Kellen Jacobsen Follador
Levando em consideração que o Brasil foi colonizado por ocidentais, podemos concluir que os homens no Brasil possuíam os mesmos conceitos, em relação à mulher, que os moradores do velho continente. Assim, desde o período colonial a exigência de submissão, recato e docilidade foi imposta às mulheres. Essas exigências levavam à formação de um estereótipo que relegava o sexo feminino ao âmbito do lar, onde sua tarefa seria a de cuidar da casa, dos filhos e do marido, e, sendo sempre totalmente submissa a ele.
Ratificando as proposições de Souza acreditamos que poderes absolutos eram destinados ao homem, chefe e senhor da família na sociedade patriarcal brasileira, enquanto que às mulheres era destinada a obrigatoriedade da reclusão ao lar, com sua vida doméstica junto da criadagem escrava20. No período colonial as mulheres não podiam freqüentar escolas, ficando dessa forma excluídas do âmbito da educação formal, destinada apenas aos homens.
Em contrapartida eram treinadas para uma vida reclusa, onde o casamento, a administração da casa, a criação dos filhos eram seus maiores deveres, além de ter que "tolerar as relações extra-matrimoniais dos maridos com as escravas”21.
Logicamente que as exceções existiam e as mulheres mais humildes não podiam “desfrutar” desse papel social que via como ideal para a mulher a vida reclusa em seu lar.
Precisavam trabalhar e, desta forma, adentravam ao espaço público, reservado aos homens, pois, o sustento da família em muitos casos era tarefa delas. Afora essas exceções, não podiam sair desacompanhadas e sua passagem pelos espaços públicos só era bem aceita se relacionada às atividades da Igreja, como missas, novenas e procissões, o que para as jovens daquela época era uma forma de lazer.
Toda essa vigilância em torno da mulher era necessária para se resguardar a virgindade, a idelidade e a honra. Caso fosse solteira, a mulher era vigiada para que mantivesse essa qualidade, pois de sua castidade e pureza dependia a honra de todos os homens da família, ou seja, irmãos e pai. Quando casada a mulher era vigiada porque dela também dependia a honra do marido, tanto no que dizia respeito à fidelidade e a legitimidade da prole, quanto no que se referia à própria masculinidade do marido. Assim, cabia à mulher, em parte, a responsabilidade pela manutenção da honra dos homens da família a qual pertencia.
Durante o período colonial, as mulheres no Brasil não tiveram muito espaço para expressar seus pensamentos e para gozar de algum lazer, senão as festividades relacionadas à Igreja Católica. O controle exercido pelos homens sobre elas atingia todos os campos de suas vidas, como o controle dentro de casa desde a infância, o controle ideológico mantido pelos ideais de recato, respeito, humildade e pela falta de instrução; por fim, a escolha de um marido que certamente manteria o mesmo controle sobre ela.
A educação feminina no período colonial era, geralmente, restrita aos cuidados com a casa, marido e filhos. A mulher aprendia a costurar, bordar, cozinhar e, as mais abastadas, a pintar e tocar algum instrumento. A leitura e escrita deveriam ser as mínimas possíveis, isso dependendo da rigorosidade do pai, que, em muitas vezes não permitia que as filhas aprendessem a ler e escrever. A educação era ministrada somente aos homens, e, tanto as mulheres brancas ricas e pobres, quanto as negras, fossem elas escravas, alforriadas ou mestiças, não tinham acesso à instrução. Um ditado da época demonstra muito bem a opinião masculina acerca da instrução feminina, onde menciona que “mulher que sabe muito é mulher
atrapalhada, para ser mãe de família, saiba pouco ou saiba nada”22.
O ditado popular menciona que a mulher ideal era aquela que “sabia pouco ou sabia nada”. Podemos perceber a falta de conhecimento não somente relacionada à instrução intelectual, mas também à instrução sexual que serviria para sua vida enquanto mulher e esposa. Ribeiro menciona que, quando as mulheres se casavam, seguiam para a lua-de-mel sem informações sobre sexo ou mesmo sobre o que ocorreria. O sexo ocorria às escuras, sendo o corpo feminino coberto por um lençol que permitia apenas a visão dos órgãos sexuais. O prazer sexual masculino ficava a cargo das negras escravas, e, à esposa era proibido sentir tal prazer já que o sexo cabia somente à reprodução23.
Apesar de todos esses modelos e regras que as mulheres deveriam seguir para serem qualificadas como honradas, existiam aquelas que não se encaixavam em tais modelos, fosse por situações passageiras ou permanentes, ligadas ao modo de vida. Geralmente esses padrões eram ditados para as mulheres brancas, pois as escravas, negras alforriadas e mestiças já eram mal vistas pela sociedade, consideradas como mulheres sem honra. Porém, mesmo as mulheres brancas nem sempre conseguiam manter esse ideal, como era o caso das mulheres pobres. Elas precisavam trabalhar fora de seus lares e isso já as caracterizavam, na maioria dos casos, como mulheres públicas.
Nesse contexto havia três classificações para as mulheres: honradas, desonradas e sem honra. As mulheres desonradas eram aquelas que praticavam relações extra-conjugais, perdiam a virgindade antes do casamento ou possuíam um comportamento desajustado socialmente. Elas manchavam a honra da família ou de seus maridos e, por isso, eram exemplarmente punidas pelos familiares ou condenadas ao ódio da sociedade. As mulheres honradas eram aquelas que seguiam os padrões e normas que a sociedade impunha, seguindo também o ideal de pureza mariano. Deveriam exaltar as virtudes de uma vida recatada e submissa ao poder masculino, ora do pai, ora do marido. Por fim, as mulheres sem honra eram aquelas, na maioria, ligadas direta ou indiretamente à prostituição, e, aquelas ligadas ao submundo das ruas. As escravas, por exemplo, eram consideradas mulheres sem honra.
No geral, a existência dessas mulheres ligadas à prostituição era aceita na sociedade pelas famílias ricas e pela Igreja, já que ambos segmentos viam-nas como uma forma de proteger a sexualidade das virgens de boa família. Cabia ainda a essas mulheres a iniciação sexual dos varões das famílias abastadas. A prostituição era, em muitos casos, a única forma de algumas mulheres pobres e marginalizadas sobreviverem e sustentarem a família.
O sustento da família fez com que a mulher pobre no período colonail brasileiro desempenhasse inúmeras funções, tidas muitas vezes como masculinas, como era o caso das tropeiras e cocheiras. A grande maioria das mulheres pobres possuía atividades como lavadeiras, cozinheiras, domésticas e vendedoras ambulantes, afirmando Nader que “a sociedade brasileira, que se pautou no poder masculino, jamais prescindiu da mão-de-obra feminina”24. O trabalho feminino era muito importante no comércio de gêneros alimentícios que invadia as ruas das cidades, onde eram vendidos bolos, doces, hortaliças, derivados do leite, entre outras guloseimas preparadas pelas mulheres. Segundo Mergár, entre os séculos XVIII e XIX o pequeno comércio fixo ou ambulante era atividade quase que exclusivamente feminina. Essas atividades estavam ligadas às camadas inferiores da sociedade e aos escravos, que muitas vezes iam à cidade vender os produtos advindos das fazendas de seus senhores25.
Como podemos perceber, as mulheres pobres, bem ou mau, podiam “desfrutar” de uma liberdade impensada pelas mulheres de boa família. Essas últimas viviam sob a proteção dos olhares masculinos e enclausuradas em suas casas. O enclausuramento foi amenizado com o fim da colonização quando o Brasil passou por um leve processo de urbanização após a chegada da Família Real.
A vinda da Família Real portuguesa para sua mais rica colônia proporcionou algumas mudanças, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Como salienta Manoel, a abertura comercial para um mercado mundial proporcionou a “penetração do capitalismo e a gravitação do universo do neocolonialismo” possibilitando a percepção de novas perspectivas para o universo feminino, como uma maior participação social26.
Conforme Souza, com a vinda da Família Real também foram verificadas mudanças em relação aos costumes familiares. A clausura do lar para as mulheres estava com seus dias contados. Elas passaram a freqüentar os espaços públicos, como as ruas, os teatros, os bailes e os salões de beleza. Com o tempo, surgiu uma rede de estabelecimentos, principalmente lojas, que possuíam como maior clientela as senhoras integrantes da elite imperial27.
Já em meados do século XIX, durante a era Imperial, as mulheres lutaram para ampliar seus papéis na sociedade. O patriarcalismo e sua disciplina rígida excluíram as mulheres da cena social, porém nesse período já era aceito o fato de mulheres transitarem pelas ruas das cidades a fazer compras, passeios ou mesmo a trabalho. Logo, “pôde-se ver avanços na luta por direitos no campo do trabalho, da educação e da política”, setores antes destinados exclusivamente aos homens28.
O século XIX trouxe mudanças para as mulheres, tanto na Europa quanto na América.
Foi um século no qual, em países mais desenvolvidos, elas buscaram seus direitos e tentaram igualá-los aos dos homens. No Brasil o patriarcalismo ainda era forte, porque mesmo com sua Independência as características principais da sociedade se mantiveram, isto é, o patriarcalismo baseado num meio de produção escravocrata. Segundo Souza, a maior transformação ocorreu “[...] na década de 1870, quando mudanças socioeconômicas foram
minando as bases do patriarcalismo”29.
Na educação também podemos verificar algumas alterações. As mulheres da elite tiveram mais acesso à instrução, que era ministrada em suas próprias residências, e, nesse momento aceita como lago positivo pelos homens. Entendia-se por instrução feminina a dança, o aprendizado de piano, a escrita e a leitura. Livros eram escritos especialmente para esse público, não exigindo de suas leitoras um esforço de reflexão e compreensão30. Assim, traziam temas que não levantavam nenhuma discussão acerca da sociedade, mas, abordavam principalmente o amor, já que, o grande desejo da maioria dessas mulheres era o de se casarem. Na verdade, as mulheres deveriam ser educadas e não instruídas, e, esse fato é notável pelos aprendizados destinados a elas, que não tinham nenhum teor de análise crítica da sociedade ou conteúdos científicos. Em relação às mudanças Cerdeira destaca que,
Ela não mais permanece reclusa à casa-grande, freqüentando festas, teatros e indo à Igreja, o que possibilita um aumento em seus contatos sociais. Sua instrução geral, porém, permanece desvalorizada, uma vez que a sociedade espera que ela seja educada e não instruída. À sua educação doméstica acrescenta-se o cuidado com a conversação, para torná-la mais agradável nos eventos sociais31.
Como mencionado, as mulheres recebiam uma determinada educação para aquilo que a sociedade esperava delas. Como destacado por Hahner “o sistema escolar brasileiro exprimia o consenso social sobre o papel da mulher. Ensinava-se a ela só o que fosse considerado necessário para viver em sociedade”32. Agora elas precisavam falar bem em público, ter familiaridade com algumas artes como a dança, a música e até mesmo outro idioma, no intuito de serem companhias agradáveis aos seus maridos e às pessoas com quem ele mantinha relações de amizade ou negócios. Isso ocorria principalmente quando freqüentavam ambientes públicos elitistas, como bailes e teatros.
Apesar dessas mudanças, as mulheres da elite continuavam limitadas porque não possuíam nem autonomia, nem igualdade perante os homens, já que, a estrutura social, cultural e econômica era apanágio masculino. As limitações eram mais exacerbadas em relação às mulheres menos privilegiadas que se mantinham na ignorância por não poderem desfrutar dos mesmos privilégios que suas colegas da elite. As mulheres pobres, quando possível, freqüentavam as escolas normais, que não possuíam boa qualidade, e cursavam ao máximo o ensino primário. O ensino era privilégio de poucos e a maioria da população brasileira era composta por analfabetos33.
A primeira lei referente à educação feminina, que data de 1827, menciona que as meninas podiam freqüentar a escola somente até o nível elementar, sendo-lhes vedado o ingresso nas instituições de ensino superior. Dava-se destaque às prendas domésticas, como a costura, em detrimento da escrita e aritmética que, aliás, era diferente da aritmética ensinada aos meninos.
A partir da segunda metade do século XIX, a instrução tornou-se mais acessível às mulheres que tiveram a oportunidade de cursar o ensino primário e secundário. Com uma maior instrução elas podiam se dedicar ao magistério, reafirmando a “idéia de que a mulher seria por natureza uma educadora”34. As escolas normais destinadas a formar professores primários preparavam-nas para a carreira de ensino e permitiam que elas continuassem a investir em sua educação. O magistério era visto pela sociedade como uma profissão honrada,
destinado apenas às “mulheres dignas”35. Por sua vez, Franco acredita que devido a sua doçura, paciência e compreensão a mulher passou a representar o modelo ideal para o exercício do magistério, visto que, o homem com o autoritarismo típico à época era inadequado, porquanto, amedrontaria as crianças36.
21 SOUZA, Eros de; BALDWIN, John R. A construção social dos papéis sexuais femininos. Psicologia, reflexão e crítica. v. 13, n.03, 2000, p. 03. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2007.
22 RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: LOPES, Eliane (Org.). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 79.
23 Idem, p. 83.
24 NADER, Maria Beatriz. Op. cit., p. 197.
25 MERGÁR. Op. Cit. p. 97.
26 MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma fase do conservadorismo. São Paulo: Unesp, 1995, p. 22.
27 SOUZA. Op. cit., p. 82.
28 SOUZA; BALDWIN. Op. cit., p. 03.
29 SOUZA. Op. cit., p. 82.
30 SOUZA. Op. cit., p. 80.
31 MERGÁR. Op. cit., p. 93.
32 HAHNER. June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil (1850-1940).
Florianópolis: Mulheres, 2003, p. 73.
33 SOUZA.Op. cit., p. 82.
34 FRANCO, Sebastião Pimentel. As escolas femininas de formação para o magistério no Espírito Santo:
Primeira República. Dimensões – Revista de História da Ufes. Vitória: Ufes, n. 16, 2004, p. 312.
35 HAHNER. Op. cit., p. 78-79.
36 FRANCO, Sebastião Pimentel. Do privado ao público: o papel da escolarização na ampliação de espaços sociais para a mulher na Primeira República. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2001, p. 85.
Parte integrante do artigo A MULHER NA VISÃO DO PATRIARCADO BRASILEIRO: UMA HERANÇA OCIDENTAL
Revista fato&versões
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