sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Pronto-socorro colonial - A Igreja se rende aos índios



Os jesuítas tentaram, mas não resistiram às plantas medicinais utilizadas pelos índios da Província do Paraguai

Eliane Cristina Deckmann Fleck
O primeiro remédio desenvolvido no Brasil a partir da flora nacional só chegou ao mercado em 2005. É um anti-inflamatório derivado da erva-baleeira, planta nativa da Mata Atlântica que havia séculos era usada pelos índios com o mesmo objetivo. Se o potencial dessas plantas ainda é pouco explorado hoje, era totalmente ignorado pelos primeiros jesuítas que chegaram à América portuguesa. Ao assumirem o papel de médicos nos povoados que fundaram, esses religiosos buscaram tratar as doenças com os métodos e remédios da metrópole. Mas, aos poucos, perceberam que a farmacopeia indígena seria mais útil do que imaginavam.  

O poder de observação também fez com que os jesuítas adotassem outras práticas que hoje parecem muito óbvias, como o isolamento de doentes, o enterro adequado dos mortos e a limpeza das enfermarias e hospitais. Eles investiram ainda no treinamento de enfermeiros e fabricaram instrumentos cirúrgicos, mas não abandonaram as práticas mágico-rituais de cura.

Apesar de a Igreja Católica não considerar o alívio aos doentes como uma atividade de religiosos, os jesuítas tinham desde 1576 uma autorização do papa Gregório XIII para praticar a medicina em regiões onde faltassem médicos. Os noviços, por exemplo, eram obrigados a fazer estágios em hospitais durante um mês. Para tratar as doenças, a medicina praticada na Europa naquele período recorria a métodos como a purga e a sangria, além de unguentos mercuriais (compostos de mercúrio, sebo e banha, que eram usados para curar úlceras venéreas, especialmente a sífilis), pó de unicórnio (pó extraído, presumidamente, do chifre de unicórnio e que curava feridas), bezoar (pedra ou nódulo calcário que era usado como antídoto para venenos) e bebidas feitas à base de vinho e azeite.
Ao chegarem à Província Jesuítica do Paraguai – região que se estendia entre o Brasil e o Peru, até o Rio da Prata e o Oceano Atlântico –, os religiosos não tiveram acesso fácil a esses remédios tradicionais.  Mesmo assim, principalmente nas primeiras décadas do século XVII, recusaram-se a usar as ervas, folhas, resinas e bálsamos adotados pelos indígenas, condenando os métodos de cura empregados pelos xamãs, como a sucção e a escarificação (pequenas incisões).

Entre os recursos usados pelos jesuítas para driblar a falta de remédios ocidentais estavam as terapias mágico-rituais: a administração dos sacramentos, o licor de São Nicolau – um óleo associado às relíquias desse santo –,  a água benta e o azeite benzido com a invocação de nomes de santos. Esses “remédios” eram utilizados em situações como picadas de cobras, mal dos olhos, dores musculares e até contra doenças como coqueluche, lepra, varíola e sarampo, que atingiam os indígenas. Alguns padres chegaram a afirmar que haviam conseguido curas milagrosas por meio do batismo e da bênção. “Os indígenas dizem que, quando o padre lhes põe a mão na cabeça, sentem-se curados”, relatou o religioso Marcial de Lorenzana em carta de junho de 1610.

Os jesuítas não ficaram só na reza, e partiram para experiências com as plantas locais. Em 1626, o padre Juan de Salas preparou um xarope contra uma “enfermidade de catarro” que atingiu quase todo um povoado, curando alguns índios. Outro religioso observou que o agrião, planta rica em ácido oxálico, provocou melhora em indígenas que sofriam de disenteria. Nos anos 1630, já havia notícias de boticas – o equivalente às farmácias da época – nas quais podiam ser encontrados produtos como águas simples e espirituosas (águas florais e destiladas), infusões, xaropes, bálsamos e sais preparados no próprio povoado.

Em 1695, o padre Antônio Sepp tentou utilizar a técnica europeia da sangria para aliviar um surto de varíola hemorrágica na redução – povoado jesuíta – de Nossa Senhora da Fé, no atual estado do Mato Grosso do Sul. Encarregou músicos e ferreiros da fabricação de instrumentos para isso, mas admitiu que o uso de “facas, pregos e ossos pontiagudos” nas sangrias era pouco eficiente e que os métodos europeus eram impotentes nesse caso. Para Sepp, só seria possível curar os doentes com o uso de “remédios caseiros” e de outros “próprios da farmacopeia indígena”, aliados a uma dieta de suco de limão e água fresca com mel.   

Exemplos como esses mostram que foi a necessidade que fez diminuir a resistência dos jesuítas aos “remédios locais”. O que mais se lê em suas cartas é que “faltava tudo” na Província do Paraguai. Carne – “alimento substancioso que fortalece os enfermos” – era artigo raro. “Fora raízes de totora (espécie de junco comestível) e pescado, não existem outros alimentos. Os mosquitos são sem conta (...) Nem de dia, nem de noite deixam sossegar os homens (...) Certas vezes, passo um pouco de papa de milho por não haver outra coisa”, contou o padre Marcial de Lorenzana em 1610.

Às vezes, devido às pragas e secas, não havia o que comer, como relatou um religioso da redução de Santa Maria do Iguaçu (no oeste do atual estado do Paraná), o que deixava os habitantes dos povoados fracos e sujeitos a doenças. A fome e a saúde precária dos índios preocupavam os padres, porque atrapalhavam seus planos de convertê-los ao cristianismo. Os religiosos acabaram percebendo que a melhor maneira de conquistar a confiança dos índios era conseguir curá-los e arranjar algo para eles comerem. “Este meio tem sido o melhor para domesticar os indígenas, sobretudo os mais novos”, confirmou o padre Nicolas Mastrillo Durán em carta da década de 1620.

Assim como o uso das ervas tradicionais indígenas, o isolamento dos doentes só foi adotado após muita observação dos padres jesuítas. Eles perceberam que os jovens encarregados de atender os enfermos eram contagiados e morriam. Foi durante uma epidemia de sarampo e outra de diarreia que o religioso Jerónimo Porcel, segundo registro de 1638, providenciou o isolamento dos doentes em um hospital improvisado, em que eram assistidos por indígenas membros de congregações e irmandades, também responsáveis pela limpeza das salas e dos instrumentos cirúrgicos.

Em outra carta, de 1747, o padre José Cardiel conta que durante uma epidemia de varíola foram construídas duas cabanas bem longe da missão de Nossa Senhora do Pilar (instalada junto aos índios pampas) para que funcionassem como enfermarias de um hospital. Uma delas destinava-se aos que apresentavam alguns sintomas e a outra, aos que já estavam em estado adiantado da doença.

Um costume europeu que foi abandonado nos povoados missioneiros – por uma questão de higiene – era o de enterrar os mortos no interior das igrejas. Para esta finalidade, foram construídos cemitérios. Durante uma epidemia de sarampo, o padre Cardiel comentou que, para que fosse conservada a limpeza e evitado o mau cheiro no templo, somente os membros da alta hierarquia da Igreja poderiam ser enterrados no seu interior. Eles deviam ser colocados em caixões a uma profundidade mínima de 1,5 metro. Além disso, os pisos das igrejas passaram a ser ladrilhados, porque os padres observaram que o chão de pedra provocava muita umidade no inverno tropical e os índios acabavam adoecendo por causa da pouca roupa que usavam.

Apesar do êxito de algumas experiências e da observação cada vez maior da natureza, procedimentos mágico-rituais continuaram sendo postos em prática. Isto pode ser constatado nas preces e procissões – seguidas de autoflagelação e confissões – que alguns padres adotaram durante uma epidemia de varíola. Outro exemplo foi relatado pelo padre Cardiel: religiosos da região do Rio da Prata constataram que muitas indígenas grávidas que haviam contraído varíola morriam um pouco antes do parto, sem que seus bebês fossem batizados. Preocupado em garantir o batismo aos que estavam por nascer – e a consequente salvação de suas almas –, um dos missionários teria oferecido às mulheres “alguns goles de vinho com pimenta moída” – uma mistura que podia provocar o aborto – para apressar o parto e, assim, batizar os bebês antes de sua morte. Este procedimento, ao ser adotado em várias missões, teria, segundo Cardiel, provocado um acalorado debate entre doutores da Universidade de Córdoba, que o consideraram lícito por causa de seu “santo fim”.
Experiências feitas com plantas medicinais nativas, providências como o isolamento de doentes, o enterro adequado e a assepsia dos ambientes das enfermarias e hospitais, associadas à manutenção de práticas mágico-rituais tradicionais, parecem mostrar que os jesuítas não deixaram de lado seu maior objetivo: garantir a saúde das almas e dos corpos daqueles que buscavam converter.

Eliane Cristina Deckmann Fleck é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e autora da Tese "Sentir, Adoecer e Morrer: Sensibilidade e Devoção no Discurso Missionário Jesuítico (século XVII)" (PUC-RS, 1999). 


Saiba Mais - Bibliografia

ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina Mestiça.  São Paulo: Annablume, 2010.

CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e Triagas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.

EDLER, Flávio Coelho. Boticas e Pharmacias - Uma História Ilustrada da Farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.

RIBEIRO, Márcia Moisés. A Ciência dos Trópicos. A Arte Médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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