Moshe Lewin – O século soviético
Antonio Paim *
Neste livro, Moshe Lewin sistematiza a crítica que tem desenvolvido contra a nova liderança russa, pós-soviética, na medida em que fomenta a crítica ao passado.
Deixa-o agastado o fato de que, como escreve, obscureça-se a circunstância de que “o sistema soviético salvou a Rússia da desintegração em 1917. Recuperou-a novamente e a Europa com ela após uma dominação nazista que se estendia de Brest a Vladivostok. ... A essas façanhas devemos acrescentar outras, avaliadas pelos critérios do século XX, para definir um país desenvolvido: a Rússia soviética tinha um bom desempenho em demografia, educação, saúde, urbanização e no papel da ciência tão importante, e que seria desperdiçada pelos reformistas dos anos 1990”. (tradução indicada, pág. 452)
No Rússia atual sobrevive o Partido Comunista (denominado da Federação Russa), que dispõe de representação na Duma (Câmara Baixa do Parlamento). Ocorrem manifestações inclusive em favor da reabilitação de Stalin. Tudo isto faz parte da tentativa (em curso) de erigir, no velho império russo, as instituições do sistema democrático representativo que, na Europa Ocidental e em outras partes do mundo comprovaram ser a mais adequada (e civilizada) forma de convivência social. Assim, o fato de que o prof. Lewin assuma a defesa daqueles saudosistas faz parte do jogo.
O aspecto que vamos considerar diz respeito à distorção de circunstâncias históricas amplamente documentadas, como se estivéssemos ainda na União Soviética onde o acesso a essas fontes era rigorosamente proibido e vigiado. Vale dizer: os argumentos que invoca são tão estapafúrdios que até parece não se dar conta do ambiente cultural em que atua.
A primeira tese de Lewin consiste na afirmativa de que o bolchevismo era democrático, merecendo essa qualificação seu criador e líder, Lenine. A segunda: não havia alternativa na Rússia de 1917 senão tomar o poder pela força. A terceira: a Nova Política Econômica (NEP) mostra que Lenine tinha um projeto de desenvolvimento econômico que prescindia, como afirma, “das execuções sumárias” (pelo menos traduz implicitamente o reconhecimento de sua precedente existência). A quarta: a liquidação do Partido e sua transformação num aparelho burocrático seria obra de Stalin. Por fim, no período subseqüente, gasta páginas e páginas para demonstrar que a burocracia pós-stalinista estava ciente dos defeitos do sistema e tratava de corrigi-los.
No que respeita ao pensamento de Lenine acerca do Estado Liberal de Direito, Moshe Lewin faz de conta que não escreveu O Estado e a Revolução (1917), livro no qual cuida de demonstrar que o Parlamento é uma farsa, a liberdade de imprensa um engodo e mesmo os sindicatos operários estariam a serviço do sistema dominante. Na obra indicada, escreve: “Olhai para qualquer país parlamentar, da América à Suíça, da França à Noruega, etc., o verdadeiro trabalho de Estado faz-se nos bastidores, é executado pelos departamentos, pelas chancelarias, pelos estados-maiores. Nos parlamentos apenas se palra, com a finalidade específica de enganar a gente simples.” Preconiza o estabelecimento da ditadura do proletariado que, como se viu, tratava-se na verdade de ditadura do Partido Comunista e daquele que consegue empolgar a sua chefia.
Quanto à tese de que, na Rússia de 17 não havia alternativa senão uma saída violenta, omite as eleições para a Assembléia Constituinte. Realizaram-se quando os bolcheviques já haviam tomado o poder. Compareceram 36,3 milhões de eleitores. O grande vitorioso seria o Partido Social Revolucionário,que representava a massa camponesa. Obteve 58% dos votos, ficando os comunistas com 25% e os liberais (Partido Constitucional Democrata, conhecido com Kadiete, em decorrência da sigla em russo) com 13%. Esse resultado demonstra que parcela expressiva da opinião pública apostava no reordenamento de índole democrático. A título ilustrativo indique-se que Lenine não conseguiu impedir que a Assembléia se instalasse em janeiro de 1918. Nesta, o ambiente lhe era tão hostil que lhe foi negada a palavra como chefe do governo, tendo de fazê-lo como líder dos bolcheviques. O PSR conseguiu que ali fosse votada a reforma agrária. Lenine comprometeu-se a respeitar a redivisão da terra que viesse a ser efetivada, em troca da anuência dos sociais revolucionários em não opor resistência à dissolução da Assembléia, levada à cabo no próprio mês de janeiro de 1918.
A história da Nova Política Econômica, decretada em 1921, também está muito mal contada, no livro considerado.
Nas cidades, o governo leninista ocupou todas as indústrias e serviços, eliminando de vez a presença da iniciativa privada. O problema remanescente consistia no meio rural, que abrigava a esmagadora maioria da população. Tenha-se presente que a Rússia era, na época, grande produtora de cereais, de que dependia, em grande medida, a Europa Ocidental. Keynes focaliza diretamente essa questão no livro Conseqüências econômicas da paz (1919).
Tendo presente a falta de apoio no campo, Lenine decretou o que chamou de “comunismo de guerra”. Autorizava o governo a confiscar excedentes agrícolas, no caso de que os camponeses não o fizessem voluntariamente. A resistência à medida se fez presente desde a primavera/verão de 1918. Lenine imaginou que reprimindo violentamente essas manifestações obrigaria o campesinato a capitular.
Valendo-se da abertura de diversos arquivos do regime soviético, no livro Lênin: a Biography (Harvard University Press, 2001), Robert Service transcreve o seguinte memorando encaminhado pelo chefe do governo à Tcheca (polícia política, mais recentemente batizada de KGB), no início daqueles conflitos, isto é, meados de 1918:
“Camaradas! A insurreição em cinco distritos camponeses (kulaks, no texto) precisa ser implacavelmente esmagada... 1)Enforquem (e estejam seguros de que o enforcamento terá lugar às vistas de todo o povo) não menos que uma centena de conhecidos kulaks, pessoas ricas, especuladores; 2)Publiquem seus nomes; 3)Confisquem toda a sua produção; 4) Façam reféns ... Alardeiem tudo isto de modo que, centenas de quilômetros em torno, o povo possa ver, inteirar-se e tremer, gritando: eles estão estrangulando e irão estrangular até à morte os kulaks especuladores.”
O terror no campo, desencadeado por Lenine, teve efeito justamente contrário. Os soviéts de soldados, controlados pelos sociais revolucionários, não haviam entregue as armas de que estavam de posse. A resistência camponesa transformou-se na guerra civil, que durou cerca de dois anos. O Exército Vermelho chegou a lutar numa frente e 1.800 km no Norte e mais ou menos a mesma extensão no Sul.
No documento intitulado Discurso sobre o engano do povo com as palavras de ordem de liberdade e igualdade de 1919, que corresponde a um violento ataque dirigido aos sociais revolucionários, mas passou a ser considerado como expressivo do pensamento de Lenine, o chefe do governo soviético diz claramente que o desejo dos sociais revolucionários consiste no estabelecimento gradual e depois mais amplo “do comércio livre dos produtos alimentícios e à garantia da propriedade privada.” Lenine sequer a discute, limitando-se a afirmar: “Eu digo que isso é o programa econômico, a base econômica de Koltchak”.
Alexander Vassilievitch Koltchak (1874/1920), almirante da marinha imperial russa, tornou-se um dos chefes militares da revolta iniciada pelos sociais revolucionários, transformada na guerra civil. Embora diversos outros oficiais do czarismo tivessem feito idêntica opção, Lenine sempre desferiu seus ataques a Koltchak.
Pois bem, a novidade contida na Nova Política Econômica reside precisamente na criação de mercado livre, nas cidades, para a comercialização de excedentes agrícolas, prática que sobreviveria ao longo do regime soviético, mesmo depois da coletivização. A circunstância parece demonstrar que, sem embargo de que Trotski haja transformado o Exército Vermelho numa força militar digna do nome, a NEP não deixa de ser uma comprovação de que os camponeses venceram a guerra civil. Sem embargo das diversas derrotas militares parciais, a resistência só cessou totalmente quando suas reivindicações foram atendidas.
O livro de Lewin é parte da orquestração destinada a fazer crer que o totalitarismo soviético não provem do leninismo mas do estalinismo. Aceita essa premissa cabe esquecer O Estado e a Revolução e, mais que isto, nem de longe dar-se ao trabalho de verificar a origem de suas teses. Embora seja muito fácil localiza-las na Crítica ao programa de Gotha (1875), de Karl Marx.
Mosche Lewin
Mosche Lewin (nascido em 1921), polonês de nascimento e cidadão soviético, foi oficial do Exército Vermelho. De origem judaica, emigrou para o recém criado Estado de Israel. Ingressou na Universidade de Tel Aviv, onde concluiu o mestrado. Doutorou-se pela Sorbone, seguindo carreira universitária na França, tendo igualmente ensinado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Começa a escrever sobre a Rússia em 1968. Surpreendido com o colapso da União Soviética, tem se revelado ativo opositor da nova liderança, a começar de Yelstin.
Revista Liberdade e Cidadania
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