente degradados encastelada num estupidamente poderoso aparato de Estado, conscientes da brutalidade dos seus métodos e da natureza das suas mentiras.
Acompanhada de uma extensa análise que tenta alcançar nas estruturas e nos métodos do partido bolchevique as raízes da deformação stalinista, mas não apenas ali, a pesquisa de Conquest é às vezes de tirar o fôlego. Se há problemas nas análises ou em aspectos delas, e certamente há, de forma nenhuma eles estão lá onde se poderia verificar a depreciação do trabalho do historiador.
Mesmo para quem tem um conhecimento razoável da história da revolução russa e da construção do regime stalinista “O Grande Terror” tem muito para ali se abastecer. Porque, para além dos grandes lances e movimentos da política na primeira metade do século, das idas e vindas do movimento revolucionário no decorrer daquele período convulsionado (pelo menos trinta milhões de pessoas foram assassinadas na Europa de Goethe e Tolstói num espaço de apenas vinte anos das décadas de 30 e 40, numa concentração de vítimas talvez jamais vista em qualquer outro momento da história humana), das decisões equivocadas e criminosas promovidas e apoiadas por Stálin (como a insensata política zigue-zagueante da Comintern para a China de Chiang Kai-shek que resultou no massacre de aproximadamente vinte mil comunistas e trabalhadores levado a cabo pelo exército nacionalista, em Shangai, no dia 12 de abril de 1927, e meses depois em Wuhan e Cantão — magistralmente contado por André Malraux no romance “A Condição Humana” —, ou a atabalhoada diretriz imposta ao partido comunista alemão no período da ascensão dos nazistas que, entre outras coisas, preferiu enfrentar os social-democratas alemães chamando-os de social-fascistas ao invés de se aliar a eles contra o hitlerismo em ascensão... e que em seguida trataria de eliminar a ambos — derrota dia a dia anunciada e denunciada por Trotsky em “Revolução e Contra-Revolução na Alemanha”), para além da tragédia que consumiu e enterrou uma geração inteira de homens e mulheres abnegados à construção de uma sociedade menos iníqua, lá está, no texto de Conquest, os menores detalhes, os sussurros e os gritos dessa imensa tragédia emergindo da garganta dos seus mais humildes (e inocentes) personagens ou estampada na lógica absurda dos que desde o centro do poder capitularam à demência stalinista em nome da racionalidade, do homem do futuro, da luta contra o inimigo de classe e do escambau (e na descrição cuidadosa dessa lógica absurda “O Zero e o Infinito” de Koestler é insuperável).
Vale lembrar que no final dos anos sessenta quando o livro foi publicado a União Soviética ainda estava de pé e, com ela, muitos daqueles que tendo participado ativamente do grande terror, após a morte do chefe (em março de 1953) trataram de denunciar os crimes do passado (no hoje famoso “Discurso Secreto” de Nikita Kruschev) para modificar apenas superficalmente o regime e manter o poder. Kruschev e camarilha foram colaboradores diretos e partícipes ativos das atrocidades contra as quais passaram a bradar. Assim, na análise política de Conquest: “... a essência do stalinismo reside menos nos particulares períodos de terrorismo ou determinados pontos de vista sobre a organização industrial do que no estabelecimento de uma máquina política. E esta permanece substancialmente a mesma”, gerida praticamente pelos mesmos homens, tanto na URSS quanto nos PCs do mundo todo, enquanto duraram.
Pelo menos para aqueles que acreditavam (ou acreditam) que o capitalismo pudesse ser superado (no sentido marxista do termo) é nesta herança que se encontra ao menos parte da maldição: mesmo após a morte de Stálin e as denúncias de Kruschev nunca houve uma verdadeira ruptura pelo menos por uma grande parte da esquerda com os princípios e as velhas práticas stalinistas... até o momento em que o regime e a sociedade originada da revolução de 1917 simplesmente vieram abaixo. E, aí, já não havia mais o que ser recuperado. No seu lugar, emergia um Estado gerido por ex-policiais e ex-espiões (nem tão “ex” assim) e um capitalismo cujos principais núcleos de acumulação estavam nas mãos de ex-mafiosos (nem tão “ex” assim).
Revista Bula
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