Reproduzido da Folha de S.Paulo, 20/03/2011
João Pereira Coutinho
Salazar – Biografia definitiva, de Filipe Ribeiro de Meneses, traz novos parâmetros para compreender a atuação do ditador português, que forjou seu poder com base na austeridade fiscal, na retidão moral e na mitologia colonialista do país. Enraizado na sociedade, seu ideal de “paz e sossego” engendrou um Estado “tão forte que não precisava ser violento”.
Quem foi Salazar? A pergunta é mais difícil do que parece e, quatro décadas depois da morte, é raro encontrar uma resposta racional entre os lusos. Para uns, Salazar foi o supremo responsável pela “longa noite fascista” em Portugal – uma ditadura iniciada em 1928, reconfirmada e reconfigurada em 1933, e a que só o 25 de abril de 1974 conseguiu pôr cobro. Para outros, Salazar encontra-se no extremo oposto: o homem que resgatou Portugal da falência económica e política da Primeira República (1910-26), relançando o país entre as nações respeitáveis da Europa. Salazar, nessa bondosa visão, era o homem austero, celibatário (um “monge voluntariamente castrado”, como diriam os seus detractores), que viveu modestamente e, mais importante ainda, morreu modestamente. Eis a visão hagiográfica que Franco Nogueira, diplomata português do Estado Novo, deixou para a posteridade na biografia em seis volumes que dedicou ao ditador.
Ambas as visões explicam pouco, ou nada: a recusa em olhar para Salazar com distanciamento e equilíbrio inscreve o ditador português na categoria da maldade absoluta – ou da bondade absoluta. Em qualquer dos casos, eleva-o acima do seu tempo e da particular história de Portugal no século 20.
A fé e as coisas da carne
Felizmente, essas expressões de irracionalismo têm mudado nos últimos anos, graças ao trabalho de uma nova geração de historiadores que, sem complexos ideológicos de esquerda ou direita, trabalham sobre Salazar e o Estado Novo de cabeça limpa. Mas, apesar de tudo, faltava ainda uma obra maior capaz de responder, muito prosaicamente, a duas ou três questões: de onde veio Salazar? Como se manteve no poder? Que herança deixou? Filipe Ribeiro de Meneses, sintomaticamente um “estrangeirado” que construiu a sua carreira na Irlanda, onde as polêmicas ideológicas sobre Salazar não chegam, escreveu uma monumental biografia de Salazar que ficará como um marco nos estudos sobre o homem e o seu regime: Salazar – Biografia Definitva [Leya Brasil, 816 págs., R$ 59,90]. Originalmente escrita e publicada em inglês, chega agora traduzida ao mercado brasileiro.
António de Oliveira Salazar (1889-1970) é um produto tipicamente português. O historiador Paul Johnson, no seu Modern Times, já notara com espanto que Salazar (e Marcelo Caetano, seu sucessor em 1968) constitui caso singular no código genético dos ditadores europeus, para não falar dos latino-americanos. Salazar não era um homem do Exército, nem aí fizera carreira, lealdades e glória. Também não emergira, como Hitler ou Mussolini, do bas-fond da agitação retórica e revolucionária das ruas, pronto para liquidar o liberalismo decadente. Salazar era um académico coimbrão, professor de Finanças Públicas, e até o fim cultivou essa imagem de rigor científico e distanciamento mundano, próprio de um scholar que contempla o mundo sub specie aeternitatis. Ribeiro de Meneses retoma igual observação e ela é mais do que uma simples referência à forma provinciana e reverente como os portugueses olham para os seus “doutores”.
Mas, antes da universidade, é importante esclarecer como esse destino esteve para não o ser. Nascido em 1889, na povoação do Vimieiro, no interior centro de Portugal, Salazar cresceu em família modesta, que cedo percebeu no filho um brilho intelectual distinto. Para o jovem António estava assim reservado o mecanismo tradicional de ascensão social das famílias pobres: o seminário e, logicamente, o sacerdócio. Salazar acabaria por abandonar essa vocação por razões nunca inteiramente explicadas. Para Ribeiro de Meneses, o jovem seminarista teria perdido a fé nas coisas do espírito; ou, em alternativa, teria sucumbido às coisas da carne. A verdade é que a paragem última da sua formação intelectual seria a Universidade de Coimbra, e não o seminário em Viseu.
Ambição crescente
E foi a partir da mais antiga universidade portuguesa que, em 1910, Salazar iniciou um caminho meteórico. O ano era especialmente significativo: a 5 de outubro era implantada a República e, com ela, o seu longo cortejo de instabilidade e violência. A experiência republicana foi marcante para Salazar: influenciado pelas encíclicas de Leão 13 e militando nas organizações académicas cristãs, ele não poderia assistir ao anticlericalismo republicano de forma neutra. Para o estudante, a defesa da Igreja católica não significava defender um retorno à monarquia, como se ambas estivessem umbilicalmente ligadas (eis a “armadilha”, explica Ribeiro de Meneses, em que Salazar nunca caiu). Defender a igreja era defender a sua integridade em face dos ataques da República.
Entender Salazar começa por ser, assim, entender a sua formação católica na construção de uma mundividência política. Mas Salazar é também o resultado do fracasso – político, económico e financeiro – da Primeira República, fracasso que o catapultou para o poder.
Faz parte da hagiografia salazarista pintar o ditador com as cores da relutância. Segundo a lenda, Salazar teria abandonado a contragosto a sua pacata vida universitária e as férias de verão na província para descer até Lisboa, aceitar a pasta das Finanças (duas vezes: em 1926 e 1928) e, finalmente, a condução do governo. O mito não sobrevive à realidade, escreve Ribeiro de Meneses: depois da insurreição do 28 de maio de 1926, que pôs termo à Primeira República pela instauração de uma ditadura militar, a ambição de Salazar foi crescente. A expressão tangível dessa ambição encontra-se no esforço pensado e sistemático para mostrar a incompetência técnica das lideranças militares, incapazes de devolver ao país um mínimo de sanidade financeira.
Mais que um mantra
Com uma mistura de falsa modéstia e pesado sarcasmo, Salazar propunha em artigos de jornal “rectidão fiscal, autonegação e sacrifício”, escreve Ribeiro de Meneses, uma terapêutica austera que era também austeramente cristã: contra o materialismo desenfreado, que apenas corrompia as bolsas e as vidas, seria necessário pregar a “simplicidade na vida pública”. Assim era na teoria, assim seria na prática: ao aceitar a pasta das Finanças em 1928, depois de uma experiência frustrada em 1926 que durara apenas cinco dias, Salazar sabia que o seu momento chegara. E que lhe cabia agora, perante uma casta militar que o olhava como um intruso, mostrar ao regime – e, sobretudo, ao país – a sua imprescindibilidade. Como escreve Ribeiro de Meneses, “a batalha do orçamento” seria o primeiro passo, e o mais importante passo, para construir o Estado Novo.
Nas discussões sobre o Estado Novo, tornou-se questão recorrente saber qual a natureza do regime. Seria o Estado Novo uma forma de “fascismo”? Ou seria uma forma de autoritarismo que não permite uma filiação plena ao fascismo italiano? Filipe Ribeiro de Meneses revisita a questão mas, felizmente, não perde tempo com ela. O Estado Novo não teria sido possível se a “ditadura das finanças”, entre 1928 e 1932, não tivesse apresentado vitórias claras no controlo do défice fiscal e na garantia da solvência do país, dois problemas crónicos da República e que a I Guerra Mundial (1914-18) apenas agravou. A partir de 1930, esse passou a ser o problema premente para o “ditador das finanças”, explica Ribeiro de Meneses: deveria a ditadura militar regredir para a situação anterior a 1926, o que significaria sacrificar os ganhos económicos e financeiros entretanto obtidos? Ou implicava avançar para uma nova ordem onde o Estado e a nação se reconciliassem?
A resposta de Salazar enfrenta os dilemas teóricos sobre a natureza do seu regime. “Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento?” Eis um mantra que é mais do que um mantra. É a autobiografia do Estado no Estado Novo.
Foto de Mussolini
Salazar era um leitor atento, desde a juventude, de Charles Maurras, a figura cimeira da Action Française, movimento contrarrevolucionário que, através de uma publicação com o mesmo nome, defendia em Paris a restauração monárquica. Mas, se partilhava com o teórico francês a mesma disposição iliberal, não poderia subscrever, na teoria ou na prática, a noção de la politique d´abord, a política em primeiro lugar. Como sustenta Ribeiro de Meneses, ao recusar o carácter revolucionário, perfectibilista e violento dos “fascismos” europeus, Salazar relembrava ainda, numa posição marcada pela formação cristã, que existiam limites morais e até espirituais para a acção do Estado. O antissemitismo da Action Française, para não falar das teorias rácicas e genocidas do Terceiro Reich, eram-lhe estranhas.
O regime nunca hesitou em prender e punir severamente os seus opositores, é certo; mas a ideia, tão cara aos totalitarismos nazifascistas, de que a política deveria dominar absolutamente todos os aspectos da existência, afigurava-se para Salazar como uma repetição extremada (e à direita) da desastrosa experiência republicana (de esquerda). Não repetir os erros de 1910-26 passava, assim, por retirar a política das ruas, dos jornais e das preocupações diárias dos indivíduos. O salazarismo, mais do que uma forma ativa de política, era uma forma de negar a política no que ela tinha de potencialmente conflituoso. “Viver habitualmente” era uma garantia de paz no país e de sobrevivência para o regime.
Sobrevivência: o Estado ditatorial que a Constituição de 1933 consagrou e em que Salazar era, finalmente, o primeiro-ministro de um “monarca” absoluto (o “monarca” era uma alusão metafórica ao presidente da República, que em teoria o poderia sempre demitir) passou a considerar a sobrevivência do regime como prioridade indistinguível da sobrevivência da nação. E não deixa de ser irónico que a principal ameaça interna, nos primeiros anos do regime, tenha vindo da direita. O Movimento Nacional-Sindicalista, apesar das suas iniciais juras de fidelidade a Salazar, esperava, no entanto, ver no ditador o tipo de carisma “radical” (leia-se “fascista”) que era possível admirar em Mussolini. Salazar tinha uma fotografia do duce sobre a mesa de trabalho; por que motivo não poderia imitar-lhe o programa e o modo de acção?
“Duplicidade jesuítica”
Ao repto respondia Salazar: “Mussolini, digo eu, é um grande homem, mas não se é impunemente da terra de César e de Maquiavel!” A frase transporta um elogio, mas também uma justificação: Salazar não era um César nem um Maquiavel. E o seu comportamento público denuncia-o: as aparições públicas não abundavam; as grandes multidões não condiziam com o seu temperamento reservado; e, sobre as qualidade oratórias, dizia o sucessor, Marcelo Caetano: tinha “uma voz de velha”.
Aos apelos de radicalização do regime rumo a um verdadeiro fascismo, Salazar respondeu com uma mistura de sedução e violência que liquidou o nacional-sindicalismo dos Camisas Azuis. O ditador soube cooptar os mais moderados para o regime, ao mesmo tempo em que reprimia os recalcitrantes. As ameaças, porém, não eram apenas internas – ameaças que a censura e a polícia política tratavam com os respectivos métodos. Na década de 1930, com uma Europa que caminhava para a guerra total, as ameaças eram também externas e exigiam um esforço diplomático ímpar para garantir a sobrevivência física do país – e do regime.
O primeiro teste viria com a Guerra Civil espanhola (1936-39): seria possível a Portugal evitar a contaminação republicana que provocara em Espanha a sublevação dos nacionalistas? Salazar entendeu que sim, mas apenas se Franco estivesse disponível para ver em Portugal um aliado à altura. Não apenas um aliado diplomático, capaz de serenar o Reino Unido e de convencê-la da importância do caudilho como barreira necessária contra o avanço da “ameaça vermelha” na Europa.
Como escreve Ribeiro de Meneses, “é o tratamento dos refugiados republicanos espanhóis que mais ensombra a reputação de Salazar neste período”. Ou porque eram presos ao cruzar a fronteira portuguesa; ou porque eram devolvidos à procedência, onde um funesto destino os esperava. A Guerra Civil espanhola foi a antecâmara do enfrentamento mundial de 1939-45; e também nesse contexto os objectivos de Salazar permaneceram inalterados: garantir a integridade do país, só possível por uma frágil e engenhosa neutralidade. As páginas de Ribeiro de Meneses sobre a estratégia de Salazar – na qual era imperioso “esconder intenções”, “ocultar ressentimentos”, “a todos parecer amigo”, fosse pela venda de tungstênio às fábricas de armamento alemãs, fosse pela cedência das bases militares dos Açores aos aliados – são bem o exemplo da “duplicidade jesuítica” que, não raras vezes, levava ambas as partes do conflito ao pasmo e à exasperação.
Irremediável declínio
Como teria sido a biografia de Salazar e a avaliação do seu legado se, finda a II Guerra Mundial, o ditador tivesse promovido a abertura política do regime e, quem sabe, o seu voluntário afastamento? A pergunta tornou-se um cliché nos debates sobre o Estado Novo; um cliché que se multiplica em novos clichés: ao afastar-se, em 1945, Salazar talvez seria visto como o homem providencial que endireitou as finanças de Portugal e depois garantiu a sua paz durante o conflito. Acontece que a pergunta tem pouca relevância histórica, excepto para quem alimenta um gosto particular pela “história alternativa”: a neutralidade portuguesa na Guerra e a vitória dos aliados transportava consigo novos desafios para Salazar.
Com a emergência de dois blocos ideológicos na Guerra Fria, Salazar entendia que era sua missão evitar as nefastas influências desses polos antagónicos. Cabia-lhe a ele suster em Portugal a ameaça soviética que descia sobre metade da Europa; mas também garantir que o país não seguiria os apelos das “democracias parlamentares” para que seguisse o ideário de Washington.
Essa relutância antidemocrática de Salazar não sinaliza apenas a incapacidade do ditador para entender as profundas mudanças por que passava o Ocidente. Ela marca o princípio do seu fim e, como o próprio diria, nada resume tão bem essa fatalidade como uma única palavra: África. Como foi possível a um pequeno país travar uma guerra em três cenários longínquos e distintos (Angola, Guiné-Bissau, Moçambique), estando “orgulhosamente só” no concerto das nações? A resposta mais breve seria: não foi e não era. Mas as guerras africanas, que tiveram início em Angola em 1961, respondiam a uma visão idealizada de Salazar sobre o papel de Portugal no mundo: as colónias eram a expressão material da missão civilizadora da pátria; sem colónias, Portugal (e a Europa) estaria condenado a um irremediável declínio.
“Um certo cansaço”
O fracasso de Salazar foi duplo: incapaz de entender que a manutenção das colónias seria inviável – e que caberia, portanto, uma transição possível e ordeira para uma autonomia negociada –, sua obstinação não se traduziu numa defesa eficaz das colónias quando as populações brancas se viam rodeadas pela violência e a agressão dos rebeldes.
São notáveis as páginas que Ribeiro de Meneses dedica a esse trágico paradoxo: o de um velho ditador condenado a defender as colónias, mas incapaz, ou indisponível para as defender efectivamente. “A guerra não se sobrepôs a uma regra básica da vida portuguesa desde 1928”, escreve o historiador: “um orçamento equilibrado era a pedra angular da política pública”. É difícil ler essa frase de estômago intacto e pensar nos milhares de mortos e feridos que a guerra provocou entre 1961 e 1974.
Salazar morreu em 1970. Mas, politicamente falando, a morte veio dois anos antes, quando sofreu um acidente vascular cerebral do qual nunca se recuperou. Ou talvez tenha vindo em 1961, com a perda de Goa, Damão e Diu para a União Indiana; com o início das guerras coloniais africanas; e com episódios mais domésticos, como a frustrada tentativa de golpe perpetrada pelo seu próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz.
O ano de 1961 não foi apenas um annus horribilis para Salazar, a que nem sequer faltou o mediático assalto ao transatlântico Santa Maria por Henrique Galvão, um velho inimigo do regime. Naquele ano, conta Ribeiro de Meneses que o ditador teria recebido uma lista, provavelmente elaborada pela polícia política, onde se arrolavam os principais queixumes dos portugueses face ao regime. Um deles consistia no seguinte: “Um certo cansaço da paz e do sossego gozados há tantos anos.”
Paz e sossego. Como nos cemitérios. As virtudes que Salazar perseguira com ditatorial intransigência eram as mesmas que o acabariam por enterrar.
João Pereira Coutinho é jornalista, escritor e doutor em História pela Universidade de Coimbra
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