Passando da mitologia à cartografia, enfrentando a Inquisição ou servindo aos donos do poder, os monstros acompanham os homens há milênios
Alexandre Belmonte, Bruno Garcia e Rodrigo Elias
“Aqui há dragões”.Era assim que muitos mapas do início da Era Moderna advertiam os navegantes a respeito de áreas desconhecidas do globo terrestre. E não somente dragões, mas também sereias, serpentes e monstros marinhos capazes de engolir embarcações inteiras.
Assim como Adão fez com as bestas criadas por Deus, de acordo com a tradição bíblica, os homens têm dado nomes aos monstros ao longo dos tempos. Entretanto, neste particular, superaram Adão e chegaram a ser deuses: eles os criaram.
Em nossa tradição ocidental, que sempre fazemos remontar à Antiguidade Clássica, esses seres demarcam fronteiras. Omonstrum do vocábulo latino é um mensageiro das vontades dos deuses, e se coloca entre o nosso mundo e o sobrenatural; além disso, encerra uma degeneração biológica que indica a deturpação da ordem natural e moral. O terrível Minotauro, da mitologia grega, carrega esses dois significados: resultado de uma maldição divina, por ter sido concebido da cópula de uma mulher e um touro, é meio homem, meio animal; é uma fera que precisa ser confinada em um labirinto para não dar vazão ao seu principal impulso – devorar pessoas.
O cristianismo não apagou a tradição clássica. Ao contrário, incorporou novos elementos, ligados, principalmente, à ação maléfica do diabo. Este, aliás, aparece como um híbrido de homem e animal – com chifres, rabo, patas – na iconografia e na mitologia cristã que vai se consolidando até a Época Moderna. No sabá diabólico, quando tradições da cultura popular e de religiosidades difusas são cristalizadas em um ritual satânico pela ação policial da Igreja, Belzebu se faz presente também sob a forma de animais. Ele é o monstro cristão por excelência: vive entre o mundo espiritual e o natural, se apresenta como um híbrido de homem e animal, e encarna todos os vícios morais. Além disso, mais do que significar um perigo para o corpo, pode matar a alma – medo maior para qualquer cristão medieval. Este grande medo usava como veículos preferenciais as bruxas e os judeus, não à toa identificados com a “feiura” – uma série de estereótipos facilmente reconhecíveis que fugiam de um certo padrão de normalidade, uma deturpação da ordem natural que supõe uma falência moral.
Além deste tipo de monstro, a Idade Média também conheceu, a partir dos escritos antigos, como os de Plínio, o Velho (23-79), ou a partir dos seus cronistas, como Marco Polo (1254-1324), toda uma legião de seres que habitavam os confins do mundo: homens sem cabeça, alguns com cabeça de cachorro, outros com os pés virados para trás, outros, ainda, sem boca e cobertos de pelos, seres alados. Grifos, andróginos, cinocéfalos, monócolos, pigmeus... A lista é extensa, e revela tanto o gosto pelo maravilhoso quanto a qualidade do conhecimento geográfico que a cristandade conservava do restante do mundo.
Ao longo da Época Moderna, com as Grandes Navegações e o contato sistemático dos europeus com as outras regiões do globo, os monstros acompanham as caravelas. Os temíveis seres que habitavam os oceanos no século XVI confirmam a tendênciado Ocidente de deslocar suas criaturas fantásticaspara cada vez mais longe da civilização cristã. Na cartografia, o mapa do veneziano Andrea Bianco, de 1432, mostra homens sem cabeça e com os olhos e a boca no peito. Os monstros demoníacos, por sua vez, eram afastados da Europa cristã e se refugiavam, invariavelmente, no Novo Mundo – de que modo explicar o canibalismo entre os índios brasileiros a não ser pela ação pessoal de Satanás ou dos seus auxiliares diretos?
As viagens tinham um caráter exploratório e de conhecimento, algo tipicamente moderno, com a intenção de conhecer a partir da experiência, mas acabavam incorporando muito do vocabulário e das noções zoológicas fantásticas que vigoravam desde a Idade Média. Na sua História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de 1576, o português de origem flamenga Pero de Magalhães de Gândavo, mesmo enfatizando o caráter “verdadeiro” do seu relato, chega a descrever como um “monstro marinho” foi encontrado e morto na capitania de São Vicente, no litoral do atual estado de São Paulo, em 1564. A criatura, chamada de ipupiara, tinha “quinze palmos de comprido e [era] semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”. Tratava-se, muito provavelmente, de um leão-marinho. Entretanto, por fazer parte de uma fauna desconhecida, foi prontamente chamado de monstro.
Durante a Época Moderna, estes seres – aberrações da realidade conhecida, principalmente quando portadores de alguma humanidade – serviram como uma espécie de duplo do homem. Eles não se situam totalmente fora do domínio do humano, mas no seu limite. Sua imagem deformada e inclassificável induziu, por oposição, à crença na necessidade da existência de uma norma. Eles foram utilizados para definir a humanidade como reino da razão, da sociedade organizada – representavam, de forma grotesca, uma ameaça constante de desintegração do que era considerado normal.
A imagem horripilante serviu, portanto, para amedrontar populações inteiras e para o estabelecimento de certa ordem social. Não à toa, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) escolheu uma criatura horrenda citada na Bíblia e pelos navegadores da sua época, o Leviatã, para dar nome ao seu livro e para servir de metáfora para o poder político centralizado no Estado. Uma besta lendária, parecida com um lobo, que surgiu na região montanhosa de Gévaudan, na França, entre 1764 e 1765, estimulou a imaginação de muita gente na Europa naquela época, e serviu para a reafirmação da autoridade da Igreja e do governo monárquico.
O ser macabro atacou mulheres e crianças, arrancou suas cabeças e, supostamente, sugou seu sangue. Os incidentes, que iam se acumulando, logo foram associados a algum poder maligno sobrenatural, e a besta de Gévaudan passou a ser descrita como um lobisomem, capaz de resistir a armas de fogo. No fim de 1764, o bispo local argumentou que Deus havia utilizado a besta para punir pecadores, o que revela uma outra face dos monstros: eles podem ser a prova da ação divina na vida dos homens.
Missões envolvendo milhares de homens foram enviadas à região para caçar o tal monstro. Mas falharam fragorosamente. O governo, em situação financeira difícil e humilhado numa guerra contra a Prússia, pesando ainda mais sobre a população com novos impostos, era também envergonhado pela besta de Gévaudan. Entre março e abril de 1765, 14 vítimas foram devoradas. Por fim, um enviado real abateu um grande lobo, que foi apresentado ao rei. Mas não se tratava de um ser anormal, muito menos sobrenatural. Pouco a pouco, os eventos na região passaram a ser atribuídos a grupos de lobos que atacavam regularmente rebanhos de ovelhas.
Entretanto, a relação com lobisomens – e, por extensão, com os monstros em geral – nem sempre foi de temor. Na Livônia, região que compreende atualmente a Letônia e a Estônia, um senhor de 80 anos chamado Thiess declarou à Inquisição, em 1692, que era um lobisomem. Três vezes por ano ele ia “ao fim do mar” combater feiticeiras e demônios em nome da fertilidade da colheita. Os cultos agrários, de raízes antigas e que permaneceram após o fim da Idade Média, contaram com criaturas fantásticas que travavam embates noturnos com o sobrenatural em nome da prosperidade local, sem que com isso fossem tratadas como feiticeiros, no sentido maligno atribuído pela Igreja. Os inquisidores logo enquadraram essas criaturas como hereges.
Como se vê, onde há homens, há monstros – sejam seres totalmente imaginários, sejam vidas que não compreendemos muito bem. Por isso chamamos por este nome aqueles que pervertem de forma muito acentuada determinados padrões sociais; daí também o fascínio que temos por suas histórias, já que precisamos negar nossa semelhança com eles.
Em 1961, o governo do Nepal declarou oficialmente que o Yeti (ou Abominável Homem das Neves) existe. Não restam dúvidas. Afinal, como já se escreveu, basta que se fale sobre uma coisa para que ela passe a existir. Com os monstros, que habitam nosso mundo e nossa imaginação desde sempre, com o benefício de nos fazer humanos, não poderia ser diferente.
Alexandre Belmonte, Bruno Garcia e Rodrigo Elias são pesquisadores da Revista de História da Biblioteca Nacional.
Saiba Mais - Bibliografia
GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Zoologia fantástica do Brasil (séculos XVI e XVII). São Paulo: Edusp, 1999.
Um comentário:
Eu amo todos os dragões e mitologia antiga! Eu li muitos livros sobre elfos, magos e bruxas, é um universo fantástico e incrível. Não sou historiador, sou corretor de imoveis leme! Mas eu gosto de mitologia antiga!
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