A expressão “plano” esteve, assepticamente,
livre de qualquer viés ideológico, até que, após a Revolução Comunista
Soviética, foi utilizada como horizonte e guia político-econômico do Estado
nacional. Ali teve início a formulação do I Plano Quinquenal Soviético e foi
instalada uma equipe encarregada de planificar a trajetória futura da União
Soviética. A partir desse momento, as expressões “plano” e “planificação”
passaram a ser identificadas como o modo pelo qual o Estado socialista poderia
dispensar as regras do jogo capitalista e atuar de forma organizada para a
evolução da nova sociedade.
Em sentido amplo, propor fazer um plano nacional e instalar um processo de
planificação marcavam uma posição de esquerda, e o debate ideológico passou a
repudiar essas expressões como sínteses de uma prática hostil ao capitalismo,
que buscavam a transformação e o desenvolvimento econômico de uma nova ordem
social e política.
As imperfeições microeconômicas da economia de mercado já haviam sido mapeadas
pela análise neoclássica. As visões teóricas de um monopólio bilateral entre as
relações do capital patronal e o trabalho assalariado já insinuavam ajustes
institucionais em direção ao que se denominou economia social de mercado. O
receituário político-econômico da economia política clássica liberal inglesa e
as derivações da teoria do equilíbrio geral neoclássico haviam feito evoluir da
ideia de Estado gendarme, guardião de contratos e do livre jogo de
mercado e decantado como paradigma liberal à figura do Estado mínimo, com os
mais reduzidos instrumentos de atuação discriminatória. Houve um presidente
chileno, Barros Lugo, que afirmou ser “muito fácil” seu cargo, pois os
problemas ou eram auto-solucionáveis, ou não tinham solução e ele não tinha com
o que se preocupar - e passou à história como nome de saboroso sanduíche local.
Como é sabido, as industrializações nacionais que se sucederam à Revolução
Industrial no século XIX haviam recusado o corpo de princípios da economia
liberal e praticado reformas institucionais, operado instrumentos
discriminatórios, realizado subsídios e investimentos e ampliado,
pragmaticamente, o âmbito e a profundidade das políticas públicas. Cometeram
heresias e praticaram pecados mortais para o liberalismo de mercado.
Contestaram, teoricamente, a capacidade da livre-economia de mercado de
conduzi-los ao desenvolvimento industrial e de fortalecimento geopolítico.
Assim fez a teoria da nacional economia sustentando o projeto industrializante
nacional alemão; assim, o historicismo francês justificou a França de Napoleão
e seu esforço de amplificação colonial. O Japão fez uma “reciclagem”,
preservando o xintoísmo e atribuindo ao imperador – aceito como divino – o
poder absoluto, implantador da Revolução Meiji.
A Rússia czarista aboliu a servidão e fomentou,
pelo Estado, a instalação de núcleos industriais; o poder absoluto foi acionado
em nome da preservação nacional russa. Entretanto, todos esses países, uma vez
industrializados, abandonaram, ideologicamente, seus discursos pró-
-industrialização como projeto nacional e passaram a defender, ideologicamente,
os princípios da economia liberal. Chutaram, pragmaticamente, o andaime teórico
anterior e, como potências, expandiram cosmicamente suas ambições geopolíticas.
A I Guerra Mundial desmoralizou o sonho da belle époque e
deslocou o epicentro industrial da Inglaterra para os EUA, que se converteram
em campeões do livre-mercado. A evolução da II Revolução Industrial, iniciada
antes da I Guerra Mundial, foi pontilhada de desajustes monetários-fiscais que,
como tremores sísmicos, antecederam o terremoto macroeconômico da Grande Crise
de 1929 e mergulharam as potências nas preliminares de um segundo conflito
mundial.
Do ponto de vista latinoamericano, o sonho de uma economia industrializada
tinha ficado circunscrito a escassos pensadores. Entretanto, a filosofia alemã
hegeliana e a economia nacional de List haviam se instalado no espaço
universitário. No Brasil, houve a Escola de Recife; no Chile, com dois ou três
anos de diferença, foi impresso o livro de List. Após a I Guerra Mundial, o
romeno Manoilesco formulou a teoria da “indústria nascente” e de “sistema
industrial”; seu livro foi impresso no Brasil em 1931 (dois anos após sua
edição em romeno), por Roberto Simonsen, campeão do projeto de industrialização
e liderança empresarial brasileira.
A filosofia positivista sublinhava a ideia da sociologia como o ápice da
engenharia racional humana; teve enorme passagem pela América Latina, no final
do século XIX e décadas iniciais do século XX. O sucesso do desenvolvimento
decimonônico da economia norteamericana já havia gerado o discurso bolivariano,
convocando a Iberoamérica a reproduzir a experiência das treze repúblicas.
Entretanto, foi a II Guerra Mundial que abriu caminho, na América Latina, para
a ideia de planificação nacional como modo de operar a política econômica,
segundo uma trajetória de crescimento e com vistas à transformação estrutural
da economia nacional do país latinoamericano. Com temor da patrulha ideológica,
a Cepal virou a referência crítica, a visão ricardiana do livre comércio
liberal e da organização de um plano de investimentos público-privado,
substituindo a expressão “planificação” pelo neologismo político-econômico
“programação”.
O Brasil – que, com Getúlio Vargas, havia sido keynesiano antes de Keynes, que
havia desenhado o sonho da industrialização desde matrizes positivistas até a
literatura infantil de Monteiro Lobato foi quem apoiou, diplomaticamente,
Prebish e a Cepal. A frustração com a não-inclusão do país no Plano Marshall
leva o Brasil, nos anos 1950, a praticar, pragmaticamente, infrações frontais
ao neoliberalismo, ao adotar, explicitamente, o Plano de Metas e consagrar a
industrialização e a urbanização como núcleos estratégicos de um projeto
nacional desenvolvimentista.
Da defesa varguista da economia do café no “terremoto” de 1929, até o projeto
de Brasil-potência, o país fez crescer o PIB em torno de 7% ao ano.
Com a crise da dívida externa e a instalação do Estado de Direito da
Constituição de 1988, houve um mergulho na hiperinflação e na desaceleração do
crescimento. A partir de 1980, o Brasil mergulha na
mediocridade macroeconômica. Há um repúdio ao
sonho da industrialização nacional e incorporamos o neologismo “globalização”,
como versão atualizada do neoliberalismo, agora sob hegemonia ideológica do
epicentro dos EUA. O Brasil passou a não discutir projeto nacional e afirmou
que, se integrando à economia mundial, chegaria, à la Pangloss, ao melhor dos
mundos possíveis.
A vitória norteamericana na Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlin, marca a
hegemonia e a superimposição político- -econômica do Consenso de Washington. No
Brasil, abandonamos a discussão de desenvolvimento alternativo apoiado no
mercado interno e nos propusemos a ser “celeiro do mundo” (apesar da fome dos
brasileiros) e fornecedores de matérias primas para as potências
industrializadas e para a China em industrialização. No entanto, a crise
mundial iniciada em 2008 promete vicissitudes que recolocarão o debate sobre o
futuro brasileiro. Necessariamente, será a ideia de planejar a reativação de um
projeto nacional brasileiro. O Estado terá de ser reformado e reequipado com
instrumentos de ação discriminatória, muitos dos quais abriu mão em nome da
“integração competitiva” à globalização e de uma privatização desnacionalizante
do sistema produtivo.
Carlos Lessa é
professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). É membro do Conselho de Orientação do Ipea.
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