Ronaldo Vainfas
Não resta dúvida de que a corrupção endêmica que marca o Estado brasileiro deita raízes em nosso passado colonial. Mas naquele tempo, o que hoje chamamos de peculato – apropriação de dinheiro público em proveito próprio – não chegava a ser uma irregularidade. Pelo contrário, era coisa institucionalizada e derivava do que o historiador e cientista político Raymundo Faoro (1925-2003) chamou de Estado patrimonial, no qual as esferas pública e privada se confundem.
Era comum a Coroa arrendar o direito de cobrar impostos a particulares, assim como o direito de explorar produtos monopolizados pelo Estado. O regime de capitanias hereditárias foi um modelo desse esquema, no qual os donatários eram oficiais do rei recompensados com privilégios particulares, incluindo terras e parte da receita fiscal devida ao monarca. O que chamamos hoje de bem público era, então, propriedade do rei.
Naquela época proibia-se, antes, a malversação em excesso. Se não chegava a configurar um crime de lesa-majestade, era delito passível de punição. O Livro V das Ordenações Filipinas (1603) estabelecia que “qualquer oficial nosso ou pessoa outra que alguma coisa por nós houver de receber, guardar ou arrendar nossas rendas, se alguma das ditas coisas furtar ou maliciosamente levar”, ficava condenado a perder o ofício e ressarcir o Tesouro. Se o roubo fosse muito grande, aí sim, poderia ser tratado como simples ladrão.
Uma prova de que o Tesouro era lesado em escala maior do que a prevista encontra-se no livro A arte de furtar, escrito em 1652. Irônico, o autor abre o livro dizendo que o furto era mesmo algo nobre, e, à moda barroca, caracteriza dezenas de fórmulas desta arte. Dos que furtam com unhas reais, agudas, militares, disfarçadas, postiças, maliciosas e descuidadas. Dos que furtam com mão de gato. Além disso, expõe os princípios gerais da dita ciência. Exemplos: como tomando pouco, se rouba mais; como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões; como se podem furtar a El Rei vinte mil cruzados e demandá-lo por outros tantos.
A obra foi, por muito tempo, atribuída ao Padre Antônio Vieira (1608-1697) e mais tarde ao jesuíta Manoel da Costa e a Antônio de Sousa Macedo, um dos principais diplomatas de D. João IV. Em sua primeira edição, trazia subtítulos curiosos: “Espelho de enganos”, “Teatro das verdades”, “Gazua geral dos reinos de Portugal”… Não foi publicada no século XVII, mas somente em 1744. Foi desses livros escritos antes do tempo.
Ronaldo Vainfas é professor titular de História da Universidade Federal Fluminense e autor de Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição (Companhia das Letras, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
A arte de furtar. Edição crítica, com introdução e notas de Roger Bismut. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1991.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1974.
Ordenações Filipinas, Livro V (introdução e organização de Sílvia Lara). São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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