Kenneth Maxwell – A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira. Brasil e Portugal (1750-1808)
Marcos Poggi *
A devassa da devassa, do brazilianista inglês Kenneth Maxwell, não é um livro novo. Pelo contrário. Foi lançado em 1977. E desde então tem sido largamente comentado, discutido e resenhado. Pode-se mesmo dizer que é hoje um clássico da historiografia brasileira. Sendo assim, o que justificaria a resenha de um clássico? A resposta pode estar contida em uma definição de Ítalo Calvino, mencionada pela antropóloga Lilia Schwarcz: “os clássicos são obras que, embora imaginemos conhecer, quando mais lidas e relidas mais se revelam inesperadas, inéditas”. Porque a cada vez que nos debruçamos sobre elas, percebemos novos aspectos e encontramos novas e importantes revelações.
Não caberia repisar aspetos já fartamente comentados da obra de Maxwell, como a questão da cronologia segundo a qual a denúncia de Silvério dos Reis a Barbacena deu-se no dia 15 de março de 1789, um dia depois da carta do governador à Câmara de Vila Rica anunciando a suspensão da derrama, o que demonstra que a medida não decorreu da denúncia. Do mesmo modo, não se justificaria discutir como novidade a hipótese de que Cláudio Manuel da Costa não teria se suicidado, e sim, provavelmente de ter sido assassinado para não implicar pessoas importantes na conspiração.
Tampouco seria o caso de se re-enfatizar o excelente trabalho de pesquisa do autor sobre a situação econômica e política de Portugal em meados do Século XVIII, e a ênfase dada às reformas pombalinas, o conjunto de medidas com o objetivo de tirar Portugal do atraso em que se encontrava em relação às economias mais dinâmicas da Europa.
Então, quais seriam os novos aspectos e revelações a que se poderia fazer menção em uma resenha a esta altura? A resposta pode estar em um aspecto que, pelo menos, o autor destas apreciações não encontrou em nenhuma das diversas resenhas do livro de Maxwell que teve oportunidade de ler. Possivelmente, os efeitos da política de participação de grupos locais na administração governamental na colônia (recomendada pelo Duque Silva-Tarouca), no contexto da tradição patrimonialista dos países ibéricos. Apesar de conhecido e estudado – sobretudo pelos autores da chamada escola weberiana brasileira – o cunho patrimonialista da colonização portuguesa no Brasil, há alguns pontos relevantes revelados por Maxwell em seu livro cujos desdobramentos ainda poderiam ser apreciados à luz das implicações da dominação patrimonial.
Como enfatiza Maxwell “o Estado pombalino, em ambos os lados do Atlântico, envolveu magnatas locais e negociantes em órgãos do governo, com uma deliberação que raiava o desvario”. Comerciantes e homens de negócio foram atraídos para a gestão da Fazenda Real, nomeados para as intendências do ouro, transformados em fiscais da administração dos diamantes. A orientação da Metrópole era de que “as Juntas de Fazenda das capitanias deviam recrutar funcionários entre os abastados locais, especialmente os mais ricos comerciantes que deviam ser estimulados mediante a fixação de soldos e colocar sua perícia comercial a serviço dos negócios públicos”. A administração das casas de fundição ficava a cargo de um intendente e um fiscal, escolhidos entre os proprietários locais mais abastados, que trabalhavam em contato íntimo com os administradores dos contratos de entradas. Formas assemelhadas de cooptação ocorriam, em larga escala, com a organização militar da colônia.
Outra forma de associação do Estado português com particulares dava-se através da arrematação dos contratos reais, que não se limitavam aos monopólios reais do comércio. Abrangiam também o direito de cobrar os dízimos, que fora devolvido pela Igreja em troca de quantias fixas pagas pelo Estado, a cobrança de tarifas portuárias e a arrecadação de tributos. O que se verificou foi a sistemática inadimplência da maior parte – se não da quase totalidade – dos titulares dos contratos no Brasil em geral e na Capitania de Minas em particular, no que tocava a suas obrigações de repasse. Grande parte dos contratantes simplesmente não cumpria suas obrigações de repasse à Fazenda Real. Tal situação resultou na formação de grandes dívidas de agentes privados com o Estado português.
Sem menosprezo aos inúmeros outros interesses e fatores, conexos e desconexos, que contribuíram para criação de um caldo de cultura favorável à inconfidência, a questão das dívidas certamente desempenhou papel relevante de estímulo aos revoltosos.
Segundo Max Weber – citado por Ricardo Velez Rodriguez em Patrimonialismo e a realidade latino-americana – a prática de delegação conferida pelo soberano patrimonial aos senhores territoriais (de que a delegação aos senhores comerciais é uma extensão) abrange a organização militar e a arrecadação de impostos. “E, como o senhor territorial deseja aproveitar para si a capacidade dos súditos (que pode, além da capacidade de prestar serviços, inclui a de pagar tributos), ele reduz, no possível, ou determina a parte que deve corresponder ao soberano patrimonial”. Em outras palavras, diante da distância, fraqueza ou leniência do poder patrimonial maior, essa possibilidade de determinar a parte que cabe ao soberano pode atingir limites críticos.
Em um quadro de redução da atividade aurífera, como a que se verificou em Minas na segunda metade do Século XVIII, agravado pelas tentativas de cobrança de significativos e numerosos débitos pela Fazenda Real, não seria de admirar que parte ponderável dos homens mais influentes da capitania (com grandes dívidas a lhes ameaçarem o patrimônio) passassem a considerar seriamente a possibilidade de ruptura com a Metrópole. Caso essa hipótese não tenha se configurado até janeiro de 1788, é certo de que tal consideração passou a se dar naquele mês, quando do recebimento por Barbacena das meticulosas instruções do Ministro Mello e Castro, apertando o cerco sobre a elite mineira, e classificando de subterfúgio, disfarce, abuso e fraude a alegação de que as minas se achavam exaustas e cansadas.
A suspeita de que a maior parte dos integrantes da elite de Minas estava mais ou menos implicada na conjuração não pode ser considerada absurda. Alguns representantes da elite faziam parte do círculo central da conspiração, outros se mantinham na periferia das discussões, muitos tinham conhecimento do que se passava, e a maioria havia, pelo menos, ouvido falar na conspiração. Maxwell inclusive aventa a hipótese de que o próprio Barbacena tenha sido sondado a respeito do assunto. Esta última possibilidade pode, inclusive, explicar algumas questões amplamente discutidas nas resenhas anteriores sobre A devassa da devassa, tais como a carta de Barbacena na véspera da denúncia de Silvério dos Reis e o trágico destino de Cláudio Manuel da Costa.
Em suma, pela importância e o potencial de suas renovadas revelações, A devassa da devassa é um livro que – tal como outros clássicos que tratam da formação do Brasil – merece ser lido e relido de tempos em tempos.
Kenneth Maxwell (nascido em 1941), historiador britânico, especialista em história ibérica e cuja bibliografia tornou-o um dos principais estudiosos do período colonial brasileiro. Em 1973, publicou Conflitos e Conspirações: Brasil-Portugal; 1750-1808. A primeira edição de A devassa da devassa é de 1977 e, desde então, vem sendo considerada obra de referência fundamental. Sua contribuição para aprofundarmos o conhecimento do mencionado ciclo histórico coroa-se com Marquês de Pombal. Paradoxo do iluminismo (1996). Atualmente é diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Harvard (EE.UU)
Marcos Poggi
Ex-oficial de Marinha (Corpo da Armada), bacharel em Ciências Navais, economista especializado em transportes, estudioso de História e Filosofia, ensaísta e escritor. Co-autor do livro Planejamento e gestão empresarial sob inflação, publicado pela Editora Campus; de dois romances (Equinócio e A senhora da casa do sono) editados pela 7 Letras; e de ensaios e artigos em obras coletivas. Colabora com frequência na imprensa brasileira (principalmente JB, O Globo e Jornal da Tarde)
Revista Liberdade e Cidadania
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