sábado, 17 de setembro de 2011

Antropofagia Tupinambá


A antropofagia era o principal ritual da sociedade tupinambá. Os tupinambás não guerreavam entre si por territórios ou riquezas. Guerreavam para fazer prisioneiros e comê-los, vingando-se dos parentes comidos pelos rivais e absorvendo, no rito antropofágico, a força do inimigo. Assim, reforçavam a identidade cultural do grupo. Esta gravura em metal, de Theodor de Bry, está na edição de 1592 do livro Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, publicado originalmente em 1557.
História - Ronaldo Vainfas e outros.Editora Saraiva, 2010.


Manuela Carneiro da Cunha
Revista Estudos Avançados - USP
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Cães, Canibais

Paradoxalmente, a outra imagem que se vulgariza, e que se torna emblemática do Brasil é a dos índios como canibais. Em 1540, por exemplo, o mapa de Sebastian Munster, na Geografia de Ptolomeu publicada em Basileia, coloca laconicamente, no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do rio da Prata, a palavra Canibali, e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna (Schwartz e Ehrenberg 1980, p.50, p1.18 e p.45)."São cãis em se comerem e matarem" escreverá Nóbrega (Nóbrega in Leite vol.II:321), implicitamente evocando a assimilação que o Renascimento fez entre canibais e cinocéfalos, homens com cabeça de cães, como explica Rabelais no seu glossário do Quarto Livro de Pantagruel: "Canibales, peuple monstrueux en Afrique, ayant la face comme chiens et aboyant au lieu de rire" (Rabelais 1955(1552): 737). ps canibais são, na verdade, um fantasma, uma imagem, que flutua por muito tempo no imaginário medieval sem lograr ser geograficamente atribuído. Colombo, ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram, permite uma primeira localização americana desse fantasma, assimilando caribes e canibais numa sinonimia que irá perdurar, no século XVIII, até à Enciclopédia.

Antropófagos Mas Não Canibais

Os Tupi, no entanto, não são canibais, e sim antropófagos: a distinção que é, num primeiro momento léxica, e mais tarde, quando os termos se tornam sinônimos, semântica, é crucial no século XVI, e é ela quem permitirá a exaltação do índio brasileiro. A diferença é esta: canibais são gente que se alimenta de carne humana; muito distinta é a situação dos tupi que comem seus inimigos por vingança.

É assim que Pigafetta distingue os brasileiros que são antropófagos, dos canibais, imediatamente ao sul (A.Pigafetta 1985 (1524?). Thévet que assimila canibais, caribes insulares das Antilhas e possivelmente os caetés ou os potiguaras, escreve: "Os canibais, cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Marinhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos, não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se não até com maior satisfação" (A.Thevet 1971(1558): 199). Thévet chega a declarar que os "canibais" alimentam-se exclusivamente de carne humana (A.Thevet 1978 (1558): 100). Mas os Tupinambá, se comem aos inimigos, "fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio" (H.Staden: 176).

Quanto a Américo Vespucci, o primeiro a falar da instituição entre os tupi, uma leitura desatenta que poderia sugerir que ele esteja relatando uma antropofagia alimentar. O que ele diz, no entanto, falando da dieta variadíssima dos índios (ervas, frutas ótimas, muito peixe, mariscos, ostras, camarões e caranguejos), é que, quanto à carne, por não terem cachorros que os ajudem na caça, a que mais comem é carne humana (Vespucci, Carta a Lorenzo de Medici, Lisboa, outono de 1501 in L.N.d'Olwer 1963: 542). Um ano antes, em outra carta, relatando sua viagem à ilha da Trinidad, Vespucci havia falado, aí sim, dos canibais que vivem de carne humana (Vespucci, Carta a Lorenzo de Mediei, Sevilha, 18.07.1500 in L.N.d'Olwer 1963: 43).

A antropofagia, nisso não se enganaram os cronistas, é a Instituição por excelência dos tupi: é ao matar um inimigo, de preferência com um golpe de tacape, no terreiro da aldeia, que o guerreiro recebe novos nomes, ganha prestígio político, acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata. Todos, homens, mulheres, velhas e crianças, além de aliados de outras aldeias, devem comer a carne do morto. Uma única exceção a esta regra: o matador não come sua vítima. Comer é o corolário necessário da morte no terreiro, e as duas práticas se ligam: " Não se têm por vingados com os matar sinão com os comer" (A.Blasquez a Loyola, Bahia, 1557 in Navarro e outros, 1988, p. 198). Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis (10).

São esses canibais que conhecerão com Montaigne uma consagração duradoura. Tornam-se a má-consciência da civilização, seus juizes morais, a prova de que existe uma sociedade igualitária, fraterna, em que o Meu não se distingue do Teu, ignorante do lucro e do entesouramento, em suma, a da Idade de Ouro. Suas guerras incessantes, não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial, são nobres e generosas. Regidos pelas leis naturais, ainda pouco abastardas, estão próximos de uma pureza original e atestam que é possível uma sociedade com " peu d'artífice et de soudeure humaine" . Em uma passagem que Shakespeare retomará na sua Tempestade, Montaigne resume essas virtudes: " C 'est une nation... en laquelle il n*y a nulle espèce de trafique; nulle cognoissance de lettres; nulle science des nombres; nul nom de magistrat, ny de supériorité politique; nul x usage de service, de richesse ou de pauvreté; nuls contracts; nulles successions; nuls partages; nulles occupations qu 'oysives; nul respect de parenté que communnuls vestemens: nulle agriculture: nul métal; nul usage de vin ou de bled. Les paroles mesmes qui signifient le mensonge, la trahison, la dissimulation, I'avarice, I 'envie, la détraction, le pardon, inouies" (Montaigne 1952(1580): 235-236) (11). Até sua culinária é sem artifícios! Este resumo das virtudes dos canibais, com seus lapsos evidentes - a agricultura por exemplo, existe entre os Tupis (12) - não é um discurso de etnólogo e sim de moralista, e como tal deve ser entendido: constitui o advento de uma duradoura imagem, a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária. Não é fortuito que Montaigne, no fim de seu ensaio, mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o rei Carlos IX (que entrava em Ruão, em 1562, após a rebelião e a subjugação da cidade), conversou. Estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança - o rei. E estranhavam que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos (Montaigne, ibidem: 243-4)....

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