segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Das línguas africanas ao português brasileiro


Yeda Pessoa de Castro

Do século XVI ao século XIX, o tráfico transatlântico trouxe para o Brasil 4 a 5 milhões de falantes africanos extraídos de duas regiões subsaarianas : a região banto, situada ao longo da extensão sul da linha do equador, e a região oeste-africana ou sudanesa, que abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria.
A região banto compreende um grupo de 500 línguas muito semelhantes, que são faladas na África sub-equatorial. Entre elas, as de maior número de falantes no Brasil foram três línguas angolanas: quicongo, também falada no Congo, quimbundo e umbundo. Das línguas oeste-africanas ou sudanesas, seus principais representantes no Brasil foram os povos do grupo ewe-fon provenientes de Gana, Togo e Benim, apelidados pelo tráfico de minas ou jejes, e os iorubás da Nigéria e do Reino de Queto (Ketu), estes últimos na vizinha República do Benim, onde são chamados de nagôs.

No entanto, apesar dessa notável diversidade de línguas, todas elas têm uma origem comum. Pertencem a uma só grande família lingüística Níger-Congo (Greenberg 1966). Logo, são todas línguas aparentadas.

Fatos relevantes

Explicar a participação de línguas africanas na construção da língua portuguesa no Brasil é ter em conta a atuação do negro-africano como personagem falante no desenrolar dos acontecimentos e procurar entender os fatos relevantes de ordem sócio-econômica e de natureza lingüística que favoreceram o avanço consecutivo do componente africano nesse processo.

Inicialmente, o contingente de negros e afro-descendentes era superior ao número de portugueses e outros europeus, durante três séculos consecutivos, num contexto social e territorial cujo isolamento em que foi mantida a colônia pelo monopólio do comércio externo brasileiro feito por Portugal até 1808 condicionou um ambiente de vida de aspecto conservador e de tendência niveladora, mais aberto à aceitação de aportes culturais mútuos e de interesses comuns. Aqui, merecem destaque a atuação socializadora da mulher negra na função de mãe-preta no seio da família colonial, e o processo de socialização lingüística exercido pelos negros ladinos, aqueles que, aprendendo rudimentos de português, podiam falar a um número maior de ouvintes, e influenciá-los, resultando daí por adaptarem uma língua a outra e estimularem a difusão de certos fenômenos lingüísticos entre os não bilíngües.(Ver Pessoa de Castro 1990).

No século XIX, o processo de urbanização que se iniciava no Brasil a partir da instalação da família real portuguesa no Rio de Janeiro e a abertura dos portos em 1808, exigiram a fixação nas cidades da mão-de-obra escrava recém-trazida da África, numa época em que a maioria da população brasileira era constituída de mestiços e crioulos. Esses, já nascidos no Brasil, falando português como primeira língua, por conseguinte, mais desligados de sentimentos nativistas em relação à África e susceptíveis à adoção e aceitação de padrões europeus então vigentes.

Finalmente, com a extinção do tráfico transatlântico para o Brasil em 1856 até a abolição oficial da escravatura no país em 1888, o tráfico interno foi intensificado. Negros escravizados nas plantações do nordeste foram levados para outras nas regiões do sul e sudeste (depois ocupadas por europeus e asiáticos) e, em direção oposta, do centro-oeste para explorar a floresta amazônica onde os povos indígenas são preponderantes. Em conseqüência, portanto, da amplitude geográfica alcançada por essa distribuição humana, o elemento negro foi uma presença constante em todas as regiões do território brasileiro sob regime colonial e escravista.

No entanto, nesse contexto sócio-histórico, cada língua ou grupo de línguas teve sua influência própria.

Os bantos

A influência banto é muito mais profunda em razão da antiguidade do povo banto no Brasil, da densidade demográfica e amplitude geográfica alcançada pela sua distribuição humana em território brasileiro.

A sua presença foi tão marcante no Brasil no século XVII que, em 1697, é publicada, em Lisboa, A arte da língua de Angola, do padre Pedro Dias, a mais antiga gramática de uma língua banto, escrita na Bahia para uso dos jesuítas, com o objetivo de facilitar a doutrinação dos 25.000 negros angolanos, segundo Antônio Vieira, que se encontravam na cidade do Salvador sem falar português (Cf. Silva Neto 1963:82).

Os aportes bantos ou bantuismos, ou seja, palavras africanas que entraram para a língua portuguesa no Brasil, estão associados ao regime da escravidão (senzala, mucama, bangüê, quilombo), enquanto a maioria deles está completamente integrada ao sistema lingüístico do português, formando derivados portugueses a partir de uma mesma raiz banto (esmolambado, dengoso, sambista, xingamento, mangação, molequeira, caçulinha, quilombola), o que já demonstra uma antiguidade maior. Em alguns casos, a palavra banto chega a substituir a palavra de sentido equivalente em português: caçula por benjamim, corcunda por giba, moringa por bilha, molambo por trapo, xingar por insultar, cochilar por dormitar, dendê por óleo-de-palma, bunda por nádegas, marimbondo por vespa, carimbo por sinete, cachaça por aguardente. Alguns já estão documentados na literatura brasileira do século XVII, a exemplo dos que se encontram na poesia satírica de Gregório de Matos e Guerra. (1633-1696).

Os oeste-africanos

Ao encontro dessa gente banto já estabelecida nos núcleos coloniais em desenvolvimento, é registrada a presença de povos ewe-fon, cujo contingente foi aumentado em conseqüência da demanda crescente de mão-de-obra escravizada nas minas de ouro e diamantes, então descobertas em Minas Gerais, Goiás e Bahia, simultaneamente com a produção de tabaco na região do Recôncavo baiano.

Sua concentração, no século XVIII foi de tal ordem em Vila Rica que chegou a ser corrente entre a escravaria local um falar de base ewe-fon, registrado em 1731/41 por Antônio da Costa Peixoto em A obra nova da língua geral de mina, só publicada em 1945, em Lisboa. Também Nina Rodrigues, ao findar do século XIX, teve oportunidade de registrar um pequeno vocabulário jeje-mace (fon) de que ainda se lembravam alguns dos seus falantes na cidade do Salvador, assim como de outras quatro línguas oeste-africanas (acossa, tapa, Gramsci, flane). (Ver Pessoa de Castro 2002).

Ao findar do século XVIII, a cidade do Salvador começa a receber, em levas numerosas e sucessivas, um contingente de povos procedentes da Nigéria atual, em conseqüência das guerras interétnicas que ocorriam na região. Entre eles, a presença nagô-iorubá foi tão significativa que o termo nagô na Bahia começou a ser usado indiscriminadamente para designar qualquer indivíduo ou língua de origem africana no Brasil. Nina Rodrigues mesmo dá notícia de um "dialeto nagô", que era falado pela população negra e mestiça da cidade do Salvador naquele momento e que ele não documentou, mas definiu como "uma espécie de patois abastardado do português e de várias línguas africanas" (cf. Rodrigues 1942::261). Logo, não se tratava da língua iorubá, como muitos ainda se deixam confundir.

Devido a uma introdução tardia e à numerosa concentração dos seus falantes na cidade do Salvador, os aportes do iorubá são mais aparentes, especialmente porque são facilmente identificados pelos aspectos religiosos de sua cultura e pela popularidade dos seus orixás no Brasil (Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxossi, etc.).

O português do Brasil

Depois de quatro séculos de contato direto e permanente de falantes africanos com a língua portuguesa no Brasil, esse processo de interação lingüística, apoiada por fatores favoráveis de ordem sócio-histórica e cultural, foi provavelmente facilitado pela proximidade relativa da estrutura lingüística do português europeu antigo e regional com as línguas negro-africanas que o mestiçaram. Entre essas semelhanças, o sistema de sete vogais orais (a, e, ê, i, o ê, u) e a estrutura silábica ideal (CV.CV) (consoante vogal.consoante vogal), onde se observa a conservação do centro vocálico de cada sílaba e não há sílabas terminadas em consoante. Essa semelhança estrutural provavelmente precipitou o desenvolvimento interno da língua portuguesa e possibilitou a continuidade da pronúncia vocalizada do português antigo na modalidade brasileira (onde as vogais átonas também são pronunciadas), afastando-a, portanto, do português de Portugal, de pronúncia muito consonantal, o que dificulta o seu entendimento por parte do ouvinte brasileiro, fazendo-lhe parecer tratar-se de outra língua que não a portuguesa (Cf. a pronúncia brasileira *pi.neu, *a.di.vo.ga.do, *su.bi.ma.ri.no em lugar de pneu, a(d).v(o).ga.do, su(b).m(a).ri.no) (V. Pessoa de Castro 2005) Nesse processo, o negro banto, pela antiguidade, volume populacional e amplitude territorial alcançada pela sua presença humana no Brasil colônia, ele, como os outros, adquiriu o português como segunda língua, tornando-se o principal agente transformador da língua portuguesa em sua modalidade brasileira e seu difusor pelo território brasileiro sob regime colonial e escravista. Ainda hoje, inúmeros dialetos de base banto são falados como línguas especiais por comunidades negras da zona rural, provavelmente remanescentes de antigos quilombos em diversas regiões brasileiras (V. Queiroz 1998, Vogt e Fry 1996). Ao encontro dessa matriz já estabelecida assentaram-se os aportes do ewe-fon e do iorubá, menos extensos e mais localizados, embora igualmente significativos para o processo de síntese pluricultural brasileira, sobretudo no domínio da religião.

Diante dessas evidências, chegamos necessariamente a uma conclusão compatível com as circunstâncias extralingüísticas que foram favoráveis a esse processo: o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português de Portugal, é, historicamente, o resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano sobre uma matriz indígena pré-existente e mais localizada no Brasil. Assim sendo, o português brasileiro descende de três famílias lingüísticas: a família Indo-Européia que teve origem entre a Europa e a Ásia, da qual faz parte a língua portuguesa; a família Tupi, de línguas faladas pelo indígenas brasileiros e que se espalha pela América do Sul; e, por fim, a família Níger-Congo que teve origem na África subsaariana e se expandiu por grande parte desse continente. Conseqüentemente, povos indígenas e povos negros, ambos marcaram profundamente a cultura do colonizador português que se estabeleceu no Brasil, dando origem à uma nova variação da língua portuguesa – mestiça, brasileira.

Regiões de concentração do tráfico para o Brasil

Oeste-africanos:

Ewe-fon (mina-jeje)
1.Gana 2. Togo 3. Benim

Nagô-Iorubá
3. Reino de Queto ( Benim) e 4. Nigéria

Bantos
5. Gabão 6. Congo 7. Congo-Kinshasa 8.Angola 9. Moçambique

Bibliografia

GREENBERG, Joseph (1966) - The languages of Africa. Bloomington, Indiana University.

GÜTHRIE, Malcolm (1948) - The classification of the Bantu languages. London, Oxford University Press.

LIMA, Vivaldo da Costa. “A família-de-santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais”. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 1977.

MENDONÇA, Renato (1935) - A influência africana no português do Brasil. 2 a ed. São Paulo: Editora Nacional.

MELO, Gladstone Chaves de (1946) - A língua do Brasil. São Paulo: Agir Editora.

PESSOA DE CASTRO, Yeda (1980) - “Os falares africanos na interação social do Brasil Colônia”. Salvador, Centro de Estudos Baianos/UFBA, nº 89.

PESSOA DE CASTRO, Yeda (1990) - No canto do acalanto. Salvador. Centro de Estudos Afro-Orientais, Série Ensaio/Pesquisa, 12.

PESSOA DE CASTRO, Yeda (2005) - Falares africanos na Bahia:¨um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora.

PESSOA DE CASTRO, Yeda (2002) - A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro (Coleção Mineiriana).

QUEIROZ, Sônia (1998) - Pé preto no barro branco. A língua dos negros de Tabatinga. Belo Horizonte: EDUFMG.

RAYMUNDO, Jacques (1933) - O elemento afro-negro na língua portuguesa. Rio de Janeiro: Renascença Editora.

RODRIGUES, Nina ([1945] 1993) Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Nacional.

SILVA, Alberto da Costa e ( 2002) - A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Biblioteca Nacional.

SILVA NETO, Serafim da (1963) - Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: INL/MEC.CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos; estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964 (Retratos do Brasil, 28).

VOGT, Carlos, FRY, Peter (1996) Cafundó, a África no Brasil - língua e sociedade. São Paulo: Cia. das Letras; Campinas: Editora Unicamp.

WESTERMANN, Dietrich and BRYAN, M.A.(1953) - Languages of West Africa. London: Oxford University Press.
Revista do IPHAN

domingo, 30 de outubro de 2011

Anos 20 - Modernidade Carioca


Capa da Revista FON FON, 1916 - (nosso século 1910-1930 - abril cultural)

Modernidade Carioca

Os artistas e intelectuais cariocas dos anos 20 reagiam à idéia do modernismo como movimento cultural organizado. Manuel Bandeira, um dos expoentes da poesia modernista, sempre declarou que seus escritos haviam-se inspirado mais na vivência das rodas boêmias cariocas do que em discussões intelectuais.

No Rio de Janeiro, o intercâmbio entre os artistas e intelectuais e as camadas populares ocorria de fato muito mais no espaço informal das ruas, dos cafés, das festas de igreja, como a da Penha, das casas de santo, como a da Tia Ciata, e dos carnavais. Desde o início do século, e mais acentuadamente em meados da década de 1910, vários artistas e intelectuais estrangeiros, como Gustavo D'Allara, Paul Claudel (embaixador da França no Brasil), Darius Millaud e Blaise Cendrars passaram a visitar o Brasil no intuito de conhecer sua literatura, pintura, folclore e música popular. Millaud estabeleceu relações pessoais com Pixinguinha e Donga, inspirando-se em sua música para montar musicais em Paris. Esse "diálogo cultural" que caracterizava a estética moderna também mobilizou alguns artistas e intelectuais cariocas como Afonso Arinos, Emílio de Menezes, Bastos Tigre e Hermes Fontes, que freqüentavam a república dos compositores populares e os cafés da Lapa.

Fora das rodas boêmias, Graça Aranha, com sua obra A estética da vida (1921), tornou-se o "paladino" do modernismo e foi convidado a fazer a conferência de abertura da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto, que fundaram no Rio, em 1924, a revista Estética, compunham com Ronald de Carvalho e Renato de Almeida um grupo de intelectuais sintonizados com o movimento modernista paulista.
CPDOC-FGV

Carlota Pereira de Queirós


Carlota Pereira de Queirós nasceu em São Paulo, em 1892.

Em 1926, formou-se em medicina, ocasião em que recebeu o prêmio Miguel Couto pela sua tese. Chefe do laboratório de clínica pediátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo em 1928, no ano seguinte viajou para a Suíça comissionada pelo governo para estudar dietética infantil.

Durante a Revolução Constitucionalista, movimento de contestação à Revolução de 1930, ocorrido em São Paulo em 1932, organizou, à frente de 700 mulheres, a assistência aos feridos. Em maio de 1933, foi a única mulher eleita deputada à Assembléia Nacional Constituinte, na legenda da Chapa Única por São Paulo. Na Constituinte, Carlota integrou a Comissão de Saúde e Educação, trabalhando pela alfabetização e assistência social. Foi de sua autoria o primeiro projeto sobre a criação de serviços sociais, bem como a emenda que viabilizou a criação da Casa do Jornaleiro e a criação do Laboratório de Biologia Infantil.

Após a promulgação da Constituinte em 17 de julho de 1934, teve o seu mandato prorrogado até maio de 1935. Ainda em 1934, ingressou no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Eleita pelo Partido Constitucionalista de São Paulo, no pleito de outubro de 1934, permaneceu na Câmara até 1937, quando foi instaurado o Estado Novo (1937-1945). Durante esse período lutou pela redemocratização do país.

Eleita membro da Academia Nacional de Medicina em 1942, fundou, oito anos depois, a Academia Brasileira de Mulheres Médicas, da qual foi presidente durante alguns anos. Apoiou o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, em 1964.

Faleceu em São Paulo, em 1982.
CPDOC-FGV

A primeira eleita



Há 76 anos, Carlota Pereira de Queiroz abria os caminhos para a igualdade de gênero no País e a entrada da mulher na política brasileira
Revista Brasileiros - Edição 41 - Dezembro/2010
Jorge Caldeira

Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982) foi a primeira mulher a ser eleita no Brasil para a Constituinte de 1934. Médica, ficou conhecida por seu trabalho durante a Revolução de 1932, quando organizou o atendimento aos combatentes feridos. Na esteira dessa revolução, foram convocadas eleições, as primeiras nas quais mulheres puderam votar e serem votadas.

Do trabalho dos congressistas, resultou a primeira Constituição em que os direitos da mulher se equiparavam formalmente aos dos homens. Ao final dos trabalhos, Carlota Pereira de Queiroz fez um discurso, do qual foi retirado o trecho ao lado, avaliando os avanços na condição da mulher:

"Ao ocupar novamente a tribuna desta Casa, a que muito me honro de pertencer, sejam as minhas primeiras palavras de regozijo, por ver, definitivamente, confirmada, entre nós, a colaboração da mulher na política do País, com a eleição de várias representantes femininas para as assembléias constituintes estaduais.

Coube-me o privilégio de ser a iniciadora dessa nova época. Coincidência apenas, nada mais. Há sempre uma série de fatores que preparam um fenômeno social, e só a casualidade faz com que seja este ou aquele o primeiro por ele atingido. O indivíduo, em tais situações, nada significa, nunca se trata de uma consagração pessoal. No caso em questão, foi exatamente o que se deu.

Situações como essa, em que me vi arrastada pela deliberação coletiva de um povo, que, por força de circunstâncias, me elegeu como sua primeira representante feminina para o Parlamento, caberiam melhor a espíritos combativos, que se lançassem na luta, com largas visões de futuro. Mas nunca foi esse o meu feitio. E, receosa de vir a prejudicar até o êxito futuro dessa causa tão promissora, procurei agir com prudência, para que ela viesse a realizar um dia os altos fins a que estava destinada. Agora, sentindo já a continuação dessa modesta obra de principiante, sinto-me quase envaidecida da missão que me coube preencher.

Perdoem-me, portanto, as minhas colegas femininas, se cheguei a desapontá-las com o meu modo de agir, apagado e tranquilo, que lhes há de ter parecido até de todo improdutivo... Não me acodem remorsos neste momento, porque já me é dado contemplar, cheia de orgulho, as minhas continuadoras. Ao menos, prestei-lhes o serviço de não lhes perturbar a marcha triunfante...

Embora não me arrogue direitos de líder feminista, mesmo porque sempre fui contrária às organizações partidárias exclusivamente femininas, cabe-me hoje uma pequena responsabilidade no modo por que foi orientada, no seu início, a colaboração da mulher na política, entre nós. E, por essa razão, sinto-me obrigada a fazer algumas considerações a respeito da situação da mulher, em face da nova Constituição Brasileira. Justifica essa minha atitude um artigo recentemente publicado na revista americana Equal Rights, da Comissão Interamericana de Mulheres, que acabo de receber dos Estados Unidos. Esse fato levou-me à convicção de que o posto de única mulher eleita é de repercussão muito maior do que parecia ter à primeira vista, porque representa um passo a mais na evolução de um problema mundial. Assinado pelas senhoras Helen Will Wood e Betty Gram Swing, membros da Comissão Intercontinental de Ratificação e Adesão, representa o referido artigo, intitulado "An Appraisal of the New Constitution of Brazil", uma grande deferência prestada por aquela agremiação à nova Constituição brasileira. E, em homenagem à sua diretoria, que assim nos distingue, é que dele me ocupo perante esta Assembléia.

Em relação ao sufrágio universal, aos direitos e garantias dos cidadãos e à legislação do trabalho, consideram, aquelas autoras americanas, que a Constituição brasileira alcançou fins muito elevados. Julgam-na demasiado longa, mas bastante clara. Afirmam ainda que é obra de um povo progressista e amante da liberdade, porque reconhece a igualdade de todos perante a lei, permite às mulheres o exercício de cargos públicos, institui o concurso obrigatório para admissão aos mesmos e favorece a completa expansão cultural da mulher, admitindo-a nos cursos universitários.

Essa opinião, por todos os modos respeitável, sobre o assunto precisa acabar por nos convencer, a nós, mulheres brasileiras, de que o chamado problema do 'feminismo' deixou de existir entre nós com a promulgação da nova Constituição."

Claro, ainda haveria um longo caminho até a Presidência da República. Mas, como dizia Mao Tse Tung: "Toda longa marcha começa com um primeiro passo".

O texto acima faz parte do livro Brasil - A História Contada por Quem Viu, organizado por Jorge Caldeira e publicado pela Editora Mameluco.
Revista Brasileiros

1916 - O Colosso Blindado


A máquina de moer trincheiras: o 'Big Willie' britânico é a grande novidade tecnológica desta etapa do conflito na Europa

Vem aí o ‘tanque’, novidade desta guerra – Novo veículo
de combate da Grã-Bretanha ultrapassa trincheiras e arame farpado –
Aguardada estreia deve acontecer no Somme, nas próximas semanas

Está prestes a entrar no campo de batalha a grande esperança dos aliados para vencer as trincheiras e os emaranhados de arame farpado que engessam o combate contra o inimigo – leia-se Alemanha – no front europeu. Trata-se de uma nave terrestre blindada de 28 toneladas, equipada com canhões e metralhadoras, capaz de carregar entre três e oito soldados, impulsionada por lagartas (como as que são usadas em tratores) e que, além de ultrapassar trincheiras e fazer picadinho de arame farpado, servirá como escudo para os avanços da infantaria pelos campos de combate. Desde que Londres deu o aval para a produção desses novos e revolucionários veículos de combate, no início do ano, os operários da fábrica Fosters, em Lincoln, na Inglaterra, responsável pelo projeto do colosso de ferro, trabalham febrilmente. Com isso, a empresa conseguirá entregar aos militares dentro de poucas semanas a primeira leva de veículos. Ainda sem nome oficial, estão sendo apelidados de “tanques”, por sua semelhança com os caminhões de transporte de água.

Nos testes realizados em fevereiro último, o “Big Willie”, protótipo idealizado e apresentado pela dupla William Tritton, diretor da Fosters, e Walter Wilson, da Reserva Real da Marinha, arrancou suspiros da cúpula londrina, convencida de ter encontrado a síntese ideal para o trinômio proteção-mobilidade-poder de fogo. A fabulosa nave conta com um propulsor Daimler de 105 cavalos e, além das lagartas, apresenta duas rodas traseiras para equilíbrio e direção. A máquina obteve êxito em atravessar uma trincheira de 3 metros e sobrepujar espantosamente um obstáculo vertical de 1,3 metro, movimentando-se com vigor a uma velocidade que fica entre os 3 e 6 quilômetros por hora. Maravilhados, os integrantes do comando britânico não hesitaram em assinar o cheque para uma encomenda de cem unidades. Boa parte deles já tem destino certo: a terra de ninguém do Somme, onde o colosso certamente será recebido como um verdadeiro maná belicoso.

Graças a ele: Churchill apoiou projeto

‘Churchill-móvel’ – Se comprovada sua eficácia em combate, os soldados britânicos devem juntar em suas preces de agradecimento o nome de Winston Churchill ao de Deus e do rei George. Em retrospectiva, Winnie é o responsável pela materialização do projeto do “tanque”. Foi o hoje defenestrado Churchill, quem, em fevereiro do ano passado, durante seu mandato como Primeiro Lorde do Almirantado, a despeito da oposição do Ministério da Guerra, bancou a criação do Comitê de Naves Terrestres, consciente da importância de um veículo blindado para todos os terrenos. (O Real Serviço Aéreo Naval, no início da guerra, possuía alguns carros blindados para trabalhar em conjunto com o esquadrão baseado em Dunquerque, seja como reconhecimento de terra ou resgate de pilotos; esses modelos, porém, não poderiam ser levados às trincheiras – e então a Marinha seguiu adiante no suporte aos novos projetos.) Em segredo, Tritton e Wilson desenvolveram na unidade de Lincoln o protótipo que agora entra em fabricação industrial a pedido de Londres. O oficial Wilson, porém, acredita que o “tanque” ainda pode ser melhorado, e já se dedica ao desenho de um novo modelo. É o Mark I, que, ainda no papel, tem duas configurações, o “macho” (municiado com dois canhões de seis libras nas laterais e quatro metralhadoras) e a “fêmea” (sete metralhadoras). Caso a engenhoca vingue, será a melhor amiga das tropas aliadas, não importando o gênero.
Revista Veja na História

A Reforma na Encruzilhada


Buscando consolidar Igreja Anglicana, Henrique VII dá início ao fechamento
de monastérios e causa revolta entre os católicos, que já prometem reação

Até há poucas semanas, a reforma religiosa que Henrique VIII promove na Inglaterra desde o início da década vinha se caracterizando, em grande medida, por uma queda-de-braço retórica com a Santa Sé pelo poder eclesiástico. Mas agora a coroa resolveu passar das palavras à ação. Legitimado pela aprovação do Ato de Supressão dos Monastérios Menores pelo Parlamento, o rei começa efetivamente o processo de desmantelamento da estrutura católica na Inglaterra – abrindo espaço, por consequência, para a organização e a solidificação de sua recém-fundada Anglicana Ecclesia. Como era de esperar, o rebanho do papa Paulo III desaprova a medida e já começa a se movimentar contra a dissolução das centenárias instituições católicas. Sabe Deus o que vem por aí.

É bem verdade que as rusgas entre Londres e Roma, que começaram com a recusa da Santa Sé em conceder a anulação do casamento entre Henrique VIII e Catarina de Aragão, já haviam provocado terríveis consequências para um numerosos fiéis na Inglaterra. Forçados a escolher entre a submissão real ou papal, clérigos e funcionários da corte, como Sir Thomas More e o bispo John Fisher – estes tomados como inimigos mortais pela rainha Ana Bolena –, foram executados no ano passado porque preferiram jurar lealdade ao sucessor de São Pedro. Mas mesmo com a fundação oficial da Igreja Anglicana, em 1534, pelo Ato de Supremacia que reconheceu Henrique VIII como seu chefe único, as instituições da Igreja Católica na Inglaterra, de uma forma geral, não tiveram seu cotidiano alterado.

Agora, o soberano Tudor, excomungado três anos atrás por ter desobedecido às ordens do papa e se casado ilegalmente com Ana Bolena, saboreia o prato frio de sua vingança. Mosteiros, abadias, conventos e outras casas religiosas menores estão sendo fechados e desapropriados – de acordo com a monarquia, tais casas hoje representam apenas a luxúria e o desapego à moral cristã. Suas riquezas passam a fazer parte do tesouro da coroa, que poderá também vender as propriedades e as terras à nobreza e embolsar o pagamento. A bolada vem em boa hora para o esvaziado baú de Henrique VIII – não são poucos os que acreditam que a medida tem mais a ver com a questão financeira do que propriamente a religiosa.

Mãos de ferro – A expectativa inicial da monarquia é de fechar cerca de duzentas instituições católicas dentro de um ano, o que faria a arrecadação da coroa dobrar nesse período, de acordo com cálculos dos tesoureiros reais. Em um segundo momento, os monastérios maiores também sentirão o fio da espada de Henrique VIII. Não à toa, o chanceler Thomas Cromwell acaba de criar uma nova agência governamental – a Corte das Incorporações – para gerenciar e administrar esse lucrativo processo. A transição, entretanto, não deverá ser tranquila. Já houve resistência no Priorado de Norton, em Cheshire, e na Abadia de Hexham, em Northumberland – os católicos responderam com força bruta às investidas dos comissários do rei.

Em York e Lincolnshire, fiéis a Roma prometem organizar-se para combater a reforma e manter as instituições católicas intocadas – além de sedes religiosas, eles argumentam que os monastérios são pilares da comunidade, e que seu fechamento causará cizânia entre anglicanos e católicos. Para eles, foi o rei Henrique VIII, por ter desafiado Roma e vivido em pecado com Ana Bolena, quem deixou de lado os valores cristãos. Sem paciência para ouvir esse tipo de acusação, o monarca já ordenou a seus comandados que sufoquem com mãos de ferro todo e qualquer foco de reação. Tal decisão é potencialmente inflamável – a história mostra que guerras civis já começaram por muito menos. Agora é a vez da Inglaterra entrar nessa infernal encruzilhada.
Revista Veja na História

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Maria da boa morte


Maria da boa morte

Imagens da morte e ascensão da mãe de Jesus foram um importante instrumento de catequese na Europa e no Brasil
Sabrina Mara Sant’Anna

A dura realidade da morte inquieta a humanidade desde os tempos mais remotos. Ao tomar consciência de sua individualidade e da finitude de sua existência, o homem passou a praticar ritos em honra dos defuntos e a acreditar em uma vida além-túmulo. Esta é uma crença comum a várias tradições religiosas.

De acordo com o cristianismo, a morte não significa aniquilação, pois a alma é imortal. A doutrina católica considera que após o falecimento o corpo “volta ao pó” (decompõe-se) e a alma comparece diante do juízo de Deus para prestar contas e receber sentença irrevogável: salvação ou danação eterna. Os justos vivem para sempre no Paraíso celeste; os salvos que necessitam de purificação passam pelo Purgatório antes de atingirem o Paraíso e os pecadores não arrependidos padecem infinitamente no Inferno.

Desde o período medieval, os sermões, a literatura e as artes visuais advertem que, para alcançar a salvação, os fiéis devem resistir às tentações deste mundo e perseverar na fé até o último instante da vida. E para ajudar na resignação diante da morte, elegeu-se uma figura de forte simbologia: Maria, a mãe de Jesus.

Sua morte é um mistério não esclarecido pelas Sagradas Escrituras. A última referência bíblica à mãe de Cristo está no Novo Testamento: em Atos 1, 14. Este versículo conta que, depois da ascensão de Jesus, sua mãe persevera na oração juntamente com os apóstolos e com outras mulheres. Depois disso, não se sabe seu destino. Essa carência de informações bíblicas sobre o fim da existência terrena de Maria propiciou o surgimento de lendas e narrativas apócrifas – sem reconhecimento eclesiástico –, escritas em diversas línguas a partir da segunda metade do século V.

Aprocrifum de assumptione Virgini (Texto apócrifo da Assunção da Virgem), do século VI, é a versão latina de um texto grego atribuído a São João Evangelista que sustenta que Maria não morreu de doença ou velhice: consumiu-se de amor e ardente desejo de reencontrar seu filho divino. Aos 60 anos, já viúva, deixou este mundo com serenidade espiritual e sem sofrimentos físicos. No exato momento do derradeiro suspiro, sua alma foi recebida pelo próprio Cristo. Maria foi velada e acompanhada até a sepultura pelos discípulos. Três dias depois, honrada com a graça da ressurreição, seu corpo foi levado ao céu por uma corte de anjos.

Narrativas como essa tornaram popular no Ocidente a crença na “Dormição” (falecimento) e na “Assunção” (subida ao Paraíso) corporal da mãe de Jesus. A partir do século XIII, esses dois temas conquistaram cada vez mais devotos e passaram a ser abundantemente representados em fachadas e espaços internos de templos católicos europeus. Contribuíram para isso a circulação da obra literária Legenda Áurea – coletânea de biografias de santos escrita pelo dominicano Jacopo de Varazze entre 1253 e 1270 – e a disseminação incontrolável das epidemias de peste negra pela Europa. Diante da tragédia da morte em larga escala, que apavorava as populações, as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte, protetora dos agonizantes, e de Nossa Senhora da Assunção ensinavam os fiéis a aceitar com resignação a vontade divina e a crer que os justos teriam uma “boa morte”, ou seja, seriam salvos como a mãe de Jesus.

Para se referirem ao falecimento de Maria, os bizantinos utilizavam a palavra grega Koimesis, que significa sono da morte. A Igreja latina, por sua vez, adotou dois termos distintos: Dormitio (Dormição) e Transitus (Trânsito). O primeiro era usado para designar o momento da morte de Maria, considerado um simples sono, pois seu corpo foi poupado da corrupção. O segundo tratava do conjunto morte e assunção.

Na arte oriental, o tema da Koimesis era representado por um só padrão iconográfico: Maria aparece sempre morta, deitada, tendo ao seu lado os apóstolos e uma multidão de adoradores. Em pé atrás do cadáver aparece o Cristo. Esse esquema bizantino é caracterizado pela rígida composição em forma de cruz, cuja linha horizontal é definida pelo corpo de Maria e a vertical por Jesus. É o que se vê nos belos mosaicos da Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Neles, Cristo é acompanhado por anjos e segura a alma de sua mãe – um bebê embalado em manta, símbolo de pureza, inocência e vida. Três discípulos se destacam na cena: Pedro, que balança um incensário à cabeceira da cama mortuária; Paulo, que beija os pés da santa, e João, que respeitosamente recosta sua cabeça sobre o peito da mãe de Jesus.

Essa estética bizantina influenciou a arte sacra do Brasil Colônia, que, no entanto, incorporou outros elementos para a representação da morte de Maria. O altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, em Ouro Preto (MG), mostra Maria vestida de branco e deitada em um nicho que lhe serve de lugar de repouso. Ao fundo, na talha em relevo, dez discípulos assistem ao fim de sua vida terrena – um deles portando um livro de orações e outro segurando a caldeirinha de água benta. Logo acima encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Assunção. O coroamento deste retábulo nos revela um detalhe importante: a alma da mãe de Jesus (busto feminino parcialmente desnudo) sobe ao céu em uma pequena nuvem. A Trindade Divina a espera na eternidade segurando uma coroa, símbolo cristão que indica transcendência e salvação.

O altar combina referências iconográficas do Oriente e do Ocidente cristão: Maria está morta (a alma fora do corpo), como no tradicional modelo bizantino, mas o Cristo não está posicionado em pé atrás do cadáver. Uma peculiaridade daquele altar de Ouro Preto é apresentar três cenas em um mesmo espaço: a “Dormição”, a “Assunção da alma” e a “Assunção corporal”. Outros retábulos mineiros do mesmo período congregam apenas duas etapas do chamado “Trânsito da Virgem”: a parte inferior é destinada à representação do corpo da santa que fica exposto em um esquife, enquanto a superior abriga imagem de Nossa Senhora da Assunção. Este formato, que expõe a morte e a elevação corporal de Maria ao céu, alcançou inclusive os pequenos oratórios, permitindo uma eficiente doutrinação dos fiéis e evangelização dos incrédulos, na medida em que oferecia uma espécie de resumo teológico da promessa do cristianismo: os justos terão vida eterna com Cristo.

A coexistência dos elementos orientais e ocidentais não é uma particularidade mineira ou brasileira: já vinha ocorrendo na Europa desde a Idade Média. A produção artística ocidental divulgou o tradicional modelo da Koimesis bizantina, mas aos poucos ele sofreu adaptações e modificações, ganhando novas formas e movimentos. No Ocidente surgiriam outras versões visuais para a Dormição. Imagens espalhadas por vários países retratam Maria agonizante (antes de a alma deixar o corpo) ou jacente (a alma fora do corpo), deitada em leito mortuário (representação mais comum), morrendo ajoelhada em oração – como no retábulo da Igreja de Nossa Senhora, na cidade polonesa de Cracóvia, feito por Veit Stoss entre 1477 e 1489 – ou falecendo sentada em trono majestático, como no retábulo de autoria do alemão Hans Holbein, o Velho, executado entre 1501 e 1502 para a Igreja dos Dominicanos em Frankfurt am Main, na Alemanha.

No Brasil, a crença na Dormição e na Assunção de Maria chegou junto com os colonizadores portugueses. As primeiras representações surgiram na costa litorânea, avançando progressivamente, junto com a fundação de povoados e vilas, para o interior da colônia. Por meio de sermões e imagens, a devoção à padroeira dos agonizantes foi divulgada primeiramente em Salvador, espalhando-se depois para outras regiões – em especial para Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Goiás.

Em Minas, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte começou no primeiro quartel do século XVIII. A primeira irmandade dedicada à santa estabeleceu-se em 1721 na freguesia de Antônio Dias, em Vila Rica (Ouro Preto); a segunda, em 1730, na freguesia de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira (Cachoeira do Campo), e a terceira, por volta de 1734 na freguesia de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei.

Com o objetivo de ensinar Teologia Moral e formar padres capazes de ajudar a população a “bem morrer”, o bispo D. Frei Manoel da Cruz inaugurou em 1750 o Seminário da Boa Morte em Mariana, estimulando a devoção à Virgem Jacente. Quatro anos depois, iniciou-se uma gradativa proliferação de irmandades com esta invocação. Mesmo nos lugares onde não foram criadas irmandades, havia devoção a Nossa Senhora da Boa Morte. É o que ainda se constata nos templos e museus de Sabará e Caeté, por exemplo, que guardam pinturas e esculturas dormicionistas produzidas nos séculos XVIII e XIX.

E a veneração à Dormição de Maria não ficou restrita aos templos católicos. Oratórios para culto doméstico também eram comuns no período colonial. Algumas associações de devotos mandavam confeccionar pequenas imagens de Nossa Senhora da Boa Morte e levavam para a casa dos doentes impossibilitados de comparecer à missa. Diante desses oratórios, os fiéis rezavam pedindo a cura de suas enfermidades. Em casos extremos, quando a morte não podia ser evitada, a pequena imagem servia para inspirar o devoto a mirar o exemplo da mãe de Jesus e perseverar na fé para alcançar a salvação de sua alma.

Um desses oratórios portáteis ainda pode ser visto na Irmandade de São João Del Rei. A imagem, produzida no século XVIII, é atribuída ao entalhador Valentim Corrêa Paes. Maria está deitada sobre uma cama, usando coroa, vestido branco, manto azul com bordados em dourado e sapatos. A caixinha onde fica é de madeira, com três lados de vidro. O fundo tem pintura de estrelas, fazendo alusão ao céu.

No período colonial, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte desempenharam relevante papel social e religioso. Funcionaram como agentes da caridade cristã, prestando assistência material e espiritual aos devotos, contribuíram para o desenvolvimento do culto dormicionista e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando obras e utilizando os serviços de entalhadores, policromadores, santeiros e músicos.

Exerceram também função pedagógica: por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens, transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma boa morte para os justos.

SABRINA MARA SANT’ANNA é professora do Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas, pesquisadora da C/Arte Projetos Culturais e autora da dissertação de Mestrado “A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras (1721-1822)”, (UFMG, 2006).

Saiba Mais - Bibliografia:

MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie: histoire des traditions anciennes. Paris: Beauchesne, 1995. v. 98. (Collection Théologie Historique).

RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo Testamento. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. Título original: Iconographie de l’Art Chrétien.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição fac-similada.

Benditos apócrifos

A palavra “apócrifo” (do grego apókryphos e do latim apocryphus) significa secreto, oculto. No século IV, após a definição do Cânone da Bíblia, o termo tornou-se pejorativo – ganhando o sentido de falso ou suposto – e passou a designar os textos não incluídos no corpus bíblico, por se tratar de obras sem o reconhecimento eclesial. Apesar de não ser considerada pela Igreja como portadora da “Revelação” (ou “canônica”), a literatura apócrifa tem peso relevante para a história da cultura cristã, pois manifesta crenças, tradições lendárias e anseios populares desde os primeiros tempos do cristianismo.
Revista de História da Biblioteca Nacional

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Mossoró, a cidade que escorraçou Lampião



O fim do cangaço começa a se desenhar depois que, pela primeira vez, Virgulino Ferreira e seu bando perderam uma batalha
Esdras Marchesan

Cinco e meia da tarde daquele 13 de junho de 1927, ouviram-se os últimos disparos. No pátio externo da Capela de São Vicente, um cangaceiro morto é a maior prova da derrota imposta por Mossoró ao rei do cangaço. Era a primeira vez que Lampião saía escorraçado de uma luta. Seu Dionísio Pereira tinha 23 anos quando o bando invadiu a cidade, e lembra bem do pavor que causou. "Era tiro demais", recorda. Mas, a maior lembrança é a do corpo do cangaceiro Colchete estendido na frente da Capela de São Vicente. "Eu cheguei a guardar uma orelha, que foi arrancada pelo tiro, mas não sei onde foi parar", diz.

A resistência mossoroense ao bando de Virgulino Ferreira aconteceu sem apoio da polícia. Quando soube que o cangaceiro queria invadir a cidade, o prefeito Rodolfo Fernandes comprou armas e munições e as entregou a quem quisesse lutar. E foram muitos os voluntários.

No dia 12 de junho, o prefeito recebeu um bilhete assinado pelo coronel Antônio Gurgel, que havia saído de Natal com destino a Mossoró para buscar os parentes e foi seqüestrado pelos cangaceiros. O bilhete era claro: "Caro Rodolfo Fernandes, desde ontem estou aprisionado do grupo de Lampião, o qual está aquartelado aqui bem perto da cidade. Manda, porém, um acordo para não atacar mediante a soma de 400 contos de réis. Penso que, para evitar o pânico, o sacrifício compensa, tanto que ele promete não voltar mais a Mossoró". Ao que o prefeito respondeu: "Antônio Gurgel, não é possível satisfazer-lhe a remessa. (...) Estamos dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem. Nossa situação oferece absoluta confiança e inteira segurança". Era ousadia demais para Lampião, que escreveu, de próprio punho, um bilhete decisivo: "Cel. Rodolfo. Estando Eu até aqui pretendo Dr. já foi um aviso, ahi p o Sinhoris, si por acauso rezolver, mi, a mandar será a importança que aqui nos pede, Eu invito di Entrada ahi porem não vindo essa importança eu entrarei, até ahi penço que adeus querer, eu entro; e vai aver muito estrago por isto si vir o Dr. eu não entro, ahi mas nos resposte logo".

Determinado, o prefeito deu a resposta que seria o estopim para o início da batalha. "Virgulino Lampião, recebi o seu bilhete e respondo-lhe dizendo que não tenho a importância que pede. (...) A cidade acha-se firmemente inabalável na sua defesa, confiando na mesma." Na tarde do dia 13 de junho, começou a chuva de balas entre o povo da terra de Santa Luzia e os cabras de Lampião. Eram pouco mais de 80 cangaceiros contra cerca de 200 mossoroenses. Durante uma hora e meia, a população resistiu às investidas dos cangaceiros. Colchete foi acertado por um tiro que lhe arrancou a cabeça. Jararaca, um dos principais homens de Lampião, saiu ferido no peito e na perna. Lampião e seu bando fugiram. Fim do ataque e começo de uma história que iria se espalhar por todo o Nordeste e marcar o início da queda do rei do cangaço. Segundo alguns historiadores, a derrota foi pressentida por Virgulino ao avistar as torres das igrejas de São Vicente, Alto da Conceição e Matriz de Santa Luzia. "Cidade de mais de uma torre não é pra ser tomada", teria dito antes da invasão.

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA

PONTO TURÍSTICO
Homenagem aos homens que combateram Lampião

No espaço a céu aberto, atrás da Capela de São Vicente, a prefeitura municipal construiu um memorial em homenagem aos homens que lutaram contra o bando do rei do cangaço. Seu Manoel José de Morais ficou surpreso ao ver a fotografia de José Paulino Bezerra, o "Pequeno", agricultor que foi vítima do bando de Lampião. "Esse senhor eu conheci quando era rapaz lá no sertão onde morei. Ele dizia que quando foram invadir sua casa ele botou o dinheiro que tinha no buraco do tijolo. Apanhou um bocado, mas não disse de jeito nenhum onde tava o dinheiro", explicava aos visitantes que observavam a foto de seu "Pequeno". O lugar já está se transformando em ponto turístico.
CHUVA DE BALAS
Numa encenação teatral que envolve mais de 70 atores, cantores e estudantes, os mossoroenses têm a oportunidade de relembrar o feito e sentir orgulho de seus antepassados. O espetáculo Chuva de Balas no País de Mossoró, com texto do escritor potiguar Tarcísio Gurgel, acontece há seis anos no pátio da Capela de São Vicente. Diretores consagrados do teatro nacional como Antônio Abujamra, Marcelo Flecha, Gabriel Vilela e Fernando Bicudo já passaram por lá. Neste ano, a direção ficou a cargo do paraibano Eliézer Rolim. "Gosto muito de teatro, mas acho importante a agilidade que o cinema traz. Por isso decidimos mesclar os dois. Isso faz parte da cultura nordestina e é de suma importância para o entendimento do cangaço no Nordeste", diz.

TRADIÇÃO Artista potiguar interpreta Lampião no palco
O SANTO

Depois de sair ferido do combate e se perder de seu capitão, Jararaca conseguiu se esconder perto de uma ponte no bairro chamado Alto da Conceição. Com ferimentos graves no peito e na perna, ele conseguiu passar a noite no lugar e pela manhã pediu ajuda a um homem. Ele queria sal, água, pimenta malagueta e um talo de mamoeiro, ingredientes que seriam usados na cicatrização dos ferimentos. Assustado, o homem chamou a polícia. O cangaceiro ficou preso quatro dias e depois foi levado numa madrugada até o cemitério, executado e enterrado pelos policiais. A forma como Jararaca foi morto provocou indignação entre mossoroenses e serviu como desculpa para transformar o cangaceiro em "santo". Em Dia de Finados não há túmulo mais decorado e visitado que o do pernambucano e ex-soldado do Exército que deixou a vida militar para ingressar no cangaço.
ROMARIA Em Dia de Finados, o túmulo de Jararaca é o mais visitado
Revista Brasileiros

Crer ou não crer: eis a superstição


Mito, crença religiosa, fantasia popular. Não importa. Na dúvida, é bom fazer figa quando um gato preto cruzar na nossa frente

Stelio Marras*

Não há como ignorá-las. Superstições são antigas, têm história documentada, sobrevivem e revivem, despertam a curiosidade, provocam ironias, interessam a vários domínios de conhecimento. No Brasil, constam no rol da chamada tradição popular, antiga e rústica, temperada no permissivo catolicismo "mole" e "adocicado", como assim denominou Gilberto Freyre, ensaísta da formação social e cultural da colônia portuguesa na América, aí onde as superstições encontraram campo fértil para difusão e criação. Certa porosidade entre tradições africanas, indígenas e européias, certo distanciamento da população em relação aos ritos oficiais da Igreja em tão vasta e dispersa colônia continental formaram o caldo histórico e sociológico que irrigou o imaginário das superstições. Mário de Andrade nelas tropeçou em suas andanças pelos interiores brasileiros. Rendeu-lhes conta, por exemplo, em seu Namoros com a medicina. Mas basta um lance de olhos em Macunaíma para logo flagrarmos um tanto delas ali salpicadas.

Luís da Câmara Cascudo as documentou e sobre elas versou em toda a sua obra dedicada à chamada cultura popular. Folclorista, como então se denominava, Câmara Cascudo dedicou um livro ao assunto: Superstição no Brasil. Em seu Folclore do Brasil, de 1967, por exemplo, Cascudo demora-se em superstições sobre o poder contagiante, purificador e rejuvenescedor da água e dos banhos. Escreve sobre os afamados banho-de-cheiro, banho-do-mato, banho-de-ervas ou as técnicas de ramalhete, todos recursos de defesa mágica, "com feição terapêutica contra a má sorte, reincidência de acasos infelizes, negócios falhados, assuntos de amor impossível, sonhos econômicos", que povoavam e povoam os recantos de um Brasil nem tão antigo assim. De uso generalizado nas festas joaninas, havia arruda, alecrim, manjericão e outra infinidade de ervas aromáticas. Havia os banhos sanjoanenses, de origem portuguesa, preparados contra mau-olhado, azar, moléstias de pele, "porque têm o condão de conservar a felicidade, afastar o caiporismo, destruir o enguiço, ou readquirir os favores da sorte". Essa botânica que se chamaria hoje de popular, mas que foi medicina de uso geral na colônia, também se surpreende nos ritos e festas de candomblé, como em "feituras das filhas-de-santo e mesmo para fixar o santo".

Quanta magia de contágio e simpatia na historiografia sagrada e pagã das águas! Quanta, diríamos, superstição. Não é assim com a água benta ou santa? Antiga era a água lustral que gregos e romanos fumigavam com folhas de louro ou aspergiam em cerimônias de purificação. Pagãs, é verdade, mas serão transformadas na água batismal do cristianismo, utilizada pelo método seja da ablução, da imersão, da aspersão ou da efusão. Águas que purificam. Função que a água-de-oxalá também presta nos candomblés, água que se troca cerimonialmente para purificar o terreiro. Todas as águas que carregam semelhante princípio simpático do contágio, essa ação mágica indutora de efeitos, atraindo ou repulsando propriedades das coisas umas com as outras. Purificam, consagram. Dita o catolicismo popular brasileiro que "cuspir na água é cuspir na cara de Nosso Senhor". A incursão de Mário de Andrade nos assuntos de medicina destacou a recorrência dessa imagem imaculada, pura e sagrada da água:

Em Portugal é pecado urinar n'água, só se livrando da culpa quem diz, ao mesmo tempo: "Morra o diabo, viva o menino Jesus". Na Alemanha, explicam a proibição como delito contra o céu que se espelha nas águas. Ainda no Brasil amazônico, as mães proíbem aos filhos urinar n'água porque o terrível do peixinho candiru sobe por ela e entra na bexiga do mijador. Otoniel Mota, nas Horas Filológicas, provavelmente colhendo a tradição aqui em São Paulo, diz que o povo a explica afirmando que "a água é nossa mãe", e quem nela urina vai pagar no inferno esse desrespeito. É uma tradição linda brasileira a que proíbe defecar a beira-rio, porque jamais nunca as águas se dignarão atingir esse lugar, para sempre abjeto.

Sagrada e terapêutica como a popular água-dormida, aquela que se deixa ao sereno a fim de ganhar mais forças para ser ministrada como remédio no dia seguinte. Mágica e contagiosa como a "água da lavagem da camisa de uma mulher, dada a beber a um rapaz (que o faz) deixar outros amores e apaixonar-se pela dona da camisa", conforme relatos que Câmara Cascudo colheu. Aí a água aparece como substância, diríamos, própria de carrego, uma virtude conservacionista, mas, simetricamente, própria também ao descarrego, porque ela dissolve forças. Por isso os despachos das religiões de origem afro-americana terem a um só tempo suas forças conservadas ou dissolvidas conforme a espécie de rito que se apropria do elemento.

Naqueles banhos com águas mágicas, naquilo que hoje denominaríamos de superstições, podemos ainda ver coincidir medicina, magia e religião. Uma trova popular recolhida por F. A. Pereira da Costa e publicada em 1908 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lembra o "banho na Cruz do Patrão", de encantos e virtudes mágico-religiosas, a que os foliões se apegavam para, associado ao favor do santo, dissolver mazelas e atrair felicidade e boas venturas.

Nessa noite é benta a água
Para tudo tem virtudes.

Em Fora de Portas
Eu vou me lavar,
Se eu cair no fundo
Mandai-me tirar.

Meu São João,
Eu vou me lavar,
E as minhas mazelas
Irei lá deixar.

Oh meu São João,
Eu já me lavei;
E as minhas mazelas
No rio deixei

Narrado e versado, o tema dá testemunho da história da cultura brasileira. Concedamos que as superstições assumem o mesmo estatuto de patrimônio cultural.

Podemos reencontrar imemoriais lendas nórdicas e recuar à Idade Média se seguirmos a genealogia histórica dos azares e infortúnios atraídos pelo número 13 ou pelo gato preto que cruza o caminho. Quem inventou isso de bater na madeira três vezes para isolar e afastar notícias ou pensamentos ruins? E os possíveis infortúnios trazidos pelo guarda-chuva aberto dentro de casa? De onde o mau-agouro de um espelho partido? E quanto às desditas por passar debaixo de uma escada? Desde quando vestir branco na virada do ano para atrair boa sina? Coisa de supersticioso? Por via das dúvidas, mesmo aqueles que se acreditavam incrédulos e céticos acabam com uma taça de champanhe à mão enquanto engrossam o coro da contagem regressiva nos ritos de passagem do ano. Confessos ou não, eles estarão devidamente paramentados com uma roupa de baixo tão alva como a própria esperança. Mas, para além de seus registros históricos, encaremos a pergunta: por que as superstições continuam entre nós, no presente? Que papel jogam no seio da mentalidade moderna, esta que, ao contrário, se brinda com a razão natural e a verdade científica? O que as superstições nos evocam? A que atendem? Exorcizariam algo?

Nós modernos, que cremos bem separar fatos da cultura e fatos da natureza, aceitaríamos de bom grado o valor cultural das superstições. Apoiado na razão e nas ciências naturais, porém, não é preciso muito para que o mesmo moderno logo ironize as pretensões de verdade e razão nas superstições. Não temos razão? Ora, é precisamente de razão que se trata. Nos dicionários, superstição aparece como antípoda da razão. Uma e outra se situam em posições diametralmente opostas. A negação de uma consiste na afirmação da outra.

Causalidade enganosa, agravo às verdades naturais, desvirtuamento do real. As superstições guardam a potência de ofender o saber científico, ilustrado, esclarecido. Terapêuticas supersticiosas, por exemplo, foram historicamente acusadas de charlatãs pela medicina oficial. Feitiçaria, paganismo, charlatanismo, irracionalidade - eis algumas das categorias que acompanham as superstições. Mesmo hoje, mesmo diante do saber científico já devidamente estabelecido na oficialidade, mesmo com todas as terapêuticas contrárias e heréticas já devidamente compartimentadas no cantão da cultura e destituídas do valor de conhecimento sobre a natureza não é impossível que a mentalidade moderna siga acusando nelas alguma espécie de degenerescência psicopatológica, como Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), mania, obsessão. Sem ônus ou constrangimentos, a classificação médica e científica bem poderia enquadrá-las aí.

Por outro lado, é também verdade que a ciência moderna, em seu braço médico e acadêmico, deve conceder o valor de eficácia terapêutica que as superstições podem operar. Nesse caso, dir-se-ia tratar-se de eficácia simbólica, nessa expressão consagrada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, que sugeriu assim compreender a solução de um parto embaraçado que arriscava a vida de uma indígena cuna (população do Panamá) e de seu bebê natalício. A solução consistiu em organizar, através do canto de centenas de versos míticos pelo xamã ou pajé, essa desordem (a um só tempo mental e orgânica) experimentada pela parturiente indígena. A criança finalmente veio à luz.

Não raramente minoritário, esse reconhecimento terapêutico é chancelado pelas ciências da natureza quando estas reconhecem nas superstições benesses aparentadas do efeito sugestão. Benefícios psicossomáticos, diremos. A desordem da doença substituída pela ordem da saúde restabelecida. Desequilíbrios que se curam. Mas, ainda aí, efeito placebo ou sugestão não passaria de subproduto terapêutico que as superstições surtiriam engendrar. Não por acaso aparecem como uma "má razão", conforme jargão tecnocientífico, contra a qual se erguem os laboratórios não por acaso denominados contra-placebo. Como sugestão, placebo ou superstição, trata-se de razões fracas perante as fortes das ciências, estas baseadas num tribunal da razão supostamente imparcial.

Como crença, as superstições refletiriam um fundo religioso, mas não por isso podem pretender escapar das acusações. Bem ao contrário, também aqui sua existência reforça suas forças opostas: as de uma religiosidade depurada de atos mágicos e ritos de simpatia. Se tanto, a religiosidade a que as superstições remetem aparece de certa forma pífia, não compõe sistemas morais, como normalmente presentes nas grandes religiões. Resquícios de sistema religioso, elas ecoariam um indesejável e incômodo fundo pagão e de feitiçaria.

Qual primitivo poder contagioso de um copo de água sobre um televisor a exibir preces e encantamentos? Num contexto contemporâneo de modernidade e ciência, as grandes religiões tradicionais que vingaram no solo histórico do Ocidente já não podem, não sem mais, ratificar oficialmente o ato de abrir, ao acaso, uma página da Bíblia atrás de respostas para aflições. Também aqui as superstições vão se prestar, não raro, a objeto de ironia, como não passassem de bizarras e exóticas sobrevivências de um misticismo difuso, de uma religiosidade mágica que outrora se servia, sem pudor, de semelhantes atos e representações em suas liturgias, ritos e ofícios, mas que agora talvez as prefira deixar esquecidas em seu passado obscuro. Convém mesmo esquecer sua etimologia.

O certo é que invariavelmente topamos com esse conjunto bem articulado de acepções negativas, testemunhas das acusações disparadas pelas forças bem estabelecidas da ciência e da religião. Crença em falsas razões, temores infundados, confusão sobre causalidade, percepções enganosas, fetichismo, fantasia. Face às superstições, ciência e religião dão-se os braços para se oporem ao charlatanismo e ao paganismo que pressupõem nesses sortilégios, nessas que seriam muletas destinadas a exorcizar, como magicamente, o medo e a insegurança. Fonte de irreflexão e imprudência, arcaísmo da natureza, atavismo da cultura, abastardamento da religião - eis a pecha das superstições.

Geneticamente ligadas ao que se convencionou denominar de tradições populares, as superstições marcam o conflito - histórico, sociológico, político, cultural - com os poderes espirituais e temporais que se forjaram negando terapias mágicas e feitiçarias mestiças. Mas um domínio revela o outro, eles se correspondem. A história das superstições é a história das acusações que receberam. Mas, ora, não é como categoria de acusação que as superstições revelam o moderno ele mesmo? Pela negativa, elas nos dão conta de nós mesmos. É que, contrapondo-se à religião oficial, aos métodos racionais de terapia e cura, ao saber das ciências bem firmadas e instituídas, sorrateiramente as superstições denunciam no moderno tudo que nele aparece como dado e universal: tudo que é diametralmente oposto ao absurdo e inverossímil, ao fantasista e irracional. Mas não será que ganharíamos mais se deixássemos, por assim dizer, passar os mistérios e as ambigüidades das superstições?

É certo que, opostamente ao programa fechado das ciências e suas certezas prometidas, nas superstições o acaso e as incertezas insistem em permanecer. Mais: seu programa aberto permite operar com os mesmos elementos para ativar forças ora atrativas ora repulsoras, ora o semelhante causando o semelhante, ora causando seu contrário. Se elas não fossem logo de saída barradas, proibidas ou desdenhadas pelo senso comum da ciência e da modernidade, que maiores efeitos experimentaríamos das rivalidades que as superstições instauram? Decerto que por ameaçar nossos mais cavados fundamentos é que sempre incomodaram tanto.

Ainda que acantonadas no cômodo domínio quase exótico da cultura, mesmo sendo objeto de desconfiança e até zombaria dos modernos quanto à lógica e eficácia de suas poções e mezinhas, além de distorção do verdadeiro espírito religioso, as superstições contudo seguem e insistem. O caso é que, se as ignoramos, junto deixamos no irrefletido todas as condições que, touché, permitem nossas reflexões - racionais e escrupulosas, experimentais e reprodutíveis, científicas e reais. Aí certamente o poder das superstições entre nós modernos. Fundo de resistência à unanimidade e ao consenso, as superstições desestabilizam as evidências e o evidente. Melhor crer nelas. Nem que seja por superstição.

DEFINIÇÕES
Superstição: substantivo feminino
1. Crença ou noção sem base na razão ou no conhecimento, que leva a criar falsas obrigações, a temer coisas inócuas, a depositar confiança em coisas absurdas, sem nenhuma relação racional entre os fatos e as supostas causas a eles associadas; crendice, misticismo.
Ex.: por segurança, vários hotéis nos Estados Unidos não possuem o 13º andar.

2. Crença em presságios e sinais, originada por acontecimentos ou coincidências fortuitas, sem qualquer relação comprovável com os fatos dos quais se acredita sejam prenúncio.

3. religião primitiva, em que se cultuam basicamente espíritos que se crê estarem presentes nas coisas e nas forças da natureza; paganismo, magia, feitiçaria.

4. Derivação por extensão: crença cega, arraigada e exagerada em alguma coisa, alguma regra ou algum princípio, que se adora ou se segue sem questionar. Do latim superstitìo, ónis 'superstição; observação escrupulosa; objeto de terror religioso; culto religioso, veneração; adivinhação, profecia', do v. lat. supersto, as, stìti, státum, áre 'estar sobre ou acima de; estar apoiado ou firmado sobre'.

Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0.5, Agosto de 2002.
Revista Brasileiros

Nazistas na Amazônia

A história dos alemães que desembarcaram no Jari em 1935 para uma confusa e misteriosa expedição científica

Frederico Füllgraf*

Negrito
Entre a foz do Rio Jari, no Amazonas, e sua deslumbrante Cachoeira de Santo Antônio, há uma cruz de madeira, medindo três metros de altura por dois metros de largura, que há alguns anos é explorada como atração turística no Amapá. Debaixo dela jaz o teuto-brasileiro Joseph Greiner, ali sepultado em janeiro de 1936, vitimado pela selva. Feita sacrário, hoje a cruz é protegida por um telhado e encabeçada pelo entalhe de uma suástica - a cruz gamada de origens indo-tibetanas, popularizada como ícone incendiário do nazismo. Lápide improvisada, o necrológio da cruz explica: "Joseph Greiner morreu aqui em 2/1/36, a serviço da pesquisa alemã, vitimado pela febre - Expedição Alemã do Jary, 1935-1937".

Setenta anos de intempérie se encarregaram de esmaecer um dos pouquíssimos marcos de uma insondável aventura na Amazônia.

Meu envolvimento com a história que segue começou em 2003, por meio de uma página encontrada por acaso nas profundezas da internet, intitulada "A rota do nazismo na Amazônia", em referência ao livro sobre uma misteriosa expedição alemã. Minha primeira reação foi a lembrança da teoria da conspiração tramada no livro A crônica de Akakor (Editora Bertrand, 1977) do correspondente da rádio alemã no Brasil, Karl Brugger - assaltado e assassinado no final de 1983 à saída de um restaurante no Leblon, Rio de Janeiro. Nele Brugger ecoava a invencionice contada nos anos 1970 por um falso índio, de uma "expedição nazista à Amazônia", ocorrida no final da 2ª. Guerra Mundial - crônica esdrúxula reciclada em 2007 por Steven Spielberg. Plágio bilionário, o cenário apoteótico de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal é a "cidade perdida" de Akator, supostamente uma "base subterrânea de nazistas na Amazônia". No curso destes anos resisti à publicação do que sabia sobre o Jari para não comprometer um projeto cinematográfico há muito acalentado. Contudo, o episódio atraiu o interesse da revista alemã Der Spiegel, cujo correspondente no Brasil resolveu adiantar-se, publicando o livro Das Guyana-Projekt (O Projeto Guiana). Resisti em lê-lo para não me deixar influenciar, mas a publicidade dada ao assunto na Alemanha justifica, agora, a abertura de uma modesta janela no Brasil.

No inferno das selvas
Num sebo da internet encontrei o tal livro sobre a expedição. Folheando-o, dei-me conta que tinha nas mãos a encomenda errada, porque sua edição era a de 1953. Demorei em entender que são duas as versões sobre a aventura no Amapá: uma oficial, de 1953, e outra, de 1938, nem tanto. Publicado pela Deutscher Verlag em 1938, plena ditadura nazista, o livro original Rätsel der Urwaldhölle" - Mistérios do inferno da selva, que eu adquiri mais tarde, tem 60 fotografias a mais que a versão pós-guerra. Suas ilustrações mais escancaradas são duas suásticas: uma, na cabeça da cruz, e outra, tremulando alegremente na popa de uma canoa, sobre o Jari. Símbolo proibido pela constituição democrática alemã, do pós-guerra, as fotos com as suásticas nazistas foram banidas da edição de 1953.

Capricho germânico, o livro é um diário making of do filme homônimo, estreado e distribuído pela Universum Film AG (UfA) em 1938, depois misteriosamente desaparecido. Em seu lugar, surge na década de 1970 o inofensivo documentário Sobre o cotidiano dos índios da selva amazônica - relatos de uma viagem de pesquisas, 1935 - 1937, distribuído pela WBU, produtora de filmes educativos, fundada na década de 1960 pelo geógrafo dublê de documentarista, Otto Schulz-Kampfhenkel.

O apoio brasileiro
Conta a versão oficial da aventura que em outubro de 1935 desembarcam em Belém do Pará três jovens aviadores alemães, acompanhados de 11 toneladas de bagagem, cuja lista e sofisticação extrapolam abusivamente os limites desta crônica. Risível nota de rodapé é que além do inexplicável arsenal trazido, os alemães não abriram mão do conforto, em plena selva amazônica, de cobertores de pelo de camelo e roupa de cama. Eram eles Gerd Kahle, Gerhard Krause e o líder da expedição, Otto Schulz-Kampfhenkel. Ao contrário da informação, falsa, veiculada pela imprensa internacional, Joseph Greiner, sepultado sob a cruz do Jari, não foi integrante do Esquadrão de Pesquisas Schulz-Kampfhenkel, vindo da Alemanha, mas, provavelmente, contratado no Rio de Janeiro. Explica o líder da expedição: "Neste meio tempo Gerd (Kahle) manda um cabo do Pará, informando que lá não é possível encontrar nenhum 'capataz'. Mas já que eu estou no Rio de Janeiro, tento encontrar algum landsmann (patrício), criado no País e versado em Português. Depois de muito procurar, eis que encontro o sujeito certo: Joseph Greiner, auslandsdeutscher (alemão criado no exterior), jovem marinheiro, empreendedor e confiável, que se soma como quarto integrante ao nosso grupo expedicionário, onde terá a função de mestre-bagageiro, capataz e encarregado das provisões. Contratado, ele embarca no primeiro navio de cabotagem rumo ao norte, no Pará". (Rätsel der Urwaldhölle, Berlim, 1953.)

Antes de receber a permissão para subir o Jari, Schulz-Kampfhenkel gastou mais de dois meses com extenuantes despachos aduaneiros e expedientes burocráticos no Rio de Janeiro. Credenciado pelos mais prestigiados institutos de pesquisa e museus de história natural da Alemanha, Schulz-Kampfhenkel conseguiu facilmente a adesão do Instituto Emilio Goeldi, em Belém, e do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Contudo, o apoio mais importante seria o das Forças Armadas brasileiras, que em 1935 ainda não estavam divididas em facções pró-Alemanha e pró-EUA. Por isso, em Belém, o governador José Carneiro da Gama Malcher e o general Manuel de Cerqueira Daltro Filho prestigiaram o comando alemão com sua visita.

Os alemães retribuíram a gentileza com um teste do hidroavião modelo "Seekadett", burlescamente batizado de "Águia Marinha", especialmente equipado com flutuadores de compensado e instrumentos de navegação, tudo inédito para os embasbacados dignatários brasileiros. Talvez o entusiasmo brasileiro se devesse à expectativa de lucrar com o componente mais importante da missão: o levantamento topográfico da bacia do Jari até suas cabeceiras, mapeamento até então inédito, mas previsto nos mínimos detalhes pelo geógrafo Schulz-Kampfhenkel.

Expedições nazistas
A expedição ao Jari coincidiu com um capítulo insólito da história do nazismo. Chefe de um "Estado dentro do Estado" - o famigerado Departamento Central de Segurança do Reich, subordinado à SS -, o sombrio e esotérico Heinrich Himmler tinha uma obsessão: acreditava na fantástica "civilização de Atlântida", cujos descendentes, "de raça pura", presumiu no Tibet e na América do Sul. Na origem de seu esoterismo estavam "ariósofos" sinistros, antissemitas e também seu fascínio pelas pesquisas do mitologista Otto Rahn, sobre as fabulações do Santo Graal. Reciclando o Santo Graal como mistério pagão para a SS, Himmler inaugurara uma série de expedições para os recônditos do planeta, onde seus homens deveriam encontrar vestígios genéticos da "raça ariana".

Em 1934 Himmler indica o jovem geógrafo Otto Schulz-Kampfhenkel, recém-filiado ao partido nazista NSDAP, como participante da primeira expedição alemã ao Tibet. Otto não embarcou e safou-se de uma tragédia, pois a maioria dos integrantes morreu na Nanga Parbat, depois do Everest, a nona montanha mais alta do mundo. A terceira expedição alemã, ocorrida em 1939, celebrizou-se com o livro Sete anos no Tibet, de Heinrich Harrer, oficial da SS (protagonizado por Brad Pitt, no filme de Jean Jacques Annaud). Outra expedição de Himmler teria como destino a Amazônia, mas ocorreu apenas na imaginação fértil das confrarias esotéricas. Himmler e Schulz-Kampfhenkel voltariam a se encontrar, mas quem patrocinou a expedição ao Jari, como mentor do geógrafo, foi Hermann Göring, aviador durante a Primeira Guerra Mundial na esquadrilha de Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho, logo promovido a ministro da Aeronáutica de Hitler. Muito bem articulado com o complexo industrial-militar e os grandes bancos alemães, Göring já apadrinhara expedições anteriores de Schulz-Kampfhenkel, aviador como ele, e mais uma vez abriu-lhe as portas para a expedição ao Rio Jari.

Berlinense de origem abastada, Schulz-Kampfhenkel estudara geografia e ciências naturais, especializando-se na caça de animais africanos para jardins zoológicos alemães. Mas do que gostava mesmo era de voar. Com sua paixão pela zoologia, em 1934 participou ativamente da "arianização" ocorrida na DGS (Sociedade Alemã de Pesquisas em Mamíferos) - centro de excelência mundial. Como a maioria dos militares alemães, o geógrafo se insurgiu contra o Tratado de Versalhes, imposto aos alemães por sua derrota na Primeira Guerra Mundial, e que, entre outras retaliações, lhes proibia pesquisas científicas no exterior. Schulz-Kampfhenkel não via a hora de violar o tratado com sua expedição ao Jari.

Contra a correnteza
Jari, final de 1935. Apesar da contratação de uns 30 caboclos-mateiros, familiarizados com a selva, foi uma operação tumultuada. Que o Jari era um imenso tapete pedregoso, repleto de cachoeiras, sem superfície de pouso para o hidroavião, era detalhe que os alemães já intuíam, apostando em condições mais apropriadas rio acima.

Enquanto Gerd Kahle, no comando da expedição, desafiava a lei da gravidade, forcejando contra a correnteza, na retaguarda Schulz-Kampfhenkel e Gerhard Krause chocaram os flutuadores do "Águia Marítima" contra toras de árvores submersas, entre Gurupá e Arumanduba, e o hidroavião espatifou-se sobre o Amazonas. Agarrados a um dos flutuadores, a mais de um quilômetro da margem amapaense do Amazonas, os dois alemães estavam sendo arrastados pela maré. Foram salvos por remadores caboclos, que Schulz-Kampfhenkel louva como "heróis da selva". Estava gravemente comprometido o principal objetivo da expedição: o mapeamento aéreo da bacia do Jari.

Barcos sobrecarregados e rio raso demais, o geógrafo determina a instalação de subacampamentos, dividindo sua equipe. O inverno amazônico se aproximava, chovia copiosamente. Explorando um rio, Schulz-Kampfhenkel foi surpreendido por uma súbita enchente, perdendo seu barco com todo o equipamento - câmeras, material de cartografia, armas, provisões e roupa. Durante uma semana errou sozinho pela selva. Foi resgatado e safou-se da morte pela segunda vez.

Em janeiro de 1936 alcançaram a grande aldeia dos índios Aparaí, no médio Jari. O capataz e mestre-bagageiro Joseph Greiner desce novamente o rio, para apanhar as provisões guardadas em Santo Antônio. Mas os índios que o acompanhavam retornaram sozinhos. Krause, o mecânico do avião e operador de som, saiu em seu encalço, mas não conseguiu salvá-lo. Então Krause o sepulta, ergue aquela cruz de madeira e faz os entalhes legíveis até hoje. Depois envia uma mensagem ao comando da expedição, na aldeia Aparaí, informando que, surpreendentemente, o estoque de quinina de Greiner estava intocado. Ele não havia tomado um comprido sequer, obviamente confiando exageradamente na "imunidade" do seu organismo.

No "inferno verde"
Tudo indicava que o lendário Curt Nimuendaju Unkel, alemão que vivia em Belém e era ligado ao Instituto Emilio Goeldi, havia sido convidado para guiar a expedição, e neste caso poderia ter evitado grande parte do descalabro. Mas Schulz-Kampfhenkel menciona com frieza seu encontro com o indigenista conterrâneo, provavelmente porque Nimuendaju desprezava o nazismo. Desde 1910 ele atuava no recém-fundado Serviço de Proteção ao Índio (SPI), mas entraria para a história do cinema como consultor de pelo menos quatro produções cinematográficas na Amazônia.

Aliás, o "inferno verde" parecia dar o troco, cobrar tributos por velhos pecados alemães, jamais expiados. Como o caso dos índios levados em 1820 para a Alemanha pelo naturalista Carl Friedrich Phillip von Martius: três adultos faleceram durante a travessia do Atlântico, e os dois curumins Isabella Miranha e Yuri Comás estão sepultados no Cemitério Sul de Munique. Morreram de frio durante o inverno de 1820 /21. Outra aberração: os crânios dos índios Botocudos, caçados por exploradores alemães, entre eles o príncipe Maximilian zu Wied, para compor o macabro acervo dos darwinistas de plantão - prática absolutamente dentro da etiqueta, pois ninguém menos que D. Pedro II, durante uma visita à Alemanha, tirou da bagagem, de presente, um crânio de silvícola.

Mas eram exatamente esses melindres que atiçavam o frenesi alemão, atraindo mais de 20 produções cinematográficas alemãs à Amazônia, entre 1920 e 1941. Sua maioria explorava a forte demanda por enredos exóticos. Com uma exceção: o longa-metragem de ficção Kautschuk / O inferno verde, inspirado no emblemático episódio do contrabando de 70 mil sementes de seringueira pelo agente britânico Henry Wickham, em 1870. Com um set de mais de 60 pessoas em plena selva amazônica, a produção ocorreu na mesma época em que Schulz-Kampfhenkel se penitenciava no Jari.

Os Aparaí do "Führer"
Era 1936, ano das Olimpíadas em Berlim, Schulz-Kampfhenkel não estava interessado em cultura, apenas em "raça". Insensíveis à religiosidade Aparaí, os alemães abateram e descarnaram uma enorme sucuri, que nadava à flor d'água e não os ameaçava, juntando seu couro ao butim de centenas de peles, crânios, ossos, dentes, plumagens e órgãos conservados em álcool, prometidos aos museus de ciências naturais da Alemanha. Mas não havia ali ciência alguma, o galpão "científico" dos alemães mais se assemelhava a um gigantesco açougue. Apesar disso, o relacionamento com os hospitaleiros Aparaí foi mais do que pacífico: índios e alemães tornaram-se muito bons amigos. Os indígenas naturalmente não entendiam os objetivos do alemão. A sexualidade brotou entre hóspedes e anfitriões. Mas, obviamente, não há nos livros de Schulz-Kampfhenkel qualquer pista de seu envolvimento com a formosa Macarrani, filha do cacique Aocapotu. Assumi-la teria significado admitir a inadmissível fraqueza da carne germânica, "superior", e uma traição da doutrina racial, cujo rosário o alemão desfiava com fervor. Ao despedir-se dos Aparaí em 1937, o alemão deixou para trás uma mulher grávida. Sua filha, nascida entre 1937 e 1938, foi batizada de Cessé, também conhecida por "alemoa": tinha a tez clara e os olhos azuis de seu pai "ariano". Contou-me Cristóvão Lins, ilustre pesquisador e autor da História do Jari, que pouco tempo atrás morreu José Pinheiro, líder dos caboclos de Schulz-Kampfhenkel. Com isso foi-se a última testemunha viva do nascimento de Cessé.

Operação Guiana
Início de 1937, perto da Guiana Francesa. Os alemães não tinham cruzado o Atlântico com toda aquela parafernália para testar bobagens. O que Schulz-Kampfhenkel queria experimentar era a aerofotogrametria, técnica que revolucionou a cartografia moderna. Já com o avião fora de combate, teve de se contentar com suas medições feitas em terra. Apesar de extenuados "seus" índios e caboclos, o alemão insistiu teimosamente em mapear as cabeceiras do Jari, a pouca distância da Guiana Francesa. O mapa da fronteira era a chave de ouro para fechar seu plano da colonização do território francês por grandes contingentes alemães, apoiados numa forte "coluna indígena". Com a invasão da França pela Alemanha, em junho de 1940, o geógrafo não teve dúvidas: submeteu-o a Heinrich Himmler. Recomendou a selva (do Amapá e da Guiana Francesa) como território privilegiado pela natureza, com baixíssima densidade demográfica, excelente para a exploração como "colônia tropical", que "não deveria ficar nas mãos de povos, que, comparados à Alemanha ou à Inglaterra, são inferiores, do ponto de vista racial e civilizatório". Porém, o chefe da SS repeliu a idéia com uma aritmética muito simples: para quê todo o esforço hercúleo, de subir o Jari, se a França estava sendo ocupada e a Guiana Francesa seria "alemã" por tabelinha?

O espião do Saara
No início dos anos 1940 a "operação Guiana" era página virada da história. O "Esquadrão Schulz-Kampfhenkel" - integrado por geólogos, geógrafos, hidrólogos e botânicos, e devidamente incorporado à SS - leva a cabo uma missão especial no norte da África. O grupo deverá produzir mapas para a avaliação de terreno, o que faz com incursões rápidas e mediante a cartografia aérea. É quando o expedicionário do Jari vive seus dias de glória: da cabine de seu avião, Schulz-Kampfhenkel mapeia o relevo do Saara, para determinar as trilhas apropriadas aos pesados blindados do Afrika-Korps do marechal Erwin Rommel.

Chamado de volta à Alemanha e promovido a capitão da SS em maio de 1943, Otto é nomeado "Delegado Especial para Missões Geocientíficas do Conselho de Pesquisas do Reich", executando operações de inteligência geográfica sobre o território da União Soviética. Mas, perdida a guerra, ele foi preso pelas tropas norte-americanas e duramente interrogado pela OSS, precursora da CIA. Com o "desmanche" da Alemanha, os EUA levaram consigo milhares de técnicos e cientistas. E apesar de liberado em 1946, o geógrafo-aviador continuou figurando como "nazista a serviço da inteligência militar norte-americana", na letra "S" do arquivo "Top Secret decimal file, Records of Army General Staff, RG 319, NA", tornado público há poucos anos.

Otto Schulz-Kampfhenkel, o "nazista da Amazônia", terminou seus dias levando a vida que tinha pedido a Deus. Viajando, dirigiu dezenas de documentários educativos e científicos. Conta-me Falko Ahsendorf - diretor de fotografia em várias produções de Otto sobre a África e o Oriente Médio, nas décadas de 1960 e 1970 - que Mistérios do inferno selvagem, o filme sobre a expedição do Jari, estreado em 1938, tornou "próspero" o geógrafo-aviador, morto em 1989, aos 78 anos de idade. Mas de seu pai rico, a índia Cessé Schulz-Kampfhenkel nada sabia. E é onde começa outro filme sobre a aventura, agora contada de trás para frente.

*Frederico Füllgraf é Mestre (MA) em Comunicação Social pela FUB - Universidade Livre de Berlim e ex-aluno da DFFB - Academia Alemã de Cinema e Televisão, também em Berlim. É escritor (A bomba 'pacífica'- o Brasil e outros cenários da corrida nuclear, Brasiliense, 1988), roteirista e diretor de cinema, e desde 1985 atua como produtor associado da ARD (TV Alemã, Canal 1). Selecionado pelo MinC para a edição 2006 do projeto DOC TV, sua produção mais recente é Maack, profeta pé na estrada, estreado pela TV Cultura, em 2007. Seu mais novo projeto é o livro O cinema do inferno verde, atualmente em processo de criação para a editora Record
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