Obra retrata a cidade nos séculos 16 e 17, época pouco documentada e estudada. Keila Grinberg destaca o mérito do autor por reunir, durante 15 anos de pesquisa, informações sobre esse período em que o Rio ainda não se destacava no cenário nacional.
Keila Grinberg
Keila Grinberg
Detalhe do painel da Igreja de São Sebastião dos Frades Capuchinhos que retrata a fundação da cidade do Rio de Janeiro pelos portugueses, sob o comando de Estácio de Sá, no dia primeiro de março de 1565. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)
Eu sei que não se deve começar – nem terminar, para falar a verdade – um texto com um lugar-comum, mas não resisto: tem obras que nascem clássicas. Não há outra maneira de classificar o monumental trabalho de Mauricio de Almeida Abreu Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). A obra, de dois volumes, foi publicada pela editora Andrea Jakobsson Estúdio em 2010.
O lançamento do livro, que teve o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, pode ser imputado à recente enxurrada de novas obras historiográficas sobre o Rio de Janeiro – com a qual conviveremos nos próximos anos, efeito altamente positivo do interesse pela cidade gerado pela proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Capa do livro ‘Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700)’, de Mauricio de Almeida Abreu.No entanto, a obra do geógrafo Mauricio Abreu, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também autor do conhecido Evolução Urbana do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, IplanRio, 1987), não tem nada a ver com o boom de lançamentos sobre a cidade. Ao contrário: o trabalho é fruto de 15 anos de pesquisa que agora, em boa hora, vêm a público.
Como o próprio autor afirma, o propósito de seu livro é “discutir um lugar que não existe mais”: o Rio de Janeiro dos séculos 16 e 17. Daí o porquê de ser um trabalho de ‘geografia histórica’, como o título diz.
Na melhor tradição da escola dos Annales – movimento historiográfico que se destaca por incorporar métodos das ciências sociais à história e que gerou livros como O Mediterrâneo, do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), e Montaillou, do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie (1929-) –, o que Mauricio Abreu quer é discutir, no âmbito do Rio de Janeiro, a confluência de tempo e espaço, processo social e forma espacial.
O simples fato de se dedicar aos dois primeiros séculos de existência do Rio de Janeiro já colocaria a obra em lugar de honra na historiografia sobre a cidadePara isso, analisa o processo de conquista do território, a formação da sociedade colonial – incluindo os indígenas, que dela participavam ativamente –, a produção açucareira e, por fim, a própria cidade, sua organização interna e seus espaços coletivos.
O simples fato de se dedicar aos dois primeiros séculos de existência do Rio de Janeiro já colocaria a obra em lugar de honra na historiografia sobre a cidade, dominada por trabalhos sobre os séculos 18 e 19.
Ao direcionar a narrativa rumo à virada para os anos 1700, Mauricio Abreu opta, conscientemente, por estudar um lugar pobre e periférico, que, embora já açucareiro, estava longe de ser o grande exportador de ouro e importador de escravos, capital do Brasil, que viria a ser no século 18.
Escassez de registros
Se a região não era tão próspera como seria no século 18, também não produzia tantos documentos, como aconteceu depois. Desse material, aliás, se aproveitaram muito bem historiadores como Nireu Cavalcanti e Maria Fernanda Bicalho, autores de obras fundamentais sobre o Rio de Janeiro no século 18 (respectivamente, O Rio de Janeiro setecentista e A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII).
Mapa da baía de Guanabara feito em 1955, ano em que os franceses estabeleceram-se na região. Durante os séculos 16 e 17, poucos foram os documentos produzidos sobre o Rio de Janeiro. (imagem: Duval)É conhecida a escassez de fontes documentais dos séculos 16 e 17, se comparadas às produzidas nos períodos posteriores. Mauricio Abreu tentou suprir essa falta vasculhando, um a um, todos os arquivos que pudessem ter documentos sobre seu tema.
E encontrou. Muitos. De fato, esse seria um trabalho de síntese como tantos outros, se Mauricio Abreu não tivesse sido picado pela famigerada mosca do arquivo, aquela que ataca os pesquisadores fascinados pelos documentos, que não largam o arquivo enquanto não conseguem esgotar todas as possibilidades de pesquisa.
Mauricio Abreu parte justamente da constatação de seu desconhecimento inicial sobre o começo do período colonial no Rio de Janeiro para mudar o tema original de seu trabalho – seria um estudo sobre a cidade no século 19, precedido de um capítulo introdutório sobre o período colonial – e mergulhar em uma outra época.
O resultado é um trabalho que evita as generalizações e as caracterizações grandiosasO resultado é um trabalho que evita as generalizações e as caracterizações grandiosas e, por isso mesmo – para acabar esta parte com outro lugar-comum – é leitura obrigatória para pesquisadores, estudantes e interessados em geral em conhecer a história do Rio de Janeiro.
Em tempo: A boa notícia é que Mauricio Abreu não está sozinho. Na semana que vem, será lançado o livro Povoamento, catolicismo e escravidão na Antiga Macaé, organizado por Claudia Rodrigues, Carlos Engemann, Márcia Amantino e Jonis Freire (editora Apicuri). A obra é justamente resultado de um esforço de pesquisa coletivo para resgatar, com base na documentação local, a história da região de Macaé desde o século 17.
Esse trabalho vem se somar a outros esforços de busca e análise das fontes da história do Rio de Janeiro, como o projeto de digitalização de documentos eclesiásticos dos séculos 16, 17, 18 e 19 da arquidiocese de Niterói e das dioceses de Nova Iguaçu, Petrópolis e Valença. Para terminar com um último lugar-comum: vale a pena conferir.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Revista Ciência Hoje
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