Viriato Padilha
Estamos em uma aldeia de índios batizados, situada à margem do rio Tieté.
Administra-a o venerando jesuíta, padre Domingos Salazar, homem dos seus cinqüenta anos, e que há vinte se ocupa na árdua missão da catequese, segregado da sociedade civilizada e do convívio dos seus irmãos da Ordem.
O sol começa a afundar-se por detrás das serranias azuis que se empinam ao longe; chilram cigarras no arvoredo de folhagem amarelada pela canícula; e a caboclada, que já terminou nesse dia os trabalhos a que a obriga o severo jesuíta, estira-se nas redes de tucum, a bocejar, enlanquecida pelo fortíssimo calor do dia.
O padre Domingos Salazar, com as mãos cruzadas sobre o peito magro, de fisionomia carrancuda, a remoer no cérebro um pensamento que, pelas rugas fundas da fronte, parece aflitivo, passeia vagarosamente na frente do seu ranchinho, um pouco afastado dos da tribo, e de vez em quando levanta os olhos para o céu onde leves nuvens se esgarçam, varridas por brisas altíssimas.
Já há um mês que não chove: o milho plantado pelos bugres está torcendo as folhas e secando o pendão, antes que o pólen se tenha derramado sobre a boneca e gerado o fruto; vão escasseando as águas correntes e as dos charcos começam a apodrecer, exalando emanações pestilenciais.
O padre Domingos Salazar sente-se incomodado com a prolongação da seca; o calor tornou-se insuportável; a colheita do milho e da mandioca está irremediavelmente perdida, e, o que é mais grave, anuncia-se a invasão de uma epidemia qualquer no aldeamento.
Já dois meninos, que andavam no brejo a pescar traíras, caíram com febres de mau caráter; já vagam bugres pelo mato, colhendo a casca do pau-pereira para rebater as malignas.
Indubitavelmente as coisas iam mal, e o padre Domingos Salazar sentia-se embaraçado sobre o modo de resolver a crise com que se achava a braços.
A aldeia distava cerca de trinta léguas do primeiro povoado colonial. Não havia remédios para debelar o mal, se irrompesse, e, além disso, a caboclada era refratária, por índole e natureza, a qualquer prescrição higiênica.
– João tá com febe, – disse de repente uma cabocla que surgira no oitão da cerca, agravando assim, com anúncio tão desagradável, o desassossego do jesuíta.
A cabocla trazia ao colo um menino de quatro para cinco anos, que tinha os olhos quebrados e a pele afogueada por intensa febre.
– Com certeza deixaste que se metesse com os outros pelos brejos. Agora aí o tens com uma maligna, talvez, – observou o padre Domingos Salazar em tom aborrecido e tomando o pulso ao doentinho. "Está ardendo em febre... É isso, não fazeis caso do que digo!... "
Diversos caboclos aproximaram-se para ver a criança enferma, e o padre Salazar, entrando no seu ranchinho, de lá trouxe um cobertor de lã.
– Agasalha o menino com este cobertor e.deita-o na rede. Ao mesmo tempo faze coser estas ervas em pouca água e logo que estiverem fervendo, tira a panela do fogo e vem dizer-me.
E voltando-se para os seus administrados que o rodeavam nesse momento, exclamou em tom imperativo:
– Previnam às mulheres que enquanto não chover não consintam que a criançada se meta pelos brejais. Há muitos dias que não chove, têm morrido peixes e caranguejos em grande quantidade, e com esta soalheira apodrecem e desprendem vapores que envenenam as criaturas.
Os caboclos ouviram em silêncio, habituados como se achavam a obedecer em tudo ao austero discípulo de Loiola. Um deles, porém, já velho e que era o cacique do bando aldeia do, abanou a cabeça, como que duvidando que a causa da enfermidade que começava a declarar-se entre os seus fossem as emanações pútridas dos charcos, e disse:
– Peste vem do brejo?! Hum! Pode ser, mas não tenho fé. – E voltando-se para os caboclos: – Não se lembram daquele tupinambá que passou por aqui na lua-nova?
– Que tem o tupinambá com as febres? – interrompeu o padre Salazar contrariado.
– Desconfio que ele andava passeando a peste. Não te lembras, padre, como ele caminhava tão vergado para o chão, sendo no entanto ainda moço? E parecia tão triste, tão cansado! Andava com certeza passeando a peste. Infelizes de nós!
Todos os caboclos aprovaram o que dissera o maioral, e o padre Salazar, que percebeu naquelas palavras a revelação de uma lenda religiosa ou de um mito, mordido pela curiosidade, abancou-se em um toro de madeira que havia no terreiro, e pediu ao índio velho que lhe contasse por que forma a peste passeava.
Então, o índio, sentando-se ao lado do padre, ao passo que os outros, interessados na audição da lenda, se acocoravam no chão, contou em tom pausado e grave a seguinte história:
* * *
Era no tempo dos cajus maduros, e todo o povo dos guaianases andava na colheita dos frutos, para com eles preparar o cajuí, a excelente bebida com a qual se embriagaria no poracé, a grande festa sagrada da nação.
Isto deu-se antes que os portugueses chegassem aqui pela primeira vez, e muitas gerações já se passaram depois que tal aconteceu.
Um homem daquele povo (Irerê-una se chamava ele), saiu uma manhã para colher caju, e tendo já enchido um grande panacu, como o sol estava muito quente, e ele se sentia um tanto cansado, deitou-se à sombra da árvore e adormeceu profundamente.
Todos se recolheram às suas casas, e Irerê-una lá ficou, dormindo a sono solto debaixo do cajueiro.
Quando despertou já o sol se ia sumindo atrás das serras e Irerê-una admirou-se de ter dormido tanto.
Logo levantou-se, e preparava-se para lançar o panacu às costas, quando uma visão estranha o fez pasmar, e por tal forma o assustou que lhe tirou os movimentos.
É que lá ao longe, por entre os últimos cajueiros da praia, assomava uma mulher muito alta e de singular aspecto e feições, envolta em longo sudário branco, que, com o andar e com a aragem vinda do mar, se agitava brandamente. Os cabelos em alvoroço lhe escapavam por baixo do sudário. A fisionomia era esquálida e severa. Os braços longos e ressequidos tinha-os ela cruzados sobre o seio no qual não se viam as eminências dos peitos. A pele de seu rosto era avermelhada, sanguínea e pintalgada de manchas negras e roxas, de um roxo de gangrena. Os olhos eram fundos, sumidos nas profundidades do rosto e despediam um lampejo constante, fino como a lâmina de uma faca.
A mulher ia cada vez se aproximando mais, e já estava perto... Irerê-una teve medo, muito mêdo, e voltando as costas ao medonho fantasma, tentou fugir...
Não o pôde, no entanto: a mulher-fantasma estendeu um braço muito longo, sem fim, e pousou a mão sobre o seu ombro, fazendo o infeliz deter-se.
Irerê-una soltou um grito de pavor, e caiu de joelhos, a tremer-lhe o corpo todo. O contato da mão da mulher estranha causara-lhe o efeito de uma cobra que se lhe enroscasse ao pescoço.
– Sabes quem sou? – perguntou a medonha aparição.
– Bem te conheço, és a peste! – respondeu Irerê-una, quase a sucumbir de medo e horror. – Poupa-me, deixa-me viver!
– Sim, sou a peste! – confirmou o fantasma.
– Andava à procura de um homem! Tu me apareceste, tanto melhor! Chegou o tempo de dar o meu passeio por entre os vivos, e assim desci do céu num raio de lua cheia. Escolhi-te; vais servir-me de montaria; desde já trepo em teus ombros, e tu me conduzirás a todas as nações desta terra, a todas as tabas, a todas as ocas. Vou fazer a minha colheita de vidas. Anda, homem, caminha... caminha!... Em paga de teu serviço, não te matarei: sobreviverás a todos os homens!
E dizendo isto, a peste saltou no cangote de Irerê-una, e, aí agarrando-se, começou o pobre índio a caminhar.
Irerê-una não sentia peso algum nas costas, porém todas as vezes que levantava a cabeça dava de rosto com a medonha mulher de rosto avermelhado, pintalgado de um roxo de gangrena.
* * *
E começaram a caminhar – o homem sempre carregando a assombrosa mulher.
Irerê-una levava a peste a toda a parte.
Tudo eram alegrias e festas pelas tabas, antes da sua passagem.
Bebia-se o cajuí, dançava-se o poracé e o yeroqui, tocava-se o boré e a inubia; o maracá chocalhava. Os homens contavam uns aos outros as suas façanhas de guerra e de caça; as mulheres cantavam; as crianças folgavam, cambalhotando na areia dos regatos, ou balançando-se nas cipoadas; as velha torravam a formiga vermelha para extraírem o veneno com que se ervam as setas.
Tudo era festas: defumava-se a carne dos animais mortos pelo matos; secava-se o peixe colhido nas piracemas; 1impavam-se os caminhos para a visita solene dos pajés.
Mas para logo mudavam-se as coisas, desde que por ali passava Irerê-una com o terrível fantasma que o cavalgava. Danças, restas, cantos de moças, prosas de guerra e de caça, folguedos de crianças, trabalhos divertidos – tudo desaparecia, para dar lugar ao pranto, aos gemidos, às dores cruciantes, às longas agonias e à morte.
Por onde Irerê-una passava, ficava um longo rastro de cadáveres, pela maior parte insepultos, a apodrecerem ao sol e servindo de pasto aos corvos.
Crianças, mulheres, guerreiros valentes, pajés venerandos, tudo a peste matava. As aldeias transformavam-se em tristonhas taperas, as canoas vogavam pelo rio abaixo abandonadas pelos remadores, às vezes transportando um cadáver colhido pela peste e por ela fulminado em meio da corrente.
* * *
Irerê-una levou primeiro a peste às aldeias de seus inimigos: aos caetés do sul, aos tupinambás da margem do mar, e depois, não havendo mais taba, nem oca, nem tujupar que não visitasse, foi obrigado a levar o flagelo à sua própria nação, àqueles bons boianases, dos quais ele se orgulhava de ser membro.
Pobre Irerê-una! Quanto lhe doía na alma ver cair um por um todos os guerreiros que ao seu lado outrora combatiam com galhardia, os melhores caçadores da tribo, e as donzelas, as casadas, as velhas, os pajés reverenciados e a criançada alegre! Quanto se amargurava o seu pobre coração em ver todo aquele povo, que era o seu, fulminado pelo fantasma horrendo, e a apodrecer pelos caminhos, sem ter mais quem se ocupasse em sepultar os cadáveres!
Mas que fazer? Todas as vezes que Irerê-una estacava, o fantasma esporeava-o, obrigava-o a caminhar, e a levar por toda a parte a devastação.
* * *
Tendo final Irerê-una chegado à margem de caudalosa torrente que bramia no fundo de um medonho abismo, disse à peste:
– Deixa-me agora Peste; já mataste todos os da minha nação e os das nações vizinhas; destruíste todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças, e não ficou taba habitada; deixa-me, pois, terrível peste, nada mais tens a fazer aqui!...
– E aquele tujupar que se vê ali, na encosta do morro, quase a desaparecer por entre as pacoveiras? – disse a peste apontando para uma pequena choupana sumida entre a folhagem. – Ali há gente, homem; leva-me lá.
– Mas aquele tujupar é o meu, peste; Ali vivem minha mulher e filhos.
– Que me importa?! Leva-me ao tujupar da encosta do morro.
– Não, peste, não posso! Como poderei ver atirados à lama do tibicoe, entes que me são tão caros?! Minha mulher é a minha ventura, minha alegria, minha melhor companheira! Meus filhos, serão os perpetuadores do meu nome, os que se encarregarão de dizer aos vindouros as minhas bravuras e as minhas virtudes!
– Leva-me ao teu tujupar, – ordenou novamente a peste.
– Não, não posso; por tal preço seria a vida para mim pesada em extremo, não poderia sobreviver ao aniquilamento de minha mulher e de meus filhos, que tanto prezo.
E dizendo isso, Irerê-una, o malfadado, lançou-se de cabeça para baixo do abismo, e despedaçou-se nas pedras do fundo. A água tingiu-se com o seu sangue e os seus membros foram arrastados pela torrente.
A peste, assim que o infeliz despenhou, deixou-o, mas, como não possuía mais montaria, não pôde transportar-se ao ranchinho da encosta do morro, e despedindo-se da Terra voltou ao céu, subindo por um raio da Lua. Sacrificara-se Irerê-una para salvar sua família. Foi ela o tronco da nova nação goianaz.
* * *
O padre Salazar, com o queixo magro, sumido entre as mãos compridas, tinha ouvido atentamente toda a exposição desta lenda selvagem que para aqui transportamos, apenas alterando a linguagem do narrador. Logo que o velho cacique terminou, dirigiu-lhe a palavra:
– E assim, João Batista, desconfias daquele pobre Tupinambá que por aqui passou na lua-nova?
– De certo. Não vias, padre, como ele caminhava de cabeça tão baixa, que parecia vergado debaixo de um peso tão grande? Pode muito bem ser que o infeliz andasse a passear a peste pelo mundo.
(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.161-169)
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