Historiador alemão informa em "A Bomba de Hitler" que os nazistas realizaram três testes nucleares entre 1944 e 1945. Por outro lado, o pesquisador não tem prova alguma para embasar suas teorias
Os Estados Unidos precisaram de 125 mil pessoas, entre as quais seis futuros contemplados com um Prêmio Nobel, para desenvolver as bombas atômicas que explodiram sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945.
A central de enriquecimento do urânio sozinha, incluída a sua área de segurança, tinha o tamanho da cidade alemã de Frankfurt. Chamada de Projeto Manhattan, a pesquisa acabou somando um custo total equivalente, em valores atualizados, a cerca de US$ 30 bilhões (R$ 82,86 bilhões).
Em seu novo livro, "A Bomba de Hitler", o historiador berlinense Rainer Karlsch garante que a Alemanha nazista quase obteve resultados similares, graças à colaboração de alguns poucos físicos pesquisadores apenas, e contando com uma fração deste orçamento.
O autor escreve que esses cientistas alemães, na companhia de membros do exército, conduziram três experiências com armas nucleares pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, uma na ilha alemã de Ruegen, no outono de 1944, e duas na Alemanha Oriental, no Estado de Turíngia, em março de 1945. Os testes, acrescenta Karlsch, mataram mais de setecentos.
Se esta teoria estiver certa, seria preciso reescrever a história.
Desde o dia em que os Aliados ocuparam os laboratórios do Terceiro Reich e interrogaram os cientistas mais importantes em atividade na Alemanha, que trabalhavam em projetos sob a supervisão do engenheiro nuclear em chefe Werner Heisenberg e do seu colega Carl Friedrich von Weizsäcker, é tido como certo que os cientistas de Hitler ainda estavam muito longe de conseguir construir uma arma nuclear completa.
A editora de Rainer Karlsch, a alemã Verlags-Anstalt, já está divulgando anúncios inflamados, garantindo que o livro traz "descobertas sensacionais das mais recentes pesquisas históricas [sobre a Alemanha nazista]".
O Terceiro Reich, afirma a editora, estava "prestes a chegar primeiro na corrida para adquirir a primeira arma nuclear operacional". Até mesmo antes de o livro ser publicado, esta editora, que geralmente costuma mostrar-se mais reservada, enviou kits de imprensa para os meios de comunicação, nos quais ela sustenta que o autor havia desvendado "um dos maiores mistérios do Terceiro Reich".
O livro foi apresentado na última segunda-feira (14/03) por ocasião de uma coletiva de imprensa minuciosamente organizada. Karlsch, um acadêmico não-afiliado, planeja realizar uma extensa turnê para divulgar o seu livro.
O único problema com todo esse estardalhaço é que o historiador não tem prova real alguma para embasar a sua teoria espetacular.
Os depoimentos que ele colheu ora carecem de credibilidade, ora são desprovidos de qualquer conhecimento imediato dos eventos descritos no livro. Os documentos que, conforme Karlsch insiste em afirmar, constituem peças-chave para sustentar a sua tese, podem, na verdade, ser interpretados de diversas formas, algumas das quais contradizem a sua teoria.
E finalmente, as análises de amostragens do solo que foram colhidas até este momento nos locais onde essas bombas teriam sido detonadas não fornecem "nenhuma indicação de que houve a explosão de uma bomba atômica", segundo informações que foram fornecidas por Gerald Kirchner, da agência federal alemã de proteção contra radiações.
Rainer Karlsch passou vários anos em arquivos pesquisando o seu assunto, no decorrer dos quais ele descobriu muitos documentos desconhecidos sobre a história da ciência durante o Terceiro Reich.
Entre eles está um manuscrito de um dos discursos de Heisenberg (Werner Heisenberg, físico, 1901-1973) que os historiadores até então davam como perdido. Por si só, este manuscrito teria constituído uma descoberta significativa, mas isso não era o bastante para satisfazer Karlsch nem para embasar plenamente a sua teoria fora do comum.
Em conseqüência disso, para dar asas à sua teoria, ele foi obrigado a arriscar alguns saltos especulativos.
O efeito bazuca
Por um lado, Karlsch se concentra na pessoa de Erich Schumann, um cientista que serviu o exército alemão como diretor de pesquisas da divisão de armas até 1944.
Em meio ao conjunto de bens que pertenceram a Schumann, Karlsch descobriu anotações e relatórios redigidos no período do pós-guerra. Schumann, que era um antigo professor de física, escreveu que em 1944 ele descobrira um método para gerar as altas temperaturas (vários milhões de graus Celsius) e a pressão extrema necessárias para desencadear a fusão nuclear, utilizando para isso explosivos convencionais. A bomba de hidrogênio baseia-se neste princípio.
Durante a Segunda Guerra Mundial, especialistas em explosivos realizaram experiências com cargas ocas --formadas essencialmente por dispositivos explosivos cavados na sua parte interna-- que possuem uma força de impacto e de penetração extremamente elevada.
O sucesso da bazuca é baseado neste efeito e Schumann acreditava que ele poderia aplicá-lo a uma arma nuclear. Ele tomava por certo que uma quantidade suficiente de energia para a fusão nuclear seria liberada se duas cargas ocas fossem percutidas uma contra a outra.
Esta é uma teoria que merece ser considerada seriamente. No entanto, Schumann nunca reivindicou ter testado a sua teoria na prática. Mesmo assim, Karlsch acredita que ele realizou esta experiência. Ele garante que Schumann expôs as suas idéias numa conferência que ocorreu no outono de 1944.
O autor então especula que, sob as ordens de oficiais da SS (força paramilitar nazista), uma equipe de físicos pesquisadores dirigida por Kurt Diebner, um rival de Heisenberg, pôs a descoberta para funcionar.
Karlsch baseia a sua teoria em parte em declarações feitas por Gerhard Rundnagel, um encanador que trabalhava a serviço da força de segurança da Alemanha Oriental, a Stasi. Nos anos 60, a Stasi tomou conhecimento de rumores que estavam circulando no antigo Estado alemão de Turíngia segundo os quais teria ocorrido uma detonação nuclear na região em 1945.
Rundnagel contou aos serviços de inteligência que ele tivera contatos com a equipe de pesquisas dirigida por Kurt Diebner. Ele acrescentou que um dos engenheiros do grupo lhe dissera que havia "duas bombas atômicas dentro de um silo blindado".
Mais tarde, Rundnagel chegou a afirmar que as duas bombas haviam sido lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. A despeito desta inconsistência, Karlsch acredita que o homem deveria ser levado a sério.
Uma argumentação repleta de buracos
O maior buraco na argumentação de Karlsch provém da sua incapacidade de comprovar de que maneira o grupo de Diebner conseguiu pôr em prática as idéias de Schumann.
Segundo Karlsch, Diebner e seus colegas utilizaram um dispositivo especial que combinou a fissão e a fusão nucleares juntas para iniciar uma reação em cadeia. Contando com a ajuda de engenheiros, Karlsch produziu um desenho para representar tal arma, que ele apresenta no seu livro. Joachim Schulze, um especialista em armas nucleares do Instituto Fraunhofer, na Alemanha, examinou o modelo de Karlsch e disse que ele "não poderia funcionar, de maneira alguma".
Uma outra teoria que Karlsch apresenta no seu livro --a de que a marinha alemã havia realizado um teste com uma arma nuclear na ilha de Ruegen, no Mar Báltico-- não é menos que fantástica.
A sua testemunha-chave é Luigi Romersa, um antigo repórter de guerra do jornal milanês "Corriere della Sera". Por anos a fio, Romersa, um romano que hoje tem 87 anos, andou contando a história de como ele visitou Hitler em outubro de 1944 e foi então enviado de avião para uma ilha no Mar Báltico.
Romersa conta que ele foi levado para um abrigo onde foi testemunha de uma explosão que produziu uma luz brilhante, e que os homens que trajavam roupas de proteção o levaram então do local, dizendo-lhe que ele acabara de testemunhar a explosão de uma "bomba de fissão".
Infelizmente, Romersa não se lembra do nome da ilha que ele diz ter visitado, nem de quem era responsável pela realização deste evento estranho.
Karlsch acredita que era Ruegen. Ele simplesmente descarta o fato de que uma análise do solo não mostrou nenhum indício de que teria havido uma explosão nuclear, concentrando a pesquisa nos níveis de erosão.
Um testemunho mais confiável é aquele de uma moradora da Turíngia, que faleceu recentemente, Clare Werner. Em 4 de março de 1945, Clare, que estava caminhando numa encosta nas proximidades, testemunhou uma explosão que ocorreu numa área de treinamento militar, perto da cidade de Ohrdruf.
"Aconteceu por volta das 21h30; de repente eu vi alguma coisa ... era algo tão brilhante quanto centenas de relâmpagos, era vermelho na parte interna e amarelo na parte externa, tão brilhante que era possível ler o jornal. Tudo aconteceu tão rápido, e então nós não vimos mais nada. Apenas pudemos constatar que havia um vento muito forte..."
A mulher disse que passou a sofrer então de "sangramentos no nariz, dores de cabeça e pressão nos ouvidos".
No dia seguinte, Heinz Wachsmut, um operário que trabalhava para uma companhia local de escavação, recebeu a ordem de ajudar os SS a construir plataformas de madeira sobre as quais os cadáveres dos prisioneiros eram cremados.
Segundo Wachsmut, os corpos estavam cobertos por horríveis ferimentos provocados por queimaduras. Assim como Clare Werner, Wachsmut relata que muitos habitantes da região se queixaram de dores de cabeça, e que muitos deles cuspiam sangue.
Segundo o relato de Wachsmut, vários oficiais SS de alta patente contaram às pessoas que uma experiência havia sido realizada com alguma coisa nova, uma coisa a respeito da qual o mundo inteiro logo estaria falando. É claro, não houve qualquer referência a armas nucleares.
Será que Stalin ouviu relatórios sobre a arma?
E o que dizer das 700 vítimas, supostamente prisioneiras do campo de concentração, que, segundo Karlsch, teriam morrido durante os testes?
Essa estatística impressionante nada mais é que uma estimativa baseada na quantidade de locais onde se procedia à cremação dos corpos, até onde Wachsmut consegue se lembrar.
Contudo, na data da suposta detonação da bomba, no campo de concentração de Ohrdruf, que era parte do complexo mais amplo de Buchenwald, foram registrados não mais que 35 mortos.
Um outro elemento de prova que Karlsch menciona é um relatório dos serviços de espionagem do exército soviético que foi redigido em março de 1945.
Segundo este documento, que cita uma "fonte confiável", os alemães "provocaram duas importantes explosões em Turíngia". E o espião soviético acrescentou: presume-se que as bombas continham urânio 235, um material utilizado na fabricação de armas nucleares, e que elas produziram um "efeito fortemente radioativo".
Os prisioneiros de guerra que se encontravam à proximidade do local da explosão foram mortos, "e, em muitos casos, os seus corpos foram completamente desintegrados".
Os espiões do Exército Vermelho manifestaram a preocupação de que o exército alemão pudesse "tornar a nossa ofensiva mais lenta" com a descoberta desta nova arma.
O fato de o ditador Josef Stalin ter recebido apenas uma das quatro cópias deste relatório mostra que o Kremlin não levou essas notícias tão a sério assim.
Infelizmente, o documento que Karlsch apresenta é de uma qualidade tão questionável que não permite determinar claramente se o relatório que descreve as explosões foi redigido antes ou depois da detonação que Clare Werner diz ter testemunhado.
O que é mais importante, contudo, é que aquilo que Clare Werner garante ter visto não poderia ser uma detonação de uma bomba do tipo daquela que o informante alemão descreveu para o serviço de espionagem do Exército Vermelho.
Aquele tipo de artefato teria exigido vários quilogramas de urânio fortemente enriquecido, que os alemães não possuíam, conforme acreditam todos os especialistas, inclusive Karlsch.
Existe um único especialista que, conforme esperam o autor e o seu editor fanfarrão, pode dar sustentação às teorias de Karlsch. Uwe Keyser, um engenheiro de física nuclear que trabalha no Instituto Federal de Física e de Tecnologia de Braunschweig, na Alemanha, está analisando atualmente amostragens do solo da área do campo de concentração de Ohrdruf.
Keyser acredita que os níveis de radioatividade das substâncias que ele conseguiu detectar até agora são suficientemente atípicos para que a explosão de um dispositivo nuclear simples não seja descartada.
É claro, a radioatividade que Keyser diz ter detectado poderia também ter sido causada por processos que ocorrem normalmente na natureza, ou por algum material que foi abandonado pelas forças soviéticas que estiveram estacionadas em Ohrdruf até 1994, ou ainda por partículas radioativas que foram geradas pelo desastre de Chernobyl, em 1986, ou mesmo por testes com armas nucleares que teriam sido realizados por uma das superpotências.
Keyser afirma que ele precisa de "cerca de um ano" para desenvolver uma análise mais precisa. Ele também precisa de alguém que "assine embaixo" suas teorias, e que continue a pagar as suas contas.
Klaus Wiegrefe,
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