Maria da boa morte
Imagens da morte e ascensão da mãe de Jesus foram um importante instrumento de catequese na Europa e no Brasil
Sabrina Mara Sant’Anna
A dura realidade da morte inquieta a humanidade desde os tempos mais remotos. Ao tomar consciência de sua individualidade e da finitude de sua existência, o homem passou a praticar ritos em honra dos defuntos e a acreditar em uma vida além-túmulo. Esta é uma crença comum a várias tradições religiosas.
De acordo com o cristianismo, a morte não significa aniquilação, pois a alma é imortal. A doutrina católica considera que após o falecimento o corpo “volta ao pó” (decompõe-se) e a alma comparece diante do juízo de Deus para prestar contas e receber sentença irrevogável: salvação ou danação eterna. Os justos vivem para sempre no Paraíso celeste; os salvos que necessitam de purificação passam pelo Purgatório antes de atingirem o Paraíso e os pecadores não arrependidos padecem infinitamente no Inferno.
Desde o período medieval, os sermões, a literatura e as artes visuais advertem que, para alcançar a salvação, os fiéis devem resistir às tentações deste mundo e perseverar na fé até o último instante da vida. E para ajudar na resignação diante da morte, elegeu-se uma figura de forte simbologia: Maria, a mãe de Jesus.
Sua morte é um mistério não esclarecido pelas Sagradas Escrituras. A última referência bíblica à mãe de Cristo está no Novo Testamento: em Atos 1, 14. Este versículo conta que, depois da ascensão de Jesus, sua mãe persevera na oração juntamente com os apóstolos e com outras mulheres. Depois disso, não se sabe seu destino. Essa carência de informações bíblicas sobre o fim da existência terrena de Maria propiciou o surgimento de lendas e narrativas apócrifas – sem reconhecimento eclesiástico –, escritas em diversas línguas a partir da segunda metade do século V.
Aprocrifum de assumptione Virgini (Texto apócrifo da Assunção da Virgem), do século VI, é a versão latina de um texto grego atribuído a São João Evangelista que sustenta que Maria não morreu de doença ou velhice: consumiu-se de amor e ardente desejo de reencontrar seu filho divino. Aos 60 anos, já viúva, deixou este mundo com serenidade espiritual e sem sofrimentos físicos. No exato momento do derradeiro suspiro, sua alma foi recebida pelo próprio Cristo. Maria foi velada e acompanhada até a sepultura pelos discípulos. Três dias depois, honrada com a graça da ressurreição, seu corpo foi levado ao céu por uma corte de anjos.
Narrativas como essa tornaram popular no Ocidente a crença na “Dormição” (falecimento) e na “Assunção” (subida ao Paraíso) corporal da mãe de Jesus. A partir do século XIII, esses dois temas conquistaram cada vez mais devotos e passaram a ser abundantemente representados em fachadas e espaços internos de templos católicos europeus. Contribuíram para isso a circulação da obra literária Legenda Áurea – coletânea de biografias de santos escrita pelo dominicano Jacopo de Varazze entre 1253 e 1270 – e a disseminação incontrolável das epidemias de peste negra pela Europa. Diante da tragédia da morte em larga escala, que apavorava as populações, as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte, protetora dos agonizantes, e de Nossa Senhora da Assunção ensinavam os fiéis a aceitar com resignação a vontade divina e a crer que os justos teriam uma “boa morte”, ou seja, seriam salvos como a mãe de Jesus.
Para se referirem ao falecimento de Maria, os bizantinos utilizavam a palavra grega Koimesis, que significa sono da morte. A Igreja latina, por sua vez, adotou dois termos distintos: Dormitio (Dormição) e Transitus (Trânsito). O primeiro era usado para designar o momento da morte de Maria, considerado um simples sono, pois seu corpo foi poupado da corrupção. O segundo tratava do conjunto morte e assunção.
Na arte oriental, o tema da Koimesis era representado por um só padrão iconográfico: Maria aparece sempre morta, deitada, tendo ao seu lado os apóstolos e uma multidão de adoradores. Em pé atrás do cadáver aparece o Cristo. Esse esquema bizantino é caracterizado pela rígida composição em forma de cruz, cuja linha horizontal é definida pelo corpo de Maria e a vertical por Jesus. É o que se vê nos belos mosaicos da Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Neles, Cristo é acompanhado por anjos e segura a alma de sua mãe – um bebê embalado em manta, símbolo de pureza, inocência e vida. Três discípulos se destacam na cena: Pedro, que balança um incensário à cabeceira da cama mortuária; Paulo, que beija os pés da santa, e João, que respeitosamente recosta sua cabeça sobre o peito da mãe de Jesus.
Essa estética bizantina influenciou a arte sacra do Brasil Colônia, que, no entanto, incorporou outros elementos para a representação da morte de Maria. O altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, em Ouro Preto (MG), mostra Maria vestida de branco e deitada em um nicho que lhe serve de lugar de repouso. Ao fundo, na talha em relevo, dez discípulos assistem ao fim de sua vida terrena – um deles portando um livro de orações e outro segurando a caldeirinha de água benta. Logo acima encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Assunção. O coroamento deste retábulo nos revela um detalhe importante: a alma da mãe de Jesus (busto feminino parcialmente desnudo) sobe ao céu em uma pequena nuvem. A Trindade Divina a espera na eternidade segurando uma coroa, símbolo cristão que indica transcendência e salvação.
O altar combina referências iconográficas do Oriente e do Ocidente cristão: Maria está morta (a alma fora do corpo), como no tradicional modelo bizantino, mas o Cristo não está posicionado em pé atrás do cadáver. Uma peculiaridade daquele altar de Ouro Preto é apresentar três cenas em um mesmo espaço: a “Dormição”, a “Assunção da alma” e a “Assunção corporal”. Outros retábulos mineiros do mesmo período congregam apenas duas etapas do chamado “Trânsito da Virgem”: a parte inferior é destinada à representação do corpo da santa que fica exposto em um esquife, enquanto a superior abriga imagem de Nossa Senhora da Assunção. Este formato, que expõe a morte e a elevação corporal de Maria ao céu, alcançou inclusive os pequenos oratórios, permitindo uma eficiente doutrinação dos fiéis e evangelização dos incrédulos, na medida em que oferecia uma espécie de resumo teológico da promessa do cristianismo: os justos terão vida eterna com Cristo.
A coexistência dos elementos orientais e ocidentais não é uma particularidade mineira ou brasileira: já vinha ocorrendo na Europa desde a Idade Média. A produção artística ocidental divulgou o tradicional modelo da Koimesis bizantina, mas aos poucos ele sofreu adaptações e modificações, ganhando novas formas e movimentos. No Ocidente surgiriam outras versões visuais para a Dormição. Imagens espalhadas por vários países retratam Maria agonizante (antes de a alma deixar o corpo) ou jacente (a alma fora do corpo), deitada em leito mortuário (representação mais comum), morrendo ajoelhada em oração – como no retábulo da Igreja de Nossa Senhora, na cidade polonesa de Cracóvia, feito por Veit Stoss entre 1477 e 1489 – ou falecendo sentada em trono majestático, como no retábulo de autoria do alemão Hans Holbein, o Velho, executado entre 1501 e 1502 para a Igreja dos Dominicanos em Frankfurt am Main, na Alemanha.
No Brasil, a crença na Dormição e na Assunção de Maria chegou junto com os colonizadores portugueses. As primeiras representações surgiram na costa litorânea, avançando progressivamente, junto com a fundação de povoados e vilas, para o interior da colônia. Por meio de sermões e imagens, a devoção à padroeira dos agonizantes foi divulgada primeiramente em Salvador, espalhando-se depois para outras regiões – em especial para Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Goiás.
Em Minas, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte começou no primeiro quartel do século XVIII. A primeira irmandade dedicada à santa estabeleceu-se em 1721 na freguesia de Antônio Dias, em Vila Rica (Ouro Preto); a segunda, em 1730, na freguesia de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira (Cachoeira do Campo), e a terceira, por volta de 1734 na freguesia de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei.
Com o objetivo de ensinar Teologia Moral e formar padres capazes de ajudar a população a “bem morrer”, o bispo D. Frei Manoel da Cruz inaugurou em 1750 o Seminário da Boa Morte em Mariana, estimulando a devoção à Virgem Jacente. Quatro anos depois, iniciou-se uma gradativa proliferação de irmandades com esta invocação. Mesmo nos lugares onde não foram criadas irmandades, havia devoção a Nossa Senhora da Boa Morte. É o que ainda se constata nos templos e museus de Sabará e Caeté, por exemplo, que guardam pinturas e esculturas dormicionistas produzidas nos séculos XVIII e XIX.
E a veneração à Dormição de Maria não ficou restrita aos templos católicos. Oratórios para culto doméstico também eram comuns no período colonial. Algumas associações de devotos mandavam confeccionar pequenas imagens de Nossa Senhora da Boa Morte e levavam para a casa dos doentes impossibilitados de comparecer à missa. Diante desses oratórios, os fiéis rezavam pedindo a cura de suas enfermidades. Em casos extremos, quando a morte não podia ser evitada, a pequena imagem servia para inspirar o devoto a mirar o exemplo da mãe de Jesus e perseverar na fé para alcançar a salvação de sua alma.
Um desses oratórios portáteis ainda pode ser visto na Irmandade de São João Del Rei. A imagem, produzida no século XVIII, é atribuída ao entalhador Valentim Corrêa Paes. Maria está deitada sobre uma cama, usando coroa, vestido branco, manto azul com bordados em dourado e sapatos. A caixinha onde fica é de madeira, com três lados de vidro. O fundo tem pintura de estrelas, fazendo alusão ao céu.
No período colonial, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte desempenharam relevante papel social e religioso. Funcionaram como agentes da caridade cristã, prestando assistência material e espiritual aos devotos, contribuíram para o desenvolvimento do culto dormicionista e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando obras e utilizando os serviços de entalhadores, policromadores, santeiros e músicos.
Exerceram também função pedagógica: por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens, transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma boa morte para os justos.
SABRINA MARA SANT’ANNA é professora do Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas, pesquisadora da C/Arte Projetos Culturais e autora da dissertação de Mestrado “A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras (1721-1822)”, (UFMG, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia:
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie: histoire des traditions anciennes. Paris: Beauchesne, 1995. v. 98. (Collection Théologie Historique).
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo Testamento. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. Título original: Iconographie de l’Art Chrétien.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição fac-similada.
Benditos apócrifos
A palavra “apócrifo” (do grego apókryphos e do latim apocryphus) significa secreto, oculto. No século IV, após a definição do Cânone da Bíblia, o termo tornou-se pejorativo – ganhando o sentido de falso ou suposto – e passou a designar os textos não incluídos no corpus bíblico, por se tratar de obras sem o reconhecimento eclesial. Apesar de não ser considerada pela Igreja como portadora da “Revelação” (ou “canônica”), a literatura apócrifa tem peso relevante para a história da cultura cristã, pois manifesta crenças, tradições lendárias e anseios populares desde os primeiros tempos do cristianismo.
Imagens da morte e ascensão da mãe de Jesus foram um importante instrumento de catequese na Europa e no Brasil
Sabrina Mara Sant’Anna
A dura realidade da morte inquieta a humanidade desde os tempos mais remotos. Ao tomar consciência de sua individualidade e da finitude de sua existência, o homem passou a praticar ritos em honra dos defuntos e a acreditar em uma vida além-túmulo. Esta é uma crença comum a várias tradições religiosas.
De acordo com o cristianismo, a morte não significa aniquilação, pois a alma é imortal. A doutrina católica considera que após o falecimento o corpo “volta ao pó” (decompõe-se) e a alma comparece diante do juízo de Deus para prestar contas e receber sentença irrevogável: salvação ou danação eterna. Os justos vivem para sempre no Paraíso celeste; os salvos que necessitam de purificação passam pelo Purgatório antes de atingirem o Paraíso e os pecadores não arrependidos padecem infinitamente no Inferno.
Desde o período medieval, os sermões, a literatura e as artes visuais advertem que, para alcançar a salvação, os fiéis devem resistir às tentações deste mundo e perseverar na fé até o último instante da vida. E para ajudar na resignação diante da morte, elegeu-se uma figura de forte simbologia: Maria, a mãe de Jesus.
Sua morte é um mistério não esclarecido pelas Sagradas Escrituras. A última referência bíblica à mãe de Cristo está no Novo Testamento: em Atos 1, 14. Este versículo conta que, depois da ascensão de Jesus, sua mãe persevera na oração juntamente com os apóstolos e com outras mulheres. Depois disso, não se sabe seu destino. Essa carência de informações bíblicas sobre o fim da existência terrena de Maria propiciou o surgimento de lendas e narrativas apócrifas – sem reconhecimento eclesiástico –, escritas em diversas línguas a partir da segunda metade do século V.
Aprocrifum de assumptione Virgini (Texto apócrifo da Assunção da Virgem), do século VI, é a versão latina de um texto grego atribuído a São João Evangelista que sustenta que Maria não morreu de doença ou velhice: consumiu-se de amor e ardente desejo de reencontrar seu filho divino. Aos 60 anos, já viúva, deixou este mundo com serenidade espiritual e sem sofrimentos físicos. No exato momento do derradeiro suspiro, sua alma foi recebida pelo próprio Cristo. Maria foi velada e acompanhada até a sepultura pelos discípulos. Três dias depois, honrada com a graça da ressurreição, seu corpo foi levado ao céu por uma corte de anjos.
Narrativas como essa tornaram popular no Ocidente a crença na “Dormição” (falecimento) e na “Assunção” (subida ao Paraíso) corporal da mãe de Jesus. A partir do século XIII, esses dois temas conquistaram cada vez mais devotos e passaram a ser abundantemente representados em fachadas e espaços internos de templos católicos europeus. Contribuíram para isso a circulação da obra literária Legenda Áurea – coletânea de biografias de santos escrita pelo dominicano Jacopo de Varazze entre 1253 e 1270 – e a disseminação incontrolável das epidemias de peste negra pela Europa. Diante da tragédia da morte em larga escala, que apavorava as populações, as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte, protetora dos agonizantes, e de Nossa Senhora da Assunção ensinavam os fiéis a aceitar com resignação a vontade divina e a crer que os justos teriam uma “boa morte”, ou seja, seriam salvos como a mãe de Jesus.
Para se referirem ao falecimento de Maria, os bizantinos utilizavam a palavra grega Koimesis, que significa sono da morte. A Igreja latina, por sua vez, adotou dois termos distintos: Dormitio (Dormição) e Transitus (Trânsito). O primeiro era usado para designar o momento da morte de Maria, considerado um simples sono, pois seu corpo foi poupado da corrupção. O segundo tratava do conjunto morte e assunção.
Na arte oriental, o tema da Koimesis era representado por um só padrão iconográfico: Maria aparece sempre morta, deitada, tendo ao seu lado os apóstolos e uma multidão de adoradores. Em pé atrás do cadáver aparece o Cristo. Esse esquema bizantino é caracterizado pela rígida composição em forma de cruz, cuja linha horizontal é definida pelo corpo de Maria e a vertical por Jesus. É o que se vê nos belos mosaicos da Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Neles, Cristo é acompanhado por anjos e segura a alma de sua mãe – um bebê embalado em manta, símbolo de pureza, inocência e vida. Três discípulos se destacam na cena: Pedro, que balança um incensário à cabeceira da cama mortuária; Paulo, que beija os pés da santa, e João, que respeitosamente recosta sua cabeça sobre o peito da mãe de Jesus.
Essa estética bizantina influenciou a arte sacra do Brasil Colônia, que, no entanto, incorporou outros elementos para a representação da morte de Maria. O altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, em Ouro Preto (MG), mostra Maria vestida de branco e deitada em um nicho que lhe serve de lugar de repouso. Ao fundo, na talha em relevo, dez discípulos assistem ao fim de sua vida terrena – um deles portando um livro de orações e outro segurando a caldeirinha de água benta. Logo acima encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Assunção. O coroamento deste retábulo nos revela um detalhe importante: a alma da mãe de Jesus (busto feminino parcialmente desnudo) sobe ao céu em uma pequena nuvem. A Trindade Divina a espera na eternidade segurando uma coroa, símbolo cristão que indica transcendência e salvação.
O altar combina referências iconográficas do Oriente e do Ocidente cristão: Maria está morta (a alma fora do corpo), como no tradicional modelo bizantino, mas o Cristo não está posicionado em pé atrás do cadáver. Uma peculiaridade daquele altar de Ouro Preto é apresentar três cenas em um mesmo espaço: a “Dormição”, a “Assunção da alma” e a “Assunção corporal”. Outros retábulos mineiros do mesmo período congregam apenas duas etapas do chamado “Trânsito da Virgem”: a parte inferior é destinada à representação do corpo da santa que fica exposto em um esquife, enquanto a superior abriga imagem de Nossa Senhora da Assunção. Este formato, que expõe a morte e a elevação corporal de Maria ao céu, alcançou inclusive os pequenos oratórios, permitindo uma eficiente doutrinação dos fiéis e evangelização dos incrédulos, na medida em que oferecia uma espécie de resumo teológico da promessa do cristianismo: os justos terão vida eterna com Cristo.
A coexistência dos elementos orientais e ocidentais não é uma particularidade mineira ou brasileira: já vinha ocorrendo na Europa desde a Idade Média. A produção artística ocidental divulgou o tradicional modelo da Koimesis bizantina, mas aos poucos ele sofreu adaptações e modificações, ganhando novas formas e movimentos. No Ocidente surgiriam outras versões visuais para a Dormição. Imagens espalhadas por vários países retratam Maria agonizante (antes de a alma deixar o corpo) ou jacente (a alma fora do corpo), deitada em leito mortuário (representação mais comum), morrendo ajoelhada em oração – como no retábulo da Igreja de Nossa Senhora, na cidade polonesa de Cracóvia, feito por Veit Stoss entre 1477 e 1489 – ou falecendo sentada em trono majestático, como no retábulo de autoria do alemão Hans Holbein, o Velho, executado entre 1501 e 1502 para a Igreja dos Dominicanos em Frankfurt am Main, na Alemanha.
No Brasil, a crença na Dormição e na Assunção de Maria chegou junto com os colonizadores portugueses. As primeiras representações surgiram na costa litorânea, avançando progressivamente, junto com a fundação de povoados e vilas, para o interior da colônia. Por meio de sermões e imagens, a devoção à padroeira dos agonizantes foi divulgada primeiramente em Salvador, espalhando-se depois para outras regiões – em especial para Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Goiás.
Em Minas, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte começou no primeiro quartel do século XVIII. A primeira irmandade dedicada à santa estabeleceu-se em 1721 na freguesia de Antônio Dias, em Vila Rica (Ouro Preto); a segunda, em 1730, na freguesia de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira (Cachoeira do Campo), e a terceira, por volta de 1734 na freguesia de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei.
Com o objetivo de ensinar Teologia Moral e formar padres capazes de ajudar a população a “bem morrer”, o bispo D. Frei Manoel da Cruz inaugurou em 1750 o Seminário da Boa Morte em Mariana, estimulando a devoção à Virgem Jacente. Quatro anos depois, iniciou-se uma gradativa proliferação de irmandades com esta invocação. Mesmo nos lugares onde não foram criadas irmandades, havia devoção a Nossa Senhora da Boa Morte. É o que ainda se constata nos templos e museus de Sabará e Caeté, por exemplo, que guardam pinturas e esculturas dormicionistas produzidas nos séculos XVIII e XIX.
E a veneração à Dormição de Maria não ficou restrita aos templos católicos. Oratórios para culto doméstico também eram comuns no período colonial. Algumas associações de devotos mandavam confeccionar pequenas imagens de Nossa Senhora da Boa Morte e levavam para a casa dos doentes impossibilitados de comparecer à missa. Diante desses oratórios, os fiéis rezavam pedindo a cura de suas enfermidades. Em casos extremos, quando a morte não podia ser evitada, a pequena imagem servia para inspirar o devoto a mirar o exemplo da mãe de Jesus e perseverar na fé para alcançar a salvação de sua alma.
Um desses oratórios portáteis ainda pode ser visto na Irmandade de São João Del Rei. A imagem, produzida no século XVIII, é atribuída ao entalhador Valentim Corrêa Paes. Maria está deitada sobre uma cama, usando coroa, vestido branco, manto azul com bordados em dourado e sapatos. A caixinha onde fica é de madeira, com três lados de vidro. O fundo tem pintura de estrelas, fazendo alusão ao céu.
No período colonial, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte desempenharam relevante papel social e religioso. Funcionaram como agentes da caridade cristã, prestando assistência material e espiritual aos devotos, contribuíram para o desenvolvimento do culto dormicionista e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando obras e utilizando os serviços de entalhadores, policromadores, santeiros e músicos.
Exerceram também função pedagógica: por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens, transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma boa morte para os justos.
SABRINA MARA SANT’ANNA é professora do Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas, pesquisadora da C/Arte Projetos Culturais e autora da dissertação de Mestrado “A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras (1721-1822)”, (UFMG, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia:
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie: histoire des traditions anciennes. Paris: Beauchesne, 1995. v. 98. (Collection Théologie Historique).
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo Testamento. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. Título original: Iconographie de l’Art Chrétien.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição fac-similada.
Benditos apócrifos
A palavra “apócrifo” (do grego apókryphos e do latim apocryphus) significa secreto, oculto. No século IV, após a definição do Cânone da Bíblia, o termo tornou-se pejorativo – ganhando o sentido de falso ou suposto – e passou a designar os textos não incluídos no corpus bíblico, por se tratar de obras sem o reconhecimento eclesial. Apesar de não ser considerada pela Igreja como portadora da “Revelação” (ou “canônica”), a literatura apócrifa tem peso relevante para a história da cultura cristã, pois manifesta crenças, tradições lendárias e anseios populares desde os primeiros tempos do cristianismo.
http://www.revistadehistoria.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário