Historiadora da Uerj estuda cotidiano dos presos pelo Tribunal do Santo Ofício português do século 16 ao 18. A partir de documentos da época, ela descreve a tensão nos cárceres em más condições, onde os condenados eram espionados.
Saulo Pereira Guimarães
Saulo Pereira Guimarães
Julgamento de Froilán Díaz, confessor de Carlos II, perseguido por realizar exorcismo para libertar o rei espanhol de suposto feitiço. Um dos raros casos de absolvição nos Tribunais do Santo Ofício ibérico. (imagem: Flickr/ El Bibliomata – CC BY 2.0)
Os descaminhos da fé levaram às trevas da inquisição. A instituição criada pela Igreja Católica condenou milhares de pessoas durante séculos em nome da intolerância religiosa. Desse período, restaram vestígios importantes para aqueles que desejam compreender melhor o tema.
Foi com base em alguns desses resquícios, mais precisamente em cartas, processos e relatórios, que a historiadora Daniela Buono Calainho, da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), estudou a vida de prisioneiros nos cárceres do Tribunal do Santo Ofício português.
A partir de uma análise detalhada do material, consultando principalmente o Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa – que recentemente disponibilizou parte de seu acervo em formato digital – Calainho vem analisando o cotidiano dos presos – marcado por tortura, espionagem e más condições.
“Inquisidores se reportavam ao inquisidor-geral reclamando de problemas como vazamento de água e pedindo verbas para manutenção das prisões”Alguns relatos encontrados dão conta, por exemplo, do mau estado das cadeias. “Inquisidores se reportavam ao inquisidor-geral reclamando de problemas como vazamento de água e pedindo verbas para manutenção das prisões”, afirma a pesquisadora.
Nesses ambientes deteriorados, a espionagem era constante. Os processos da época incluem descrições detalhadas do dia a dia dos presos feitas pelos chamados ‘familiares’, funcionários cujas responsabilidades incluíam buscar incorreções na rotina da prisão.
“Existiam orifícios nas celas pelos quais eles vigiavam a vida dos encarcerados”, conta Calainho. Além disso, acrescenta, havia vigilância por parte dos próprios colegas presos. Segundo a historiadora, era comum que eles revelassem condutas inadequadas de seus companheiros, os quais eram por vezes torturados em sessões de inquirição.
De rezas à morte na fogueira
A tortura não era totalmente desmedida, lembra Calainho, sendo sempre acompanhada por médicos. “Eles eram responsáveis por resguardar a vida do torturado, medindo sua resistência”, afirma.
Os médicos também cuidavam da liberação dos condenados a trabalhos forçados que, por razões físicas, ficavam incapacitados de seguir cumprindo a pena. Àqueles que não tinham a mesma sorte, restavam os veredictos implacáveis.
“As condenações iam de penas espirituais, como orações, até a morte na fogueira”Absolvições eram raras. “As condenações iam de penas espirituais, como orações, até a morte na fogueira”, afirma a historiadora, destacando que o segundo castigo era reservado apenas aos hereges mais graves.
A pena capital – a morte na fogueira – era executada ao final das procissões nas quais os condenados desfilavam. Em Lisboa, os Autos da Fé, como eram chamadas essas cerimônias, aconteciam na atual Praça do Comércio. No entanto, penas espirituais, cárcere perpétuo e trabalhos forçados eram sentenças mais comuns.
Auto de Fé em Lisboa. Durante a inquisição, as penas capitais eram executadas nesses grandes eventos em praça pública. (obra reproduzida do livro 'Historia Completa das Inquisições de Italia, Hespanha, e Portugal', de Joseph Lavallée, 1821) Geralmente associada à Idade Média, a Inquisição foi criada em Roma em 1231 e depois controlada pelos frades dominicanos. Sua versão ibérica – objeto de pesquisa de Calainho – data do século 15. “Os tribunais ibéricos focavam na perseguição aos cristãos-novos, judeus convertidos ao cristianismo suspeitos de manterem suas antigas crenças”, descreve.
A historiadora pesquisa o tema desde o início da década de 1990, quando estava no mestrado, defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na época, debruçou-se sobre a figura do ‘familiar’ na inquisição portuguesa. Já no doutorado, optou por outro enfoque: a perseguição à religiosidade africana pelos Tribunais do Santo Ofício lusitanos.
Os trabalhos resultaram na publicação de dois livros: Os agentes da fé: Familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial (Edusp, 2006) e Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime (Garamond, 2008). Os próximos planos incluem a publicação de outro livro com o material analisado sobre os cárceres inquisitoriais.
Revista Ciência Hoje
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