Como eram feitas as cirurgias no passado
Serrar a perna sem anestesia, instrumentos com o sangue de outros pacientes e experiências mal-sucedidas faziam com que a cirurgia fosse temida como a morte no passado, conta o inglês Richard Hollingham
Tiago Mali
Sua mãe, enfermeira, sempre lhe disse: desconfie dos cirurgiões. O escritor
inglês Richard Hollingham seguiu à risca os conselhos e descobriu em arquivos
guardados nos porões de Londres histórias do lado obscuro da prática desses
profissionais, quando a falta de higiene e de anestesia tornavam qualquer
operação uma situação arriscadíssima. Entre picadores de gelo usados para furar
o cérebro e corações de pessoas vivas tomados “de aluguel”, o jornalista da BBC
conta na entrevista abaixo algumas das histórias impressionantes que encontrou
durante sua pesquisa para seu livro “Sangue e Entranhas, A Assustadora
História da Cirurgia”.
* O que mais o surpreendeu na pesquisa da história da cirurgia?
É chocante ver como,
freqüentemente, os cirurgiões não tinham a menor ideia do que estavam fazendo e,
mesmo assim, as pessoas confiavam neles. Se você for operado hoje, a não ser que
seja uma cirurgia pioneira, você tem 99% de chance de não ter nenhuma
complicação. Antes, era o oposto. Havia uma certa arrogância em muitos dos
cirurgiões do passado que os levavam a conduzir procedimentos sem pensar nas
consequências.
* Você pode citar exemplos dessa arrogância levou a erros?
O exemplo clássico de é Walter Freeman, que desenvolveu a
operação de lobotomia [cirurgia de remoção de partes do cérebro que se
acreditava curar a loucura]. Ele usou um número muito pequeno de evidências que
esse tipo de operação poderia funcionar com loucos agressivos — talvez isso até
funcionasse em poucos casos. Mesmo sem uma base confiável, fazia várias
operações. Freeman perfurava um buraco, sem assepsia, na cabeça da pessoa e
retirava partes na frente do cérebro. Para agilizar esse processo, desenvolveu
uma técnica muito pior, a lobotomia transorbital. Chegou a fazer 25 operações em
um dia enfiando um picador de gelo no topo do globo ocular, e fazendo que ele
passasse por um osso bem fino até chegar ao cérebro, que seria lesionado. É
chocante que ele achasse que isso funcionava e mais chocante ainda que as
pessoas deixaram isso acontecer.
O médico Walter Freeman fazendo uma lobotomia pelo globo
ocular com o objetivo de curar doenças psiquiátricas // Reprodução
A história da cirurgia é cheia de exemplos em que cirurgiões
testaram no escuro para ver o que acontecia. Agora não é mais o caso, com o
sistema de regulamentação moderna que temos no mundo.
* Quais foram os mais perigosos experimentos de cirurgiões?
É importante
ressaltar que, na imensa maioria dos casos, os experimentos bizarros eram feitos
como última alternativa, numa tentativa desesperada de salvar alguém que já iria
morrer. Um desses casos foi a técnica de circulação cruzada. Antes da invenção
da máquina coração-pulmão [que mantém a circulação e oxigenação do sangue fora
do coração quando o órgão está sendo operado]. Tínhamos crianças doentes com um
buraco ou mal funcionamento de veias no coração. Não havia forma de tratá-los,
estavam condenadas a morrer. Se você tivesse qualquer chance de tratar uma
pessoa assim, você deveria tentar. Foi o que fez o cirurgião americano Walton
Lillehei (1918-1999). Para continuar filtrando o sangue durante uma cirurgia
cardíaca, ele conectava as veias do paciente no coração de uma outra pessoa
saudável, liberando o órgão lesionado para que fosse operado. O problema, é que
você pode matar o paciente e a pessoa saudável. Ainda assim, na época, foi uma
forma de salvar as vidas de crianças desesperadamente doentes e, em muitos
casos, funcionou.
* Qual era o significado de ser operado antigamente?
No século 17, 18 e na maior
parte do 19 você só era operado em situações extremas, era o último recurso. A
chance de morrer era gigantesca. A razão mais comum para alguém passar por uma
cirurgia era a amputação. Era necessária quando havia fratura exposta, porque o
osso ficava de fora e causava infecção, a perna gangrenava e a pessoa morria. A
opção é cortar uma parte da perna. Mas isso era feito sem anestésicos e sem
assepsia. Dependendo da habilidade do cirurgião, era morte na certa. O período
mais perigoso da cirurgia foi entre o desenvolvimento da anestesia (1846) e a
invenção de antissépticos (final do século 19 e começo do século 20). Quando a
cirurgia se tornou sem dor, os cirurgiões ganharam a oportunidade de manter o
corpo do paciente aberto por mais tempo, para curar mais problemas. Só que muito
mais pessoas morreram, já que o período que o corpo era exposto a uma infecção
aumentava e ainda não havia um entendimento entre os médicos da importância da
limpeza e do uso de substâncias que matavam os microorganismos que causavam
infecções.
* Quão precária era a higiene?
Era
chocante. Não se sabia de microorganismos. As pessoas achavam que havia algum
miasma, algo no ar que causava infecção. Até onde os cirurgiões sabiam, não
importava realmente quão sujo algo estava porque não havia razão para não estar
sujo. Havia cirurgiões que reaproveitavam bandagens e emplastros sujos de sangue
e pus em outros pacientes. Por que não? Não se sabia de razão para que isso não
fosse feito. Nada era esterilizado. Os bons cirurgiões trabalhavam bem
rapidamente, o que minimizava o risco de infecção, mas essa não era a razão pela
qual eles trabalhavam rapidamente. Faziam isso para minimizar o sofrimento do
paciente, já que não havia anestesia. Os locais de operação eram encardidos,
extremamente sujos. Os cirurgiões tiravam roupas limpas com as quais vinham das
ruas para colocar um jaleco sujo. Você tinha uma sala cheia de pessoas
respirando sobre o paciente, sangue e sujeira no chão.
* Os pacientes tentavam fugir das cirurgias?
Os principais cirurgiões
vitorianos tinham porteiros que transportariam os pacientes de uma ala do
hospital para a sala de cirurgia. Durante o transporte havia seguranças
acompanhando a maca para impedir que o paciente escapasse. Muitos ajudantes
também tinham a função de segurar o paciente na mesa de cirurgia para que ele
não se mexesse muito quando fosse se debater. Se você estivesse numa mesa
cirúrgica na época, veria uma série de estudantes olhando para você e te
segurando enquanto o cirurgião, sem anestesia serrava a sua perna. Era
certamente uma experiência horrível.
Revista Galileu
2 comentários:
Apesar das grandes e infinitas evoluções que ocorrem no campo da medicina ainda as coisas estão nas mãos de uma FORÇA MAIOR. Digo isto porque estamos passando na pele esta máxima...
Abraços
Primeira alto cirúrgico realizado na historia da cirúrgia?
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