sábado, 12 de maio de 2012

O desencadear da polêmica sobre os jesuítas e guaranis pelo Marquês de Pombal



Beatriz Helena Domingues
Este artigo é resultado parcial de pesquisa financiada por uma bolsa de International Visiting Scholar pelo Woodstock Theological Center, na Georgetown University, Washington DC, USA, em 2004.
Universidade Federal de Juiz de Fora. 

Em 1758, um ano antes da ordem de expulsão dos jesuítas do Brasil e de Portugal, foi publicado em Lisboa um livreto, naquela ocasião anônimo, intitulado Relação abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas das provincias de Portugal, e Hespanha, estabelecerão nos dominios ultramarinos das duas monarchias, cuja autoria foi depois atribuída ao Marquês de Pombal. Neste panfleto parece explícita a intenção antijesuítica do autor de justificar sua campanha de perseguição aos jesuítas, no Brasil mas também em Portugal, ante seus compatriotas portugueses, europeus e mesmo brasileiros. Entre as principais acusações contidas neste texto destacavam-se: a resistência dos jesuítas à aplicação do Tratado de Madri, celebrado entre Portugal e a Espanha para a delimitação de fronteiras na América do Sul; a oposição, no Brasil setentrional, às leis que regulavam a administração das aldeias de índios; o exercício de atividades comerciais proibidas a religiosos; a decadência dos jesuítas portugueses; a difamação do rei no estrangeiro; e a participação, pelo menos moral, dos referidos padres no atentado contra D. José e na revolta popular do Porto ocorrida em 175712. A ampla difusão do texto deste livreto nos interessa aqui, não só como uma interpretação (portuguesa) das missões guaranis, mas também por suas possíveis ressonâncias na obra da Basílio da Gama e, em menor escala, na novela de Voltaire. Ou seja, na relação entre pequenos e grandes textos no "âmbito de discurso" da Ilustração.
O panfleto bilíngüe (francês e português) está dividido em duas partes: a primeira, redigida pelo marquês, e a segunda, um apêndice com documentos que "conferiam veracidade" às razões por ele apontadas em sua argumentação a favor da expulsão dos padres e dos próprios índios das missões. O livreto contém uma avaliação altamente negativa da ação jesuítica, posteriormente rejeitada por interpretações otimistas da experiência, tais como a de Cardiel e a de uma suposta "utopia guarani nos trópicos", por Josep Perramás, em 1787. Pombal apresenta uma explicação, para um público europeu, eu diria mais especificamente português, do que vinha acontecendo nas missões jesuíticas nas regiões fronteiriças entre Portugal e Espanha na América do Sul. O argumento central é que, na medida em que os padres jesuítas desobedeciam às fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madri, não se submetendo nem à coroa portuguesa nem à espanhola, estava mais do que justificada uma ação enérgica contra um iminente levantamento dos súditos indígenas sob os auspícios da Cia, da Jesus. À medida que descreve os acontecimentos ­ a chegada dos emissários reais às aldeias, a reação ou fuga de índios desabastecendo as missões ­ Pombal fornece uma seqüência bem costurada das ações espúrias dos inacianos para controlar os índios e insuflá-los contra a coroa, conforme documentadas pelo corregedor Gomez Freire de Andrade: 1) Proibição de entrada de outros emissários eclesiásticos ou civis nas missões paraguaias, principalmente os portugueses, mas também os espanhóis, reconhecendo que o ódio aos primeiros era ainda maior. Os padres proibiam os índios até mesmo de estabelecerem comunicação com os colonizadores espanhóis e portugueses já há longo tempo instalados; 2) Proibição do idioma espanhol. Como os apêndices anexados ao final do texto confirmavam, toda a "literatura subversiva" foi escrita em tupi-guarani. É sabido que, na Ibéria, uma importante divergência entre os representantes do Despotismo Esclarecido e os jesuítas estava no uso das línguas nacionais ou vulgares, defendido pelos primeiros, ou do latim, idioma que continuou a ser usado pelos autores jesuítas em seus escritos. Nas colônias, entretanto, os inacianos demonstraram uma impressionante capacidade de aprendizagem das línguas locais, fosse na América ou na Ásia, utilizando-se destas no trabalho de conversão; 3) Os jesuítas ensinam aos índios os princípios da Igreja católica condicionando-os à obediência a eles mesmos. Foi dessa forma que "conseguirão preservar por tantos annos aquelles infelices Racionaes na mais extraordinaria ignorancia, e no mais duro, e inssofrivel (sic) cativeiro, que se vio até agora":
Soberanos despóticos de seus Córpos e Almas: Ignorando que tinham Rey a obedecer, criam que no mundo não havia vassalagem, mas que tudo nelle era escravidão. E ignorando em fim, que havia Leys, que não fossem as da vontade de seus Santos Padres (assim os denominarão).13
Estabeleciam, portanto, "entre os Índios a eles submetidos de corpo e alma, axiomas impróprios à sociedade civil e à caridade Cathólica". Os referidos padres faziam os índios acreditarem que todos os homens seculares eram homens sem lei nem religião que "adoravam o ouro como corpo religioso e traziam o diabo no próprio corpo". Isso seria parte da estratégia de fazer crescer entre os índios um ódio implacável contra os brancos seculares. Segundo o relato de Gomez Freire de Andrade, no qual se baseia o texto, os índios justificavam seu desconhecimento das leis reais dizendo que "el Rey estava muito longe, e que elles só conheciam seu Benedito Padre"14. Ainda segundo o mesmo relato, alguns nativos confessavam ter cortado a cabeça de alguns portugueses capturados porque "seus Beatos Padres lhes garantirão que os Portuguezes fariam o mesmo" se os capturassem antes15. Segundo Pombal, "a obediência cega implantada no seio das famílias indígenas coloca-as em um estado de escravidão pior do que o dos negros em Minas Gerais", garantindo o poder de persuasão.
Outro aspecto criticado era o ensino do manejo das armas aos nativos, que possibilitaria a reação organizada contra as coroas ibéricas. O que os jesuítas queriam, por trás disso, era "manter o controle sobre os territórios e o trabalho dos Índios" e, como estratégia, ofereceram à coroa uma trégua, da qual se serviram para se mudar para outros povoados e melhor se armarem. Um recurso utilizado pelos padres era despovoar as aldeias tidas como perdidas para os brancos, de tal forma que não deixassem suprimentos que permitissem aos vencedores sobreviver deles. Ao condenar tal recurso, Gomez de Andrade e Pombal apelam para os valores da "Religião e da Humanidade": consideram inadmissível que se destruam igrejas, imagens, fontes de abastecimento, etc.
Uma vez constatada essa situação nas missões, era mister que as cortes espanhola e portuguesa se movimentassem para reprimir as sublevações, e os exércitos espanhol e português se uniram para "protegerem-se dos ataques dos índios". Também na Amazônia, somos informados por Pombal, os jesuítas excediam as leis eclesiásticas e régias. Esses atos expressavam a deterioração das relações entre a coroa e os inacianos, que já vinha de algumas décadas, culminando nas Ordens de 1756 que acusavam os jesuítas de desrespeitarem ao tratado de Madri, insuflar os índios por todo o interior contra os serviços do Estado os Ministros e Oficiais de Sua Majestade Fidelíssima, ameaçando-os com o poder da Cia. de Jesus no reino. Os inacianos eram também responsabilizados pelo despovoamento das aldeias do caminho do Rio Negro para que as tropas reais, que vinham fazer as demarcações dos limites dos domínios das duas monarquias, perecessem por falta de víveres e remédios.
É interessante chamar a atenção para o uso feito por Pombal das fontes primárias. Além de embasar-se no relato de Freire de Andrade, ele fundamenta a veracidade de suas afirmações em um diário cuja autoria não revela. Isso é especialmente importante por ter sido esse o documento apresentado uma das principais peças de acusação contra a Cia. de Jesus: é nesse diário anônimo que se encontram as mais detalhadas descrições de aldeias despovoadas e destruídas antes de serem capturadas, a justificar a necessidade de recrutar índios em outras aldeias para acompanharem as tropas reais. O recurso às armas não teria passado de um segundo estágio das maquinações artificiosas dos jesuítas para ajudá-los a se sustentar, juntamente com seus colegas religiosos espanhóis, naquelas fronteiras do norte. O padre jesuíta Aleixo Antonio teria chegado a se infiltrar entre os oficiais portugueses com o pretexto de lhes aplicar os Exercícios Espirituais.
Os quatro documentos incluídos nos apêndices têm algumas características em comum, segundo o compilador: foram todos "escritos na língua dos índios e traduzidos fielmente para o português"; e são todos eles documentos apresentados como provas das maquinações jesuíticas contra os interesses da coroa portuguesa. Uma questão que não pode passar despercebida é quem os teria traduzido, uma vez que o próprio autor reforça, várias vezes, que somente os inacianos conheciam as línguas indígenas. O primeiro apêndice consta de uma cópia das "Instruções que os Padres, que governão os Indios, lhes derão quando marcharão para o Exercito". É o único dos documentos (provas) que não tem data, procedência (nenhuma informação de como ou onde foi achado) ou autoria. Ainda assim, é o que abre a parte contendo as provas documentais nas quais se baseava a ordem de expulsão: seu conteúdo parece o mais forte para embasar a argumentação de Pombal sobre o perigo iminente representado pelas missões para os interesses do império português na América do Sul. O texto apresenta os jesuítas insuflando os índios, em nome de Deus, a mover guerra contra espanhóis e portugueses, que causam ainda mais prejuízos aos índios. Ou seja, embora os padres incitem os nativos também contra os espanhóis, "o objetivo principal deles são os portugueses não jesuítas". O(s) autor(es) "jesuíta(s)" (?) deste documento anexado se opõe(m) expressamente ao envio de Gomez Freire de Andrada às missões, pois "que obra tão mal, enganando a seu Rei e a nosso bom Rei". Uma vez que engana o Rei, Gomez Freire enganaria a Deus. E, como foi Deus quem deu as terras aos índios, não será um ímpio traidor de Sua Majestade quem irá ordenar-lhes retirarem-se delas.
Interessante notar a inversão do uso da figura real por Pombal e pelo Autor das referidas "instruções". Enquanto os adeptos do Despotismo Esclarecido identificavam Deus com o rei e o "demônio com os jesuítas", os inacianos (e seus "aliados" indígenas) classificam os portugueses como emissários do demônio e o rei, ao qual servem, de Deus. É "por sua intrínseca relação com Deus que não é cabível acreditar que o Rei pudesse se opor ao santo empreendimento missionário", afirma o documento atribuído aos índios, mas cujos indícios conduzem a um (ou mais) jesuíta disfarçado de cacique, conforme sugere o texto de Pombal16. Ou seja, os supostos autores (jesuítas) do documento argumentam a favor da sua relação com o rei e com Deus: além de terem vindo dedicando suas vidas às colônias do rei português, sempre que Sua Majestade necessitou, foram os "Apóstolos de Cristo" que se prontificaram a ir para a área do Paraguai. Por que então, agora, vêm esses "agentes reais nos dizer que devemos entregar nossas terras, nossas lavouras e nossas estâncias"? "Como poderiam então os nativos acreditar que sejam de fato ordens do Rei, quando é sabido que o Rey [, "que o Rei sempre nutriu amor por nós"] age de acordo com os desígnios de Deus e não do demônio?". Portanto,
(...) com grandíssima alegria nos entregamos à morte antes que entregar as nossas terras. Por que não da esse nosso Rey aos Portuguezes Buenos Ayres, Santa Fé, Corrientes y Paraguai? Só ha de recahir esta ordem sobre os pobres Indios, a quem manda que deixem as suas casas, suas Igrejas, e enfim quanto tem, e Deos lhe ha dado?17
O documento termina com o líder indígena propondo um encontro com, no máximo, cinco castelhanos, já que não acredita nos portugueses, por mais que lhe prometam que nada lhes acontecerá. Ao mesmo tempo, adianta que o intérprete da negociação será um "padre" (jesuíta), pois são os únicos que sabem ler a língua dos índios. Pombal parece sugerir que o 'autor' desta peça, ao mesmo tempo em que supostamente elogia o rei e as suas boas relações com os Apóstolos de Cristo e com os vassalos indígenas, está não somente justificando a desobediência às ordens reais (sob o argumento de que não acreditava provirem elas de fato dele), como incitando os índios a se organizarem militarmente e lutarem contra a implementação delas.
O título do documento contido no terceiro apêndice diz mais do que alguns parágrafos de comentários. Trata-se de uma "Carta sedisiosa e fraudulenta, que se finge ser escrita pelos Cassiques das Aldeias Rebeldes ao Governador de Buenos Ayres":
Sendo inverossivel que se mandasse ao dito Governador, e que o mais natural he que se compos debaixo daquelle pretexto para se espalhar entre os Indios, ao fin de lhe fazer criveis os enganos, que nella se contém, escrita na lingua guarani, e dessa traduzida fielmente para a lingua Portugueza.18
O que se exorta no documento atribuído aos caciques é a união dos povos indígenas em reação à injusta ordem de expulsão de suas aldeias. Fica claro que o(s) autor(es) tem(têm) noção da disputa territorial entre Portugal e Espanha, podendo ser essa a motivação para endereçar a carta ao Governador de Buenos Ayres. Neste sentido, funciona como uma espécie de ameaça aos portugueses. A sua inclusão no apêndice parece ter a intenção de mostrar não somente a falsidade da autoria como, principalmente, de realçar o que então ocorria e se programava: uma rebeldia organizada contra a coroa portuguesa, sustentada pelos jesuítas.
Repete-se neste documento a assertiva contida no primeiro: os índios (porque aqui seriam eles os supostos autores) não acreditam que a ordem de desocupação de suas aldeias procedesse de fato do rei. E por motivos claramente aprendidos dos jesuítas: por ser o rei um enviado de Deus e não do demônio e por ter estado Sua Majestade sempre ao lado dos índios (inclusive quando da recente lei de 1742 que lhes garantia a liberdade). Ao mesmo tempo, também como no primeiro manuscrito, é a Deus que os caciques atribuem a doação das terras que habitam aos seus antepassados. E como foram eles, os índios, quem as cultivaram, é a eles que elas pertencem. Garantem os "caciques" que não somente enviaram correspondências ("Papéis") ao rei, tentando esclarecer o engano, como dele receberão resposta ("Papéis"), que não coincidiam com as ordens que agora lhes chegam. Segundo eles, o rei notará a contradição entre os "Papéis" (correspondência entre eles e o rei) e a "Carta" (de expulsão) e ficará do lado deles. Além de enviarem ao rei, garantiam ter remetido a correspondência ao próprio Papa, para que pudesse tomar conhecimento do que de fato se passava. Com isso tentavam transmitir confiança aos demais caciques e povos para agirem de forma coordenada.
O último apêndice consta de uma "Convenção celebrada entre Gomez Freire de Andrada, e os Cassiques para a suspensão das armas" datada de 1754, sem qualquer menção subseqüente sobre sua implementação ou não. O documento insinua que os guaranis merecem punição por seus atos, embora não sejam completamente responsáveis por eles: Até porque Pombal não parece ver nesses "selvagens" e "bárbaros" capacidade de reação organizada contra suas reformas ou ao Tratado de Madri sem a decisiva influência dos inacianos. Como outras peças antijesuíticas apócrifas difundidas no período, o documento referia-se à riqueza, ao poder e maquiavelismo dos padres. Um dos mais conhecidos, intitulado Monita Secreta, expunha as "regras secretas da Companhia de Jesus" que seguiam a máxima "os fins justificam os meios": autorizavam-se os comportamentos mais desmedidos tendo em vista o aumento do poder da ordem19. Uma exemplificação deste poder era o tema de outro libreto anônimo intitulado Historia de Nicolás I, rey de Paraguay y emperador de los mamelucos20. Ambos já circulavam antes do livreto de Pombal e da expulsão dos jesuítas do Brasil, e continuaram a fazê-lo nos anos seguintes. Na mesma ocasião, a estória de Nicolás I foi refutada pelo padre jesuíta Josef Cardiel, que morou entre os guaranis e testemunhou as guerras guaraníticas entre 1754 e 1759. Ele escreveu, ainda em 1758, Declaracion de la verdad contra un Livélio infamatorio contra os PP. Jesuitas Missioneros del Paraguay, y Marañon, explicitamente respondendo às calúnias contidas na Relação Abreviada da República que os religiosos jesuítas estabelecerão no Paraguai, de Pombal, e no apócrifo Historia de Nicolás I, rey de Paraguay y emperador de los mamelucos. Seu texto foi considerado por Sérgio Buarque de Holanda a melhor fonte para conhecer o que de fato se passou no Paraguai por ocasião da expulsão dos jesuítas e da resistência dos guaranis às ordens das coroas portuguesa e espanhola21.

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