quinta-feira, 20 de março de 2014

Marcha rumo à catástrofe

No dia 22 de junho de 1941, três milhões de soldados alemães invadem a União Soviética. A investida, há 70 anos, durou meses e fez mais vítimas do que qualquer outra, constituindo um ponto de inflexão na História mundial. Após alguns sucessos iniciais, as forças alemãs fracassam , devido à paranoica megalomania de Hitler e à mais abnegada resistência da União Soviética
Por Till Hein e Jonathan Stock

1941 - O ano fatídico (I)
A campanha militar de Hitler na Rússia

A fumaça de uma casa de fazenda em chamas escurece o céu perto de Charkow, no nordeste da Ucrânia. Aparentemente irrefreável, e de início com uma velocidade espantosa, a máquina militar alemã avança rumo ao leste




No dia 22 de junho de 1941, quando tem início o ataque à União Soviética, Fritz Farnbacher, oficial da 4ª Divisão de Panzers (blindados), escreve em seu diário que a maioria de seus camaradas se alegraria "imensamente se finalmente houvesse combates e muito barulho de novo". E que ele está feliz por poder trocar "as atividades muitas vezes enfadonhas do serviço cotidiano" por "uma guerra de verdade".

Nem meio ano depois, ele a chamará de "a mais desgraçada de todas as guerras".

Farnbacher é um dos mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas alemãs, que invadem o maior país do planeta. A ofensiva fará mais vítimas do que qualquer outra da História: cerca de 27 milhões de soviéticos morrem em consequência da invasão de seu território; entre eles, quase 18 milhões de civis, aproximadamente 30% de todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial. E durante esse avanço dos alemães, um número ainda maior de órfãos, viúvas e feridos fica para trás, nas mais de 1.700 cidades destruídas pelos bombardeios e nas 70.000 aldeias queimadas da União Soviética.

Trata-se de uma guerra que difere de todas as outras campanhas militares da Modernidade, pois não consiste apenas em um esforço de conquista, mas também numa incursão destrutiva contra porções enormes da população. Uma guerra planejada para ser exatamente assim.

NO DIA 30 DE MARÇO DE 1941
, Hitler explica durante 2 horas e meia, a cerca de 100 de seus generais mais graduados, na nova Chancelaria do Reich, em Berlim, a "luta entre duas visões de mundo", na qual o "bolchevismo" precisa ser destruído.

A "condução da guerra contra a Rússia" deve ser diferente do esquema adotado até então. Nas campanhas militares até aquele momento a justiça para com todos os "criminosos" nos territórios ocupados teria sido "humana demais".

Não se escuta nenhum protesto do alto comando do Exército. Rotineiramente, as explanações do Führer são traduzidas em ordens; diversos esboços operacionais são elaborados e avaliados de diversos ângulos. E então a direção da Wehrmacht emite duas ordens que custarão a vida a centenas de milhares de pessoas.

A primeira permite "liquidar sem dó" os francoatiradores, em vez de levá-los a um tribunal de guerra, como até então fora feito. No caso de a identificação dos atacantes inimigos se revelar impossível, devem ser tomadas "medidas de violência coletiva" contra cidades e vilarejos. Uma simples suspeita bastará para que sejam destruídas aldeias inteiras. Inversamente, crimes de guerra alemães serão tratados com benevolência, sem punições. Uma única exceção será feita: nos episódios de estupros e de pilhagens descontroladas.

A outra decisão se volta contra os comissários políticos soviéticos, aqueles funcionários comunistas destacados para acompanhar toda a unidade do Exército Vermelho e controlar seus integrantes. De acordo com as instruções para o ataque à União Soviética, eles não deverão ser tratados como prisioneiros de guerra, mas sumariamente fuzilados.

A ordem também rompe com a tradição de respeito pelo inimigo, que manda tratar prisioneiros com justiça. Alguns generais suspeitam que, difundida no campo de batalha, essa orientação aumentará a resistência de soldados inimigos. Mesmo assim, o corpo de oficiais expressa admiração por Hitler. Um tenente-general diz aos seus comandantes: "Na antiga Alemanha, uma ordem dessas teria sido impossível, porque ninguém teria tido a coragem de emiti-la".

As garras do Chanceler se estendem em direção aos celeiros, campos de petróleo e fundições de armas da União Soviética. Esta guerra deverá permitir à Alemanha criar um império que se estenderá do Atlântico aos Montes Urais e, com isso, garantir-lhe supremacia absoluta no mundo.

Somente uma sombra de dúvida, uma fugaz incerteza, acomete o líder do ataque, antes que soe a hora para o avanço das tropas. Em um círculo íntimo, Hitler admite: "Tenho a sensação de estar escancarando uma porta para um lugar escuro, nunca antes visto, sem saber o que se oculta atrás dele".

NO DIA 22 DE JUNHO DE 1941, às 03h15min, começa a ofensiva. A frente se estende por uma linha de quase 1.000km, do Mar Báltico até os Montes Cárpatos (10 dias depois, tropas romenas e alemãs atacarão a União Soviética partindo da Romênia, e assim ampliarão a frente para 1.500km). Nas florestas da Prússia Oriental e da Polônia, centenas de milhares de soldados se esconderam a apenas poucos quilômetros das tropas fronteiriças soviéticas, o plano prevê um ataque surpresa e os guardas da fronteira de fato não desconfiam de nada.


A Wehrmacht quer decidir sua "campanha militar russa" rapidamente, com 3.600 tanques. Mas em muitos lugares o avanço ocorre em estradas de chão batido. A areia penetra nos motores e resulta em mais avarias que acertos contra o adversário. Além disso, faltam mapas; as tropas avançadas são obrigadas a pedir orientações a camponeses, como na foto à direita, parte de um conjunto de coleções particulares descobertas várias décadas após o fim da guerra

Poucas horas antes de o avanço ter início, os alemães retiram a camuflagem de seus veículos, arrastam canhões para fora de seus esconderijos e os posicionam para funcionar. E então, bem mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht cruzam a fronteira, acompanhados por 3.600 Panzers (blindados), 2.700 aviões e mais de 750.000 cavalos atrelados a canhões, veículos de abastecimento e ambulâncias. A maior força militar de ataque que jamais existiu.


ELA ESTÁ ORGANIZADA em três grandes exércitos: o Exército Norte deve atravessar a região do Báltico e avançar sobre Leningrado; o Exército Sul tem por função ocupar a Ucrânia; e o Exército do Meio está encarregado de tomar as cidades de Minsk e Smolensk, para em seguida conquistar Moscou.

Essas três formações estão compostas por 153 Divisões; unidades tão numerosas quanto pequenas cidades, ramificados em uma malha de regimentos, batalhões e companhias, cada qual com seus próprios cavalariços, padeiros, açougueiros e um serviço de correio de campanha.


A 4ª DIVISÃO DE PANZERS de Fritz Farnbacher luta como parte do Exército do Meio; sua tarefa é altamente arriscada. Com seus tanques eles devem romper o mais rápido possível a frente do Exército Vermelho, para cercar o inimigo.

A velocidade é decisiva, insistem seus comandantes incessantemente. Até o final de setembro essa campanha militar tem de ser vencida; para evitar que ela se estenda pelo período das chuvas, que enlameiam as estradas russas durante semanas a fio.

"Não existem paradas; pausas, só para reabastecer", escreve Farnbacher em seu diário. "As refeições são feitas durante a viagem, ou durante os breves intervalos de abastecimento. Só existe uma meta, um destino: Moscou!".

Mil e quarenta quilômetros os separam da capital soviética. Mas 3 semanas depois, serão somente 350km. Já nas primeiras horas do confronto a Wehrmacht conquista quase todas as posições soviéticas nas regiões de fronteira, onde estão estacionados quase 3 milhões de soldados do Exército Vermelho, além de mais de 10.000 tanques e 8.000 aviões de guerra. Mas ninguém alertou as tropas; para elas, o ataque é uma surpresa total, o ditador soviético Josef Stalin havia proibido seus generais de preparar uma defesa eficaz. Ele ignorara os inúmeros indícios de uma movimentação de tropas alemãs, e a possibilidade de um ataque iminente, tomando-os como uma campanha intencional de desinformação.

A metrópole de Brest-Litovsk, localizada diretamente atrás da fronteira soviética, é conquistada em poucos dias. Aqui são principalmente crianças, mães e avós que se rendem às tropas


As fotos coloridas apresentadas nessas páginas foram consideradas perdidas durante muito tempo. Elas se originam dos pertences de três soldados, e documentam o cotidiano da guerra atrás do front

Em visita aos territórios conquistados, o chefe da polícia alemã Heinrich Himmler encontra camponesas locais. Como comandante da SS (sigla de Schutzstaffel, algo como 'Tropa de Proteção') e chefe da polícia, ele é uma das lideranças da guerra contra a guerrilha. É ele também quem se encarrega da germanização dos territórios ocupados, faxina étnica que objetiva o extermínio e a expulsão da população nativa, particularmente dos judeus

Além disso, o Exército Vermelho está muito mal equipado; às vezes, 5 soldados compartilham o mesmo fuzil. Em outras unidades há tão poucas pás que os homens usam seus capacetes de aço para cavar trincheiras.

Seus superiores são também inexperientes. No final da década de 1930, Stalin havia mandado prender ou fuzilar mais de 80% dos oficiais mais graduados como supostos "delatores e inimigos do Estado". Três quartos dos atuais comandantes não estão nem há um ano em seus respectivos cargos.

Acompanhados em terra pelos corpos blindados e pela Infantaria, os bombardeiros Stuka (derivado da palavra alemã Sturzkampfbomber, avião bombardeiro de mergulho) também penetram profundamente em território soviético, realizando ataques a aeroportos, depósitos do exército e entroncamentos ferroviários. Somente nas primeiras horas, bombas alemãs destroem mais de 60 pistas de pouso da Força Aérea soviética. Milhares de aviões explodem em chamas ainda no solo.

As tropas da Wehrmacht são seguidas por quatro grupos de "comandos de operações", cada qual com até 1.000 homens, que vasculham os territórios já conquistados. Esses grupos são constituídos principalmente por unidades da Polícia e membros dos serviços de segurança. Todos estão subordinados à SS, Schutzstaffel (tropa de proteção, em português), a temida organização paramilitar do Partido Nazista de Adolf Hitler. Sua tarefa: "liquidar elementos hostis". Uma terminologia que quer dizer: o assassinato sistemático dos funcionários comunistas e da população judaica.


LABAREDAS ARDEM na noite do dia 27 de junho de 1941 na sinagoga de Bialystok, cidade na Polônia ocupada pelos soviéticos, 300km a oeste de Minsk. Pouco antes, homens do 309º Batalhão da Polícia, que entrara em Bialystok juntamente com uma Divisão de Segurança, haviam trancafiado centenas de judeus no edifício e ateado fogo nele. Em pouco tempo as chamas saltaram para as casas vizinhas na praça do mercado. Mais homens, mulheres e crianças morrem calcinados, sufocam na fumaça ou são mortos a tiros pela polícia durante a fuga. Ao todo, mais de 2.000 pessoas perdem a vida.

No dia seguinte, o tenente-general Johann Pflugbeil, 58 anos, um veterano da 1ª Guerra, originário da Saxônia, elogia todos os participantes do ataque à sinagoga por seu empenho. No diário de guerra, ele justifica a ação alegando que francoatiradores soviéticos tinham se escondido no prédio. Isso é mentira, mas depois do decreto referente a julgamentos criminais de guerra aplicável à campanha na União Soviética, seus homens estão isentos de punições.

A tarefa das divisões de segurança não são os combates no front. Em vez disso, eles devem proteger pontos de apoio de abastecimento, aeroportos e pistas de pouso no interior do país, além de vigiar prisioneiros de guerra e combater os partisans, guerrilheiros do movimento de resistência aos alemães. A maioria dos homens da 221a Divisão de Segurança de Pflugbeil têm mais de 35 anos, e, com essa idade, já não servem mais para o esforço na frente de batalha. A alguns deles foi dito, ainda em casa, que eles estavam sendo convocados "apenas para tarefas de vigilância".

Após a conquista de cidades e vilarejos pela Wehrmacht, os homens de Pflugbeil obrigam os habitantes judeus a usar retalhos amarelos de identificação em suas roupas. Eles os detêm em campos, organizam contingentes de trabalhos forçados ou, simplesmente, os fuzilam como pretensos guerrilheiros (partisans).

A ESTRATÉGIA DOS ataques surpresa na frente Ocidental parece funcionar: no fim de junho, o Exército Central cerca 20 divisões do inimigo. Até o dia 9 de julho as tropas alemãs fazem 325.000 prisioneiros de guerra, e capturam, ou destroem, 3.300 tanques. Em rápidas duas semanas, a liderança alemã já se vê bem próxima da vitória.

No dia 3 de julho, Stalin, que até então havia silenciado, conclama seus cidadãos através de um discurso pelo rádio, para "a grande guerra em defesa da Pátria". Em toda parte, seu povo deve se sublevar, inclusive atrás das linhas alemãs, em uma guerrilha, uma luta de partisans. Os alemães entendem a parte da mensagem dirigida a eles: os cidadãos soviéticos defenderão sua terra natal com todos os meios possíveis, nessas condições, os agressores não podem contar com o respeito aos direitos dos povos. Hitler não se importa: "A guerra de guerrilha", explica ele em uma reunião, "nos oferece a possibilidade de exterminar tudo o que se opuser a nós".
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 Revista GEO

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