domingo, 28 de outubro de 2012

O novo ciclo da revolução burguesa


O que ocorre com o globalismo, quando o capitalismo ingressa em novo ciclo de expansão mundial, é que a revolução burguesa ingressa em novo ciclo, também global. Aos poucos, ou de repente, abalam-se os quadros sociais e mentais de referência de uns e outros, em todo o mundo. Todos são desafiados a re-situar-se no novo mapa do mundo

Por Octávio Ianni

No século XXI, muitos estão empenhados em compreender e explicar as situações, os acontecimentos e as rupturas, assim como as relações, os processos e as estruturas que se formam e transformam com a sociedade global; uma sociedade na qual se subsumem as sociedades nacionais, em seus segmentos locais e em seus arranjos regionais. Ocorre que a sociedade global, vista em suas implicações simultaneamente econômicas, políticas e culturais, demográficas, religiosas e lingüísticas, constitui-se como nova, abrangente e contraditória totalidade, uma formação geo-histórica na qual se inserem os territórios e as fronteiras, as ecologias e as biodiversidades, os povos e as nações, os indivíduos e as coletividades, os gêneros e as etnias, as classes sociais e os grupos sociais, as culturas e as civilizações. Uma “totalidade” simultaneamente histórica e teórica, ou seja, uma formação social e uma categoria que adquirem predominância crescente sobre umas e outras formações sociais: locais, nacionais e regionais.

Está em curso o desenvolvimento de um novo ciclo de profundas transformações sociais, compreendendo as �forças produtivas�, isto é, o capital, a tecnologia, a força de trabalho, e divisão do trabalho social, o mercado, o planejamento e o monopólio da violência; e as “relações de produção”, isto é, as instituições jurídico-políticas e econômico-financeiras, os poderes do Estado e as organizações multilaterais, o direito internacional, as instituições relativas à integração regional, a mídia também nacional e transnacional, as redes, teias e os sistemas articulando indivíduos, coletividades, povos, nações, corporações e organizações. Tudo isso envolvendo classes sociais e grupos sociais, gêneros e etnias, línguas e religiões. Está em curso, portanto, um novo ciclo de desenvolvimento da revolução burguesa em escala mundial.

É claro que as revoluções burguesas sempre transbordaram das fronteiras nacionais. As revoluções ocorridas na Holanda, Inglaterra e França ultrapassaram as fronteiras das metrópoles, alcançando as respectivas colônias, bem como outros povos e nações em outros continentes. Houve inclusive influências recíprocas entre as diversas revoluções. É evidente que a revolução de independência das colônias britânicas da Nova Inglaterra influenciou a própria Inglaterra, repercutindo em colônias ibéricas do Novo Mundo; sem esquecer que aquela revolução da independência foi a primeira batalha de uma longa revolução burguesa em curso nos Estados Unidos da América do Norte durante o século XIX. As revoluções “prussiana”, na Alemanha em formação, e “passiva”, na Itália em formação, bem como a Restauração Meiji, no Japão, as três ocorridas nos anos 60 e 70 do século XIX, repercutiram em vizinhos e em povos mais distantes. Sim, a revolução burguesa nacional sempre transborda das fronteiras do país em que ocorre. Inclusive cabe observar que todas inserem-se nas configurações e nos movimentos dos vastos processos históricos que se sintetizam nos conceitos de mercantilismo, colonialismo e imperialismo.

O que ocorre com o globalismo, quando o capitalismo ingressa em novo ciclo de expansão mundial, é que a revolução burguesa ingressa em novo ciclo, também global. Aos poucos, ou de repente, abalam-se os quadros sociais e mentais de referência de uns e outros em todo o mundo. Todos são desafiados a re-situar-se no novo mapa. As forças produtivas e as relações de produção, em moldes capitalistas, desenvolvem-se intensiva e extensivamente por todo o mundo, rearticulando e fortalecendo as redes e telas sistêmicas; tanto quanto acentuando e generalizando processos de desarticulação e fragmentação, também em escala mundial. Generalizam-se ainda mais os princípios do liberalismo criados em âmbito nacional, agora em âmbito mundial, nos termos do neoliberalismo. Generalizam-se ainda mais os princípios codificados nas expressões “liberdade”, “igualdade” e “propriedade”, organizados no “contrato”, enquanto instituto jurídico-político fundamental da sociedade de mercado, burguesa ou capitalista. Desenvolve-se um vasto processo “pedagógico” orientado no sentido da difusão e reafirmação das distinções entre o “público” e o “privado”, o “lucro”e a “corrupção”, o “Estado mínimo” e o “mercado aberto”, a “economia emergente” e a “inserção no mercado mundial”, o “equilíbrio monetário nacional” e o “equilíbrio monetário mundial”; tudo isso monitorizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird: Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), a santíssima trindade do capitalismo em geral; tudo isso orquestrado por grande parte da mídia impressa e eletrônica mundial, ela também composta por corporações transnacionais. Sob muitos aspectos, portanto, o ciclo do globalismo assinala um novo ciclo das revoluções burguesas, em escala mundial.

O que está em causa, quando se fala em mundialização, planetarização, globalização, globalidade ou globalismo é uma ampla e profunda transformação geral, envolvendo a economia e a sociedade, a política e a cultura, a ecologia e a demografia, as línguas e as religiões. Tudo se abala mais ou menos radicalmente, de modo desigual e também contraditório. Tanto é assim que ocorrem ressurgências de nacionalismo e localismo, reafirmação de identidades presentes ou pretéritas, surtos de xenofobias, etnicismos, racismos e fundamentalismos, não só religiosos como também culturais. Em vários momentos da história, inclusive ao longo dos séculos XX e nos inícios do XXI, o “cristianismo” do Vaticano e o “ocidentalismo” europeu e norte-americano têm sido brutamente fundamentalistas, principalmente quando se associam.

Mais uma vez, reabrem-se os debates sobre a “identidade”, o “outro�, a “desnacionalização” e a “desterritorialização”, o “lugar”, o “território”, a “fronteira” e o “espaço”, o “mundo sem fronteiras”, a “aldeia global”, a “terra-pátria” e “babel”.

Todos, em todo o mundo, são obrigados a defrontar-se com o desenvolvimento desigual e combinado, a não-contemporaneidade e a transculturação. Aos poucos, modificam-se ou dissolvem-se as linhas divisórias entre o Ocidente e o Oriente, a África e a Europa, a América Latina e a América Anglo-saxônica, devido às migrações transcontinentais, aos fluxos de mercadorias globais, aos movimentos mundiais de idéias, aos eventos artísticos, esportivos e outros; além da multiplicação de negociações, fusões e aquisições no âmbito das corporações, e das tensões, soluções e irresoluções. Tudo isso movimentando a máquina do mundo.

A rigor, o novo ciclo de globalização do capitalismo, com o qual se forma e desenvolve a sociedade civil mundial, não ocorre ao acaso, como se fora um processo inesperado e cego. Ainda que seja errático e contraditório, também revela-se sistemático, combinando teoria e prática com ideologia. Sim, porque esse novo ciclo de desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo, em escala mundial, é influenciado ou conduzido principalmente pela “burguesia mundial”, que já vinha se desenvolvendo por dentro e por fora dos imperialismos; burguesia mundial essa com a qual se associam membros de outros setores sociais, também em curso de transnacionalização. E cabe ressaltar a contribuição de setores intelectuais diversos, dentre os quais encontram-se economistas, financistas, administradores, técnicos em eletrônica, jornalistas, sociólogos e muitos outros, oriundos das ciências sociais e naturais. Formam-se “tecnoestruturas transnacionais”, “think tanks” cosmopolitas, organizações empresariais especializadas em assessorias e consultorias de todos os tipos, inclusive credenciados para diagnosticar e classificar a categoria e confiabilidade de cada país, empresa, corporação e conglomeração, no que se refere ao investimento e à lucratividade, à previsibilidade e à confiança presente e futura.1

É assim que se abalam mais ou menos radicalmente os quadros sociais e mentais de referência que se haviam desenvolvido sob emblema do nacionalismo, da sociedade nacional, do Estado-Nação, da “modernidade-nação” ou da primeira modernidade. Sob o emblema do globalismo, tanto se recriam quadros sociais e mentais de referência anteriores como se criam novos, surpreendentes, inquietantes ou fascinantes. Formam-se a sociedade civil mundial e as estruturas mundiais de poder, redesenhando o mapa do mundo, quando se redefinem ou declinam soberanias nacionais e emergem as corporações transnacionais, de par-em-par com as organizações multilaterais, como os principais porta-vozes das classes dominantes mundiais. São muitas as instituições e os ideais, as práticas e os valores que se formam no âmbito do globalismo, da sociedade civil mundial. Nesse cenário complexo, contraditório e de amplas proporções, abrem-se outras e novas perspectivas para a ciência e a técnica, a comunicação e a informação, a desterritorialização e a miniaturização. Multiplicam-se os “espaços” e aceleram-se os “tempos”, em todas as direções, em todas as esferas de atividade e imaginação, graças às tecnologias eletrônicas com as quais se globaliza ainda mais intensa e generalizadamente a globalização. Esse é o novo palco da história, da modernidade-mundo, ou segunda modernidade.

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto, todo o conjunto das relações sociais… O contínuo revolucionar da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas.

“A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o terreno nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas – indústrias que não mais empregam matérias-primas locais, mas as provenientes das mais remotas regiões, e cujos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em todas as partes do mundo… Em lugar da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direções um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isso tanto na produção material quanto na intelectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.” 2

É óbvio que são ainda muitos os que reagem à globalização, combatendo-a em nome do localismo, nacionalismo e regionalismo, mobilizando inclusive fundamentalismo, xenofobias, etnicismos e racismos, e também organizando-se em movimentos “neofascistas”, “neonazistas”, nazifascistas”, em diferentes países e continentes. Há ressurgências de ideais ou experiências pretéritas ou nostálgicas, nas quais ressoam épocas passadas, reminiscências de regime ou moldes de vida “arqueológicos”.

Mas já são numerosos os indivíduos e as coletividades, as classes sociais e os grupos sociais que padecem da globalização e, simultaneamente, se conscientizam, organizam, reivindicam e lutam por outra globalização, pela “globalização desde baixo”. Aí estão as raízes do neo-socialismo. Aí estão as condições sociais, simultaneamente econômicas, políticas e culturais, sob as quais se recriam os ideais, as organizações e as práticas empenhadas na socialização da propriedade e do produto do trabalho coletivo, agora vistos em perspectiva mundial.
“Os manifestantes estão realmente unidos contra a atual forma de globalização capitalista… Os próprios protestos se tornaram movimentos globais e um de seus objetivos mais claros é a democratização dos processos globalizadores. Não deve ser chamado de movimento antiglobalização. Trata-se de um movimento alternativo de globalização, que quer eliminar desigualdades ente ricos e pobres e expandir as possibilidades de autodeterminação… Já vemos sementes desse fruto no mar de rostos que se estende das ruas de Seattle às de Gênova. Uma das características mais marcantes desses movimentos é sua diversidade, sindicalistas ao lado de ecologistas, com sacerdotes e comunistas. Estamos começando a ver o surgimento de uma multidão que não é definida por uma identidade isolada, mas que consegue descobrir a comunidade em sua multiplicidade”.3

Esse é o contexto geo-histórico, a formação social mundial, o novo palco da história, em que muitos se organizam e lutam por uma democracia política e social, nos moldes do neo-socialismo.

Um socialismo que se enraíza nas diversidades e desigualdades sociais, não só locais, nacionais e regionais, mas principalmente mundiais, enraizando-se também na avaliação crítica das experiências socialistas já realizadas em diferentes nações, ou em curso na China e em Cuba, enraizando-se inclusive nas contribuições filosóficas, científicas e artísticas que se multiplicam no Ocidente e no Oriente, na África e na América Latina, no Caribe e na Oceania, na América do Norte e nas diversas Europas.

Vistas assim, em perspectiva ampla e em toda a sua complexidade, a era do globalismo assinala o desenvolvimento de uma nova época da revolução burguesa mundial. Essa é uma revolução que se desenvolve em várias ocasiões e em distintas configurações. Teve um momento fundamental por dentro e por fora das guerras napoleônicas, com raízes na revolução industrial inglesa e na revolução política francesa, desdobrando-se no primeiro ciclo histórico de descolonização do Novo Mundo. E teve continuidade por dentro e por fora do imperialismo, em suas versões inglesa, holandesa, francesa, belga, alemã, russa, japonesa e outras. Na época do globalismo, no entanto, entra em novo ciclo o desenvolvimento da revolução burguesa mundial, por dentro da qual criam-se novas condições da revolução social, socialistas, esta também, enquanto transnacional, ou seja, uma revolução socialista mundial.

“O período burguês da história está chamado a assentar as bases materiais de um novo mundo: desenvolver, de um lado, o intercâmbio universal, baseado na dependência mútua do gênero humano, e os meios para realizar esse intercâmbio, e de outro, desenvolver as forças produtivas do homem e transformar a produção material num domínio científico sobre as forças da natureza. A indústria e o comércio burgueses vão criando essas condições materiais de um novo mundo, do mesmo modo que as revoluções geológicas criavam a superfície da Terra.”4

1. Perry Anderson, Balanço do Neoliberalismo, Emir Sader e Pablo Gentili (organizadores), Pós-Neoliberalismo, Paz e Terra, São Paulo, 1995, cap 1, pp. 9-37; Eduardo Rosenzvaig, Neoliberalism, Latin American Perspectivas, vol. 24, número 6, novembro 1997, pp. 56-62; Richard J. Barnet e Ronald Muller, Poder Global (A Força Incontrolável das Multinacionais), trad. De Ruy Jungmann, Distribuidora Record, Rio de Janeiro, s/d (edição original em inglês de 1974); C. Fred Bergstein (Coord.), O Futuro do Comércio Internacional (As Teses de Maidenhead), trad. De Ricardo Stavola Cavaliere e Liane Moraes, Editora da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979 (edição original em inglês de 1975); Banco Mundial, Do Plano ao Mercado (Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial), Washington, 1996. (subir)

2. Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, trad. De Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Editora Vozes, Petrópolis, 1988, pp.69-70; citações do cap 1: Burgueses e Proletários.(subir)

3. Michael Hardt e Antonio Negri, “Manifestantes Querem Globalização Alternativa”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 de julho de 2001, p. B-3. Consultar também: Michael Hardt e Antonio Negri, Empire, Harvard University Press, Cambridge, 2000; Samir Amim, Los Desafios de la Mundialização, trad. De Marcos Cueva Perus, Siglo Veintiuno Editores, México, 1996; David Miliband (org.), Reinventando a Esquerda, trad. De Raul Fiker, Editora Unesp, São Paulo, 1997. (subir)

4. Karl Marx, “Futuros Resultados do Domínio Britânico na Índia”, Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, 3 vols. Edições Sociais, São Paulo, 1977, 3o volume, pp.292-297; citação da p. 297. A edição não menciona o tradutor.
Revista Fórum

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