Roosevelt atribuiu ao presidente brasileiro a coautoria da política econômica que pôs fim à crise americana nos anos 1930
Flávio Limoncic
“Duas pessoas inventaram o New Deal: o presidente do Brasil e o presidente dos Estados Unidos”. O autor da frase foi o próprio criador do histórico plano de recuperação da economia norte-americana, Franklin Delano Roosevelt (1882-1945). O elogio foi feito em visita ao Rio de Janeiro, em novembro de 1936, e referia-se ao governo de Getulio Vargas.
Pode ter sido apenas uma gentileza do visitante. Ou alguém imagina que possa haver algo em comum entre o presidente que tirou os Estados Unidos da Grande Depressão e o líder que viria a ser, um ano depois, o ditador do Estado Novo, muitas vezes comparado a Mussolini?
A associação é mesmo rara, mas Roosevelt não falou aquilo à toa. Diante da crise do liberalismo iniciada com o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, e que se prolongaria por boa parte da década de 1930, ambos colocaram o Estado no centro da vida econômica de seus países: Roosevelt, para enfrentar os problemas de uma gigantesca economia industrial em depressão, e Vargas, para industrializar o Brasil. Ao fazê-lo, construíram pactos sociais com setores do movimento sindical e do empresariado.
As obras públicas, projetos de desenvolvimento e de geração de emprego e renda foram acionados pelos dois. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, cuja construção começou em 1941, se tornaria um marco do desenvolvimento industrial brasileiro, ao passo que a Tennessee Valley Authority, de Roosevelt, seria o mais ambicioso programa de desenvolvimento regional até então implementado. Para gerar empregos e renda, o New Deal lançou mão também de programas criativos como o Civilian Conservation Corps (CCC), que mobilizou 2,5 milhões de jovens na restauração de sítios históricos, manutenção dos Parques Nacionais, limpeza de reservatórios de água, conservação de solo e plantio de dois bilhões de árvores.
Por outro lado, Vargas e Roosevelt colocaram o Estado no coração das disputas entre capital e trabalho. No Brasil, os sindicatos foram enquadrados em uma estrutura corporativa, enquanto nos Estados Unidos a Lei Wagner (1935) lhes garantia mais liberdade. Ainda assim, as organizações de trabalhadores submetiam-se a uma série de procedimentos, obrigações e normas ditados pela Agência Nacional de Relações de Trabalho. Tal qual a Justiça do Trabalho de Vargas, a Agência tinha não só o poder de criar normas, mas também de julgar litígios.
A Era Vargas e o New Deal buscaram ainda construir novas identidades nacionais para brasileiros e americanos, com a valorização da memória e da natureza de seus países. Vargas, além de ter criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, atual Iphan), criou também o Parque Nacional de Itatiaia, o primeiro do país, além dos Parques do Iguaçu e da Serra dos Órgãos. A capoeira e o samba foram apropriados pelo regime como símbolos da nação e cantigas folclóricas foram elevadas à condição de grande arte sob a batuta de Heitor Villa-Lobos. Nos Estados Unidos, o muralismo de inspiração mexicana, o realismo social e as cenas coletivas espalharam-se por repartições públicas e sítios históricos de todo o país. A arte era financiada pelo Projeto Federal de Artes, o Projeto Federal de Música e o Projeto Federal de Teatro, e passou a retratar o homem comum, os trabalhadores rurais, os índios, os hispânicos, os negros, assim como as belezas naturais do país. As sociedades brasileira e americana, por iniciativa, incentivo ou financiamento do Estado, repensavam suas identidades e eram convidadas a ver “sua melhor face”. Não nos Du Pont, família de grandes empresários, ou nos cafeicultores e industriais paulistas, mas nos “trabalhadores do Brasil” de Vargas e nos “homens esquecidos” de Roosevelt.
A nova força do Estado chegou a expressar-se em um culto às personalidades dos dois presidentes. Vargas, o “Pai dos Pobres”, multiplicava-se em retratos pendurados nos lares das famílias trabalhadoras e em salas de sindicatos, assim como as fotos de Roosevelt, embora, no caso americano, essa não fosse uma política deliberada. E ambos também fizeram uso intenso do rádio para se comunicar diretamente com os “trabalhadores do Brasil” e os “homens esquecidos”. Na “Hora do Brasil”, Vargas falava de suas ações e realizações, ao passo que nas fireside chats – programas radiofônicos ouvidos pelas famílias ao redor da lareira –, Roosevelt falava de suas iniciativas para combater a crise.
Numa época em que as lideranças carismáticas eram associadas ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo, o presidente norte-americano também se viu acusado de ser personalista e autoritário. Seu discurso de posse, no dia 4 de março de 1933, parece ecoar notórios ditadores do período:
“Se queremos nosso progresso, devemos nos mover como um exército treinado e leal, disposto ao sacrifício em nome da disciplina comum, porque sem tal disciplina, nenhum progresso é possível, nenhuma liderança torna-se efetiva. Estamos, sei, prontos e desejosos de submeter nossas vidas e propriedades a tal disciplina, porque ela torna possível uma liderança cujo objetivo é o bem comum”.
Ao contrário de Vargas, no entanto, Roosevelt não fechou o Congresso. Mas tampouco atacou o traço mais antidemocrático do sistema político e da sociedade americana: a negação do direito de voto aos negros e a segregação racial. Diante de uma Constituição fortemente federalista, Roosevelt preferiu não enfrentar o direito dos estados de decidirem de modo autônomo suas legislações raciais – ainda que tenha dado mostras de simpatia pelo fim da segregação. Em 1939, quando a cantora lírica negra Marion Anderson foi impedida de cantar no auditório da associação Daughters of the American Revolution, em Washington, a primeira-dama, Eleonor Roosevelt, articulou a realização de um concerto público no monumental Lincoln Memorial. A praça recebeu 75 mil pessoas.
Uma grande distância havia sido percorrida desde 1915, quando o filme “O nascimento de uma nação”, que mostrava a ação da Klu Klux Klan em defesa da supremacia branca, recebeu comentários elogiosos do então presidente democrata Woodrow Wilson. Ainda assim, os trabalhadores negros, duramente atingidos pelo desemprego (que em 1933 chegou a 30%), foram menos beneficiados do que os brancos pelas políticas do New Deal. E não só eles. Como no Brasil de Vargas, os benefícios trabalhistas e previdenciários do New Deal deixaram de fora trabalhadores rurais e domésticos. Nos dois países, as populações do interior foram beneficiadas por outros tipos de políticas públicas, como o Serviço Nacional de Febre Amarela e o Tennessee Valley Authority, que favoreceu uma das regiões mais pobres dos Estados Unidos.
Ao longo de doze anos (ele foi eleito quatro vezes consecutivas, em 1932, 1936, 1940 e 1944), Roosevelt, de sua cadeira de rodas, liderou o combate à Grande Depressão e conduziu seu país na Segunda Guerra Mundial. Fisicamente esgotado, morreu vítima de um derrame cerebral antes de ver a vitória aliada na Europa e a pujança da economia americana do pós-guerra, que ajudou a forjar com o New Deal. O suicídio de Vargas, por seu lado, acabou para agigantá-lo diante de seus antecessores e sucessores, a maioria dos quais figuras incapazes, se não de ter a grandeza de sair da vida para entrar na História, ao menos de ter a coragem de entrar na História enquanto vivas. Suas mortes, quase épicas, certamente contribuíram para a construção de seus mitos.
Porém, mais do que mitos, Roosevelt e Vargas foram os grandes divisores de águas das histórias de seus países no século XX. No momento em que o mundo enfrenta uma crise econômica que a muitos faz lembrar a Grande Depressão, o New Deal e a Era Vargas voltam ao centro do debate político e acadêmico.
Flávio Limoncic é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e autor de Os inventores do New Deal: Estado e sindicatos no combate à grande depressão (Civilização Brasileira, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia:
ARRUDA, José Jobson de Andrade. “A crise do capitalismo liberal”. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jorge Ferreira; Celeste Zenha. (orgs.). O século XX. O tempo das crises. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
A volta do Estado forte?
“That’s my man!”, exclamou Obama ao encontrar o presidente do Brasil, em frase livremente traduzida como “Lula é o cara!” As palavras do novo presidente americano lembram as de Roosevelt, que em 1936 dividiu com Vargas a paternidade do New Deal. Os tempos são outros – e a crise também –, mas os passos dos atuais governantes seguem uma trilha parecida com a daquela época: o Estado sai da sombra para segurar as pontas do liberalismo que desandou.
Entoado como um mantra na década de 1990, o neoliberalismo disseminou-se com base em uma cartilha imutável para as nações que desejassem participar do maravilhoso capitalismo globalizado: investimentos privados, créditos ampliados e empresas multinacionais só chegariam aos países que segurassem a inflação e “enxugassem” a máquina pública.
Era o auge da teoria do “Estado mínimo”. Os mercados passaram a se “autorregular” e as privatizações reduziram a máquina pública ao mínimo indispensável (ou menos que isso). Por aqui, a onda marcou os mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando empresas de telecomunicações, de energia elétrica e de mineração, entre outras áreas, passaram para a iniciativa privada.
Mas a desregulamentação radical dos mercados virou um tiro no pé, e é apontada como principal causa da crise atual, que eclodiu nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. A ironia é que as empresas e os bancos, até então adeptos da não intervenção estatal, correram ao governo para pedir uma mãozinha assim que se viram às portas da falência. Em todo o mundo, esse socorro público já ultrapassou dois trilhões de dólares.
No Brasil, Lula (eleito em 2002) sempre adotou políticas de forte intervenção estatal na economia, acusado pela oposição de aumentar os impostos e não reduzir gastos nem pessoal. Agora que a maré virou, sua agenda “antineoliberal” entrou na ordem do dia.
Em tempos de crise – já ensinavam Roosevelt e Vargas –, quem não quer um Estado forte?
Revista de História da Biblioteca Nacional
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