Até o século XIX, população contava com feitiços para curar doenças
Flavio Coelho Edler
A medicina e a feitiçaria já estiveram muito mais próximas do que se pode imaginar. Durante o Brasil Colônia até o século XIX, a produção de remédios com o uso de animais ligados ao universo mágico, como o morcego e o cão negro, não era exclusividade de curandeiros. Médicos e boticários também receitavam substâncias cujo significado difere muito do que hoje entendemos por ciência, utilizando até mesmo cadáveres humanos em suas fórmulas.
Naquela época, a quantidade de médicos no país era mínima, mas não faltavam representantes das mais variadas ocupações para aplicar todo tipo de feitiços, como barbeiros, sangradores e mezinheiros (que aplica mezinhas, isto é, medicamentos caseiros). Esses terapeutas populares tratavam de doenças e de problemas cirúrgicos com ervas medicinais, amuletos e práticas como o catimbó – culto de possessão, de origem indígena, de caráter mágico-curativo – e o calundu, designação genérica de um ritual associado a danças e cantos coletivos, em que ocorria a invocação de espíritos, adivinhações e curas mágicas, de origem africana, com elementos do catolicismo.
Os físicos – como eram então chamados os médicos – e cirurgiões não tinham uma posição de relevo na sociedade. Esse cenário só mudou a partir da metade do século XVIII, quando, já formados em universidades europeias e membros de academias literárias e científicas, eles passaram a ocupar uma posição mais privilegiada.
Com prestígio muito abaixo do que possuem hoje, doutores, cirurgiões e boticários diplomados não reconheciam a proximidade de sua profissão com a feitiçaria. Pelo contrário, esforçavam-se para estabelecer a diferença entre os dois domínios, reivindicando ao governo a restrição e a regulamentação do ofício dos curandeiros. Para isso, contavam com o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino. A Igreja Católica estabelecia a fronteira cultural entre o universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os procedimentos “científicos” das crenças consideradas “supersticiosas”.
Gradualmente, a medicina oficial foi ganhando força. Algumas medidas foram decisivas para que isso acontecesse. Desde 1826, D. Pedro I já havia concedido o monopólio dos diplomas em cirurgia às escolas médico-cirúrgicas do Rio e da Bahia. Em 1828, foi extinta a Fisicatura-mor, órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e regulamentação das artes terapêuticas. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade. Em 1832, as duas escolas médico-cirúrgicas, que datavam de 1808, tornaram-se Faculdades de Medicina. Finalmente, em 1850, foi criada a Junta Central de Higiene Pública, logo após a primeira epidemia de febre amarela. Mas boa parte dessas medidas era “para inglês ver”, e existiam de sobra vendedores ambulantes de remédios secretos na corte ou nas províncias.
A população ainda não associava competência terapêutica aos diplomas oficiais. As autoridades, por sua vez, faziam vista grossa aos anúncios que ofereciam curas imediatas para os mais diversos males, como pernas inchadas, cancros, carbúnculos (um tipo de infecção grave), moléstias dos olhos, surdez, escrófulas (forma de tuberculose), embriaguez e morfeia (hanseníase).
Em um artigo publicado no periódico Archivo Médico Brasileiro em 1848, seu autor atestava que, na Corte, a cura da bebedeira era monopólio dos curandeiros. Uma “velha do Castelo” administrava um remédio composto de urina de gato e assafétida (um tipo de planta), e um morador da Prainha indicava à sua clientela negra uma infusão com “fedorenta”, seguida de uma purga com aloés (planta) para curar o vício da cachaça.
O uso dos remédios prescritos por médicos ou por curandeiros indicava a que camada da sociedade o cliente pertencia. O acesso aos produtos das farmácias, boticas e drogarias, muitos deles importados, eram quase sempre uma prerrogativa dos brancos ricos. A imensa população de pobres e escravos contava com remédios caseiros, fórmulas feitas com ervas nacionais e outros produtos recomendados ou administrados por curandeiros, sangradores e barbeiros – estes, além dos cortes de cabelo e de barbas, praticavam sangrias, aplicavam ventosas, sanguessugas, faziam curativos e arrancavam dentes. As receitas utilizadas por esses profissionais eram desprezadas pelos “civilizados”, por serem consideradas indignas de gente fina ou delicada. No Diário de Pernambuco, em 1837, a famosa coluna do “Carapuceiro” ridicularizava as ações terapêuticas de “negros boçais”, “caboclos estúpidos” e “velhas comadres”.
A repressão aos curandeiros, antes tolerados, recrudesceu a partir da década de 1870, quando o poder público ampliou o cerco às práticas e concepções populares de cura nos principais centros urbanos. A lei passou a ser aplicada com mais rigor, principalmente na capital do Império. O Código Penal de 1890, da nascente República, embora garantisse a liberdade de consciência e culto, sancionava a perseguição aos terapeutas populares, criminalizando as práticas do espiritismo, da magia, do uso de talismãs e das cartomancias quando empregadas para a cura de moléstias. O exercício do ofício de curandeiro também era formalmente proibido e estava sujeito a penas de prisão e multa.
As associações médicas de grande prestígio, como a Academia Nacional de Medicina e a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, influíram na elaboração desses dispositivos legais. Elas reivindicaram o monopólio da assistência médica para os doutores diplomados e associaram as práticas terapêuticas populares à fraude e ao charlatanismo. Ao longo dos séculos, o saber científico foi ganhando cada vez mais terreno. Hoje, é muito mais comum uma pessoa confiar em um bom antibiótico do que recorrer a um feitiço para acabar com uma infecção.
Flavio Coelho Edler é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e autor da tese “A constituição da Medicina Tropical no Brasil oitocentista: da Climatologia à Parasitologia Médica” (Uerj, 1999).
Saiba Mais - Bibliografia
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história de condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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