quarta-feira, 11 de maio de 2011

Assim nasceu a bruxaria

Para pregar o bem, cristãos convenciam seu rebanho da existência do mal: o demônio estava solto e a mulher era perigosa
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

O cristianismo surgiu com a proposta de ser uma religião universal, mas o mundo tinha particularidades, sobretudo religiosas. Para levar a Boa-Nova a todos os homens, os cristãos precisavam se impor sobre seus oponentes. Assim foi construída a Igreja, primeiro apartando-se do judaísmo, o mais incômodo adversário pela inquietante proximidade. Eliminados os judeus – “assassinos de Cristo” –, os heterodoxos foram os seguintes a ser calados ou perseguidos.
Ao longo do período medieval, a Igreja era atormentada pelas seitas de “adoradores do diabo”, e por isso as perseguiu. Com rigor cada vez maior, chegou à caça às bruxas da Europa moderna: a combinação trágica e eficaz entre a alteridade e a erudição.

A construção de uma mitologia satânica implicou um monumental esforço de reconhecimento do demônio, de suas formas e possibilidades de atuação. Também era preciso identificar seus agentes, ou seja, aqueles que, embora inseridos no rebanho dos fiéis, tramavam secretamente para a sua perdição. Entre estes estava a mulher. Teólogos e eruditos medievais a converteram em bruxa, o suprassumo da traição e da maldade, o veículo preferencial de toda a malignidade de Satã – enfim, o feminino em toda a sua tragicidade.

A doutrina cristã apresentava como razão para a submissão feminina a própria Criação: se o homem não foi criado pela mulher, ela estava numa posição automaticamente submissa. E ela também era a introdutora do pecado responsável pela condenação dos homens aos tormentos deste e do outro mundo, tornando-se a vítima e, ao mesmo tempo, a parceira consciente do diabo. De presa preferencial do demônio, Eva – a primeira mulher – foi convertida em seu lugar-tenente.

Os movimentos e seitas que ameaçavam e se opunham à Igreja no período medieval levaram à conclusão de que o diabo estava solto. Teólogos e eruditos deixaram de sustentar que o demônio tinha sido totalmente vencido. Se assim fosse, não haveria razão para a continuada existência da Igreja.

O rumor público serviu para ajudar a identificar o mal e seus agentes, especialmente numa Europa em crise. O continente convivia com a peste, as guerras, o Cisma do Papado – a existência de um papa em Avignon e outro em Roma, cada um deles se proclamando o verdadeiro – e a súbita ruptura do mundo tradicional, que eram terríveis novidades que deviam ser causadas por Satã e seus representantes, fossem feiticeiros, adivinhos ou judeus. Havia um imaginário frenético de um mundo em mudança, onde os homens assistiam perplexos à traição do costumeiro, ou seja, da pacífica continuidade que deveria levar o mundo de sempre à bem-aventurança da Jerusalém Celeste. Eles se perguntavam “chorando e gemendo neste vale de lágrimas”: por que os diabos agora se apoderam de tudo e de todos, destruindo o rebanho cristão, com a misteriosa permissão de Deus?

Deste modo, a partir do século XIV, o medo do fim do mundo e da danação eterna é intensificado e difundido na Europa de forma jamais vista. Mas esta angústia em relação ao mal não produziria efervescência sem a ação dos pregadores mendicantes, especialmente franciscanos e dominicanos. Conclamando todos ao arrependimento e à penitência, eles evocavam os horrores dos castigos eternos para obter a cura espiritual da cristandade.

Os esforços didáticos da pregação, em vez de tranquilizar as consciências, acabaram impondo, através do diabo, um rígido código ético e moral a partir do final do século XV. Resultado: todos os fatos da vida coletiva foram justificados pela sombria e inescapável mediação do Maligno.

A humanidade era atormentada pela cólera divina, o Dies Irae, e pelo medo de Satã, estreitamente associado à espera do fim dos tempos no senso comum. O Martelo das Bruxas, o “Manual de Caça às Bruxas”, assim o enuncia: “Em meio às calamidades de um século que desmorona, o mundo em seu ocaso desce para seu declínio e a malícia dos homens aumenta”. E Satã “sabe em sua raiva que tem pouco tempo”.

Assim, foi no início dos Tempos Modernos, e não na Idade Média, que o diabo e seus seguidores ocuparam o cenário principal do imaginário europeu. A era das reformas, o período das dissidências religiosas na cristandade que deu origem ao Protestantismo, correspondeu ao momento máximo da repressão à bruxaria. A presença do diabo era necessária para justificar o árduo e ininterrupto esforço missionário, ao mesmo tempo em que a existência de um Satã todo poderoso servia de fundamento para toda sorte de medidas repressivas e de violências, transformadas em luta contra o diabo, seus agentes e suas armadilhas.

Esse é o momento do “triunfo de Satã”. Herdando os conceitos e as imagens modeladas pelas consciências medievais, o início da modernidade emprestou ao demônio uma coerência e uma difusão jamais alcançadas. O medo desmesurado e onipresente do demônio estava associado, na mentalidade popular, à espera do fim do mundo. A luta religiosa conferiu ao diabo o seu estatuto de grandiosidade: ele é o grande rebelde. As reformas confirmaram seu direito de existir em toda a sua potência, em toda a sua majestade. E as perseguições, os processos inquisitoriais, acabaram materializando as ilusões – por que não dizer decepções? – e os medos de uma cristandade que se sentia permanentemente ameaçada pelo mal.

Carlos Roberto Nogueira é professor da USP e autor de Bruxaria e História (Edusc, 2004).


Saiba mais - Bibliografia

CLARK, Stuart. Pensando com os demônios. São Paulo: Edusp, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. (Edição de bolso). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Revista de História da Biblioteca Nacional

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