quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Calígula, um maluco no poder

Que o terceiro imperador romano tenha sido um sanguinário, ninguém duvida. Suas famosas crises de epilepsia, porém, explicam pouco ou nada desse perfil. Para conhecê-lo, é preciso falar de suas origens familiares e do ambiente depravado que o cercava.

COLEÇÃO PARTICULAR/© THE BRIDGEMAN ART LIBRAY/KEYSTONE

O aspecto assustador e o desequilíbrio mental do terceiro imperador de Roma inspiravam medo e terror na população Caligula Caesar, gravura, artista da escola italiana, 1596

A história não foi complacente com Calígula, o detentor de um reinado tão curto quanto violento no primeiro século de nossa era, em Roma. Ele permaneceu no poder de março de 37 até seu assassinato, em janeiro de 41. Foi o terceiro imperador romano, membro da dinastia júlio-claudiana, iniciada por Augusto.

A reputação de louco feroz, capaz de incríveis crueldades, foi construída ao longo de apenas quatro anos de poder, um período curto demais para fama tão arraigada, mas nada indica que ele fosse diferente do que ainda hoje se diz do personagem. O próprio nome Calígula tornou-se sinônimo de atrocidade.

Cabe, contudo, buscar a fonte primordial: a obra A vida dos doze césares, do escritor e historiador Caio Suetônio (69-c.141), que não foi contemporâneo de Calígula, mas ótimo observador dos costumes romanos. Outros historiadores, como Filo (30-50 d.C.), Josefo (37-92 d.C.) e Dião Cássio (data imprecisa do século II), também citaram o imperador em suas obras. Especificamente no caso de Calígula, Suetônio é de longe o mais influente entre os quatro, mesmo que se apontem frequentemente imperfeições em sua obra.

Para conhecer o monstro da antiga Roma, parece uma boa opção desistir de buscar refúgio atrás das crises de epilepsia de Calígula e de algumas insanidades a ele atribuídas. Doenças física e mental explicam uma parte, talvez pequena, da biografia. A outra parte passa necessariamente por sua origem familiar, o ambiente depravado no qual cresceu e, sobretudo, o estado das instituições do Império.

Até porque na Antiguidade a epilepsia simplesmente não era compreendida como hoje. Era um estigma na vida do paciente e uma mancha em sua biografia. Foi preciso que nascessem homens como os escritores Fiodor Dostoievski e Gustave Flaubert ou um teórico e político como Vladimir Lenin, todos epiléticos, para que o mundo passasse a ver a doença de outra forma. A percepção de que doença e crueldade não caminham juntas certamente nem passava pela cabeça dos historiadores antigos.

CNG COINS (HTTP://WWW.CNGCOINS.COM)


Moeda cunhada durante o reinado de Calígula (37 - 41 d.C.), com efígie do imperador em um dos lados (à esq.) e de suas três irmãs, Agripina, Drusela e Júlia


MITOLOGIA PESSOAL
Caio César Augusto Germânico, vulgo Calígula, nasceu em Âncio, província de Roma na região do Lácio, no dia 31 de agosto do ano romano 765, ou seja, no ano 12 de nossa era. Seu pai era Germânico, sobrinho de Tibério, e sua mãe, Agripina Maior, neta de Augusto.

Sendo Tibério filho de Lívio, adotado por Augusto, Calígula pertencia à linhagem de César, alegadamente descendente do lendário Ascânio, filho do troiano Enéas, ele mesmo filho de Vênus. Sua origem, como se vê, se mistura com a mitologia.

Ainda jovem, Calígula manifestava as qualidades do pai, homem de personalidade e de honestidade escrupulosas, além de um general notável. Germânico era amado pelo povo. E, de início, o filho Calígula também era, pois se mostrava brilhante e muito modesto. Frequentava as tropas do pai e se vestia como legionário, exibindo nos pés as caligae (espécie de calçado) regulamentares, o que lhe valeu o codinome.

Mais tarde, entregue às intrigas do círculo de Tibério, ele sucumbiu às promessas de agitadores – em particular de Névio Sutório Macro, o líder da guarda pretoriana, que garantia a segurança do imperador. Era tal o poder de um prefeito pretoriano à época que por vezes ele assumia a condição de “segundo homem” do Estado. Macro preparava em segredo a sucessão do imperador e mobilizou todos os meios para que a dignidade imperial coubesse a Calígula. Foi então que surgiram os primeiros sinais da nova vida de desregramento do jovem herdeiro, que desembocaria em ligação explícita com a irmã, Agripina Menor, a futura mãe de Nero, e de todo tipo de fantasias bissexuais.



MUSEU ROMANO-GERMÂNICO, COLÔNIA (AGRIPINA) / GLIPTOTECA DE MUNIQUE /© BIBI SAINT-POL/CREATIVE COMMONS (DRUSELA)

gripina Menor (à esq.) e Drusela (à dir.), duas irmãs com quem Calígula mantinha relações sexuais. O imperador também as obrigava a se prostituir Agripina Menor e Drusela, esculturas em mármore, autor desconhecido, sem data

Um episódio narrado pelo historiador Públio Cornélio Tácito (55-120 d.C.) atesta a atmosfera que reinava em torno de Calígula. Certa vez, o imperador Tibério aportou no cabo Miseno, em Catânia, hoje região da Sicília. Seu médico pessoal não tardou a atestar que o velho não tinha mais que dois dias de vida. Foi o que bastou para que se instalasse uma rede de intrigas palacianas.

Nas palavras de Tácito: “No dia 17 das calendas de abril, Tibério mergulhou em uma inconsciência profunda: acreditou-se que ele estava morto. Caio [o nome verdadeiro de Calígula], já em meio às felicitações de uma numerosa corte, saía para tomar posse do Império quando alguém veio subitamente anunciar que Tibério recuperava a consciência, a fala. (...) Caio, em um silêncio morno, não esperava outra coisa senão o suplício; Macro, mais ousado, mandou sufocar o ancião sob uma pilha de cobertores, e ordenou que todos se retirassem. Assim desapareceu Tibério, aos 78 anos de idade”.

E assim começou o reinado de Caio Calígula.

Mas quem comandava o jogo a partir de então? Seguramente não era Calígula. O imperador não passava de um chefe dos exércitos que devia seu poder a um bandode guerreiros que o escolheram para comandante.

Aparentemente, tudo estava de acordo com as leis. Havia um Senado, guardião das instituições romanas. Havia magistraturas, todas respeitadas. Calígula foi reconhecido como imperator, mas também era cônsul, pretor, censor, edil, “tribuno do povo” e, sobretudo, grande pontífice, mestre da religião oficial romana.



ROGER-VIOLLET /TOPFOTO/KEYSTONE

O imperador aproveitava espetáculos de gladiadores para lançar inimigos às feras, assim como combatentes que demonstrassem fraqueza Calígula retratado por Suetônio, ilustração de Gustav Surand, 1901

Só que o conjunto abrigado sob a denominação de Império Romano, com um líder inconteste à frente, não era mais que uma gigantesca vigarice. Simplesmente porque por trás de um personagem que desempenhava o papel principal agiamos que o manipulavam. Essa era a fraqueza e o paradoxo do sistema.

O imperador era necessário, pois era a imagem do poder de Roma. Nessas condições, deixava-se que ele agisse como bem quisesse, desde que não contrariasse os interesses da classe dirigente. O povo nunca intervinha, pois os habitantes de Roma já não eram os virtuosos cidadãos da República, o regime que vigorou de 509 a.C. a 27 a.C. No Império a população, de modo geral, poderia ser comparada a uma multidão de desocupados e mendigos que se calavam se fosse distribuída comida e providenciadas distrações, como os combates do Circo.

Calígula adorava presidir essas festas, aliás. Ele se sentia o senhor e mestre de Roma e se regozijava ouvindo elogios a sua pessoa e majestade e notando a bajulação que fortalecia sua indomável megalomania. Paralelamente, se desenvolvia dentro do jovem imperador uma paranoia igualmente invencível. Roma teve o azar de essa pessoa ser o homem a quem o Estado facultava decidir, em nome da coletividade, o que era bom ou mau, quem obteria os favores do governo e, pior, quem deveria ser eliminado.

Os crimes de Calígula passaram a ser incontáveis. E suas fantasias e excentricidades também. Sobre isso, o historiador Suetônio conta que o imperador presenteou o cavalo com uma estrebaria feita de mármore, uma dentadura de marfim, sem falar de uma casa e de empregados para tratar esplendidamente os convidados em nome do animal. Diz-se que quis transformar o quadrúpede em cônsul.


DIVULGAÇÃO

Cena do filme Calígula, de 1978, na qual o diretor Tinto Brass recria uma orgia na corte do terceiro césar

Como seu orgulho não tinha limites, ele mandou fazer uma estátua de si mesmo, como se fosse Júpiter, e ordenou que fosse colocada no Templo de Jerusalém. Júpiter não é um deus qualquer da mitologia romana, derivada da grega. É o senhor do Olimpo, pai de muitos outros deuses, como Marte e Vênus, por exemplo. E o Templo de Jerusalém – no caso, o segundo – era o secular local de culto de Deus de Israel.

Nessas agressivas incursões mitológicas e religiosas, a loucura de Calígula não deixava de ter natureza mística. Mesmo seus desregramentos sexuais tinham algo de sagrado. O incesto remetia ao casamento dos faraós com as respectivas irmãs. Já a orgia era uma ativação das forças cósmicas, por meio da qual se atingia o sublime. O imperador queria se transformar em um deus.

Ocorre que nesses assuntos da alma a mentalidade da população trilhava caminhos distintos. A religião romana rejeitava a teofania, ou seja, a encarnação de um deus exterior nos vivos. A palavra-chave da mística romana era a apoteose, o rito funerário que divinizava o defunto. O primeiro imperador romano, Otávio Augusto, por exemplo, havia recusado em vida as honras divinas. Teve, porém, direito a uma apoteose depois de morto. Calígula, porém, não quis esperar a morte para se tornar um deus.

Em virtude da exigência do sistema romano de que o imperador fosse eleito, chegou o momento em que os que governavam efetivamente já não precisavam de personagem tão tresloucado apenas para fazer a figuração. Os excessos de Calígula deveriam andar tão insuportáveis que os verdadeiros governantes de Roma decidiram se livrar dele. Foi mais uma vez o chefe da guarda pretoriana que comandou a ação. Em 24 de janeiro do ano 41, Calígula foi assassinado e substituído por Cláudio.

Revista História Viva

Brasil: Encilhamento, o Primeiro Pacote

O objetivo era promover a industrialização brasileira e estimular a atividade econômica do País. Mas o resultado foi um dos maiores surtos inflacionários do Brasil.


Populares se agitam em frente à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro

Rui Barbosa (1849-1923) foi o primeiro ministro da Fazenda da história republicana do País, nomeado pelo chefe do governo provisório da recém-proclamada República dos Estados Unidos do Brasil, general Deodoro da Fonseca. Ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda, ele manteve-se no cargo por 14 meses.

Adepto dos ideais liberais, Rui Barbosa rechaça seguir os caminhos das políticas econômicas de caráter protecionista, as quais considerava "preconceito mercantilista do século 18 a refletir-se no século 19". Suas primeiras ações ministeriais concentram-se na elaboração da primeira Constituição republicana. Rui, preocupado em defender os interesses nacionais contra os descrentes da nova realidade política do País, foi o principal redator da Carta Magna.

A administração monarquista deixara-lhe um Tesouro falido, mas Rui é obstinado diante de seus objetivos de substituir a antiga estrutura agrária baseada na exportação de café, promover a industrialização e incentivar o crescimento econômico.

Para atingi-los, ele implementa uma série de medidas reformadoras - que atingem principalmente o crédito hipotecário e o crédito à lavoura e à indústria. Todas essas iniciativas obedecem ao sentido renovador que desejava implantar a fim de possibilitar o desenvolvimento das forças produtivas "entravadas por um aparelho estatal obsoleto e por um retrógrado sistema econômico e financeiro", como relata Nelson Werneck Sodré, em sua obra História da Burguesia Brasileira.



Óleo de Lucílio Albuquerque

Rui Barbosa em sua biblioteca de 35 mil volumes

Mas o grande desafio era superar a escassez de moeda, agravada pelo crescimento do trabalho assalariado, resultado do fim da escravidão e da maciça chegada de imigrantes. Neste momento, era grande o debate quanto à orientação macroeconômica a ser adotada no Brasil. Ao passo que os metalistas defendiam a volta do padrão ouro, os papelistas acreditavam que a pressão sobre o crédito seria sanada com a emissão de moeda.

Inspirado no sistema bancário norte-americano e coerente com seus ideais "industrializantes", Rui Barbosa decreta a lei bancária de 17 de janeiro de 1890, que estabelecia as emissões bancárias sobre um lastro constituído por títulos da dívida pública.

Essa política monetária, chamada de Encilhamento (gíria carioca que aludia ao lugar do hipódromo onde ficam os cavalos), buscava "atender às legítimas necessidades dos negócios, já que havia no País uma demanda reprimida de numerário". Com esse objetivo, foram estabelecidas três instituições bancárias regionais (Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul), cada uma com seu banco emissor.
No Rio de Janeiro, região central, foi criado o Banco dos Estados Unidos do Brasil (BEUB), de papel preponderante no novo sistema. Cada região bancária tinha a função de expandir o crédito e estimular a criação de novas empresas.

O resultado das emissões, porém, é um desastre. Em vez de financiar a industrialização, gera um dos maiores surtos inflacionários do País e também desenfreada especulação financeira na Bolsa de Valores, pois o dinheiro fora desviado de seu propósito inicial para toda a sorte de negócios, muitos deles fictícios. Fortunas surgem da noite para o dia, enquanto a economia brasileira sofre violento colapso.

A grande euforia industrial-financeira só termina com o corte da emissão de moeda, muito desvalorizada, o que gera uma grave crise econômica e contribui para o isolamento político de Deodoro da Fonseca. Em 20 de janeiro de 1891, o primeiro ministro da Fazenda do Brasil deixa o cargo. E o presidente renuncia em 23 de novembro do mesmo ano, sob iminente ameaça de deposição pelos republicanos, representados pelo vice-presidente Marechal Floriano Peixoto, que assume "naturalmente" a presidência.

Fora do governo, Rui torna-se o principal opositor das arbitrariedades e dos desmandos autoritários de Floriano Peixoto e em tenaz crítico dos primeiros presidentes civis: Prudente de Morais e Campos Salles. O apelido "Águia de Haia" provém de sua participação na II Conferência de Paz, em Haia, na Holanda, em 1907.

Revista História Viva

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Anúncios


Anúncios
Vende-se: — Uma negra meio boçal, da nação cabinda, pela quantidade de 430 pesos. Tem rudímentos de costurar e passar.
— Sanguessugas recém-chegadas da Europa, da melhor qualidade, por quatro, cinco e seis vinténs uma.
— Um carro, por quinhentos patacões, ou troca-se por negra.
— Uma negra, de idade de treze a quatorze anos, sem vícios, de nação bangala.
— Um mulatinho de idade onze anos, com rudímentos de alfaiate.
— Essência de salsaparrilha, a dois pesos o frasquinho.
— Uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem abundante leite bom.
— Um leão, manso feito um cão, que come de tudo, e também uma cômoda e uma caixa de embuia.
— Uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos.
(Dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura.)


O Livro dos Abraços - Eduardo Galeano

O Estado na América Latina

Memorial da América Latina


O Estado na América Latina
Já faz alguns anos, muitos, que o coronel Amen me contou. Acontece que um soldado recebeu a ordem de mudar de quartel. Por um ano, foi mandado a outro destino, em algum lugar de fronteira, porque o Superior Governo do Uruguai tinha contraído uma de suas periódicas febres de guerra ao contrabando.
Ao ir embora, o soldado deixou sua mulher e outros pertences ao melhor amigo, para que tivesse tudo sob custódia.
Passado um ano, voltou. E encontrou seu melhor amigo, também soldado, sem querer devolver a mulher. Não tinha nenhum problema em relação ao resto das coisas; mas a mulher, não. O litígio ia ser resolvido através do veredicto do punhal, em duelo, quando o coronel Amen resolveu parar com a brincadeira:
— Que se expliquem — exigiu.
— Esta mulher é minha — disse o ausentado.
— Dele? Terá sido. Mas já não é — disse o outro. — Razões — disse o coronel. Quero explicações. E o usurpador explicou:
— Mas coronel, como vou devolvê-la? Depois do que a coitada sofreu! Se o senhor visse como este animal a tratava... A tratava, coronel... como se ela fosse do Estado!

O Livro dos Abraços - Eduardo Galeano

A origem do mundo


Os pedreiros - Maria José Rijo -
http://a-la-minute.blogspot.com/


A origem do mundo
A guerra civil da Espanha tinha terminado fazia poucos anos, e a cruz e a espada reinavam sobre as ruínas da República. Um dos vencidos, um operário anarquista, recém-saído da cadeia, procurava trabalho. Virava céu e terra, em vão.
Não havia trabalho para um comuna. Todo mundo fechava a cara, sacudia os ombros ou virava as costas. Não se entendia com ninguém, ninguém o escutava. O vinho era o único amigo que sobrava. Pelas noites, na frente dos pratos vazios, suportava sem dizer nada as queixas de sua esposa beata, mulher de missa diária, enquanto o filho, um menino pequeno, recitava o catecismo para ele ouvir.
Muito tempo depois, Josep Verdura, o filho daquele operário maldito, me contou. Contou em Barcelona, quando cheguei ao exílio. Contou: ele era um menino desesperado que queria salvar o pai da condenação eterna e aquele ateu, aquele teimoso, não entendia.
— Mas papai — disse Josep, chorando — se Deus não existe, quem fez o mundo?
— Bobo — disse o operário, cabisbaixo, quase que segredando —. Bobo.
Quem fez o mundo fomos nós, os pedreiros.

O Livro dos Abraços - Eduardo Galeano

É PROIBIDO QUEIMAR JUDAS


Rio de Janeiro - 1808

Por vontade do príncipe português, recém chegado ao Brasil, fica proíbido nesta colônia a tradicional queima do Judas na Semana Santa. Para vingar Cristo ou vingar-se, o povo atirava ao fogo, uma noite por ano, o marechal e o arcebispo, o mercador rico, o grande latifundiário e o comandante da polícia; e gozavam os esfarrapados vendo os bonecos de trapo, enfeitados de grande luxo e recheados de foguetes, se contorciam de dor e estalavam entre as chamas.

De agora em diante, nem na Semana Santa sofrerão os poderosos. A família real, que acaba de chegar de Lisboa, exige silêncio e respeito. Um barco inglêsresgatou o príncipe português com toda a sua corte e jóias, e truxe para essas terras distantes.

A eficaz manobra põe a dinastia portuguesa a salvo da investida de Napoleão Bonaparte, que invadiu a Espanha e Portugal, e oferece à Inglaterra uma eficaz centro de operações na América. Os ingleses sofreram tremenda surra no rio da Prata. Expulsos de Buenos Aires e montevideu, penetram agora pelo Rio de Janeiro, através do mais incondicional de seus aliados.

Memória do Fogo - Eduardo Galeano

CRUZ QUE FALA


Chan Santa Cruz - 1850

Três longos anos de guerra índia em Iucatán. Mais de 150 mil mortos, 100 mil refugiados. A população se reduziu à metade.

Um dos capitães da rebelião, o mestiço José Maria Barrera, conduz os índiosaté uma gruta no mais remoto da selva. Ali o manancial oferece água fresca, à sombra de uma altíssima caioba. Da caioba nasceu uma pequena cruz que fala.
Diz a cruz em língua maia:

- Chegou o tempo de Iucatán se levantar. Eu a cada hora estou caindo, estão me machadando, estão me dando punhaladas, estão me dando pauladas. Eu ando por Iucatán para redimir meus índios amados....

A cruz tem o tamanho de um dedo. Os índios a vestem. Põem nela huipil e saia; a enfeitam com fios coloridos. Ela juntará os dispersos.

Reed, Nelson. La Guerra de Castas de Yucatán. México, Era, 1971.
Memórias do Fogo - Eduardo Galeano

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

BLOGS DA SEMANA

Este selo selo é seu








Parabéns

Trincheiras profundas


Trincheiras profundas
A Primeira Guerra Mundial foi o resultado de quatro décadas de tensão
por Fábio Marton
Parece difícil entender como o assassinato de um nobre austríaco foi capaz de detonar o maior confronto militar que o mundo tinha visto até então. Entre agosto de 1914 e novembro de 1918, 65 milhões de soldados pegaram em armas, com um saldo de aproximadamente 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, quatro grandes impérios (o Alemão, o Austro-Húngaro, o Russo e o Turco-Otomano) estavam destruídos. Depois de 1918, o mapa da Europa nunca mais seria o mesmo.

Na verdade, o tiro que acertou a jugular do arquiduque Francisco Ferdinando (1863-1914) foi só o estopim que detonou 40 anos de tensões. Desde 1871, quando os alemães ocuparam a França, o mundo começou a ficar pequeno para as pretensões territoriais das grandes potências, que brigavam por terras na Europa e na África.
A situação, que era instável, degringolou de vez quando sérias disputas na região dos Bálcãs jogaram o Império Austro-Húngaro e seus aliados germânicos contra a Rússia e a França. Parecia impossível solucionar todas as pendências políticas sem pegar em armas. Começava então um conflito que os analistas da época chamavam, com otimismo, de “a guerra para acabar com todas as guerras”.

O CAMINHO PARA A DETONAÇÃO
Os acordos e incidentes que antecederam o conflito

10 de maio de 1871 - Surge a alemanha

Liderados por Otto von Bismarck (1815-1898), os estados germânicos vencem a França. A Guerra Franco-Prussiana provoca a unificação do Império Alemão, também chamado de Segundo Reich. O acordo de rendição tira dos franceses os territórios da Alsácia e da Lorena.

7 de outubro - Tríplice Aliança

O Império Austro-Húngaro, fundado em 1867 graças a um acordo entre as nobrezas austríaca e húngara, faz uma aliança com o Império Alemão. O acordo prevê ajuda militar mútua caso um dos dois países fosse atacado pela Rússia. Em 1882, a Itália se junta aos dois países e forma a Tríplice Aliança.

1890 - Mudança de lado

O governo russo deixa de renovar um acordo com a Alemanha, que previa que os dois países não entrariam em guerra. Em 17 de agosto de 1892, Rússia e França assinam um acordo de defesa mútua contra a Tríplice Aliança.

1905 - Roteiro de guerra

O marechal germânico Alfred von Schlieffen (1833-1913) cria um plano detalhado de ataque militar. Ele prevê que a Alemanha declare guerra primeiro, e que rapidamente ocupe a Bélgica e depois a França, tudo isso antes que a Rússia se organizasse e abrisse uma segunda frente de batalha. Em 1914, a programação seria cumprida à risca.

3 de outubro de 1906 - Evolução militar

A Inglaterra lança ao mar o HMS Dreadnought, um navio tão poderoso que, depois dele, embarcações militares são classificadas em “pré-dreadnought” ou “pós-dreadnought”.

31 de agosto de 1907 - Tríplice Entente

Em março de 1905, o kaiser Guilherme II (1859-1941), que havia se tornado imperador alemão em 1888, oferece a Marrocos ajuda contra a França. Seu objetivo era pressionar a Inglaterra a se afastar da influência de Paris e de Moscou. Mas o resultado é o oposto, e o Reino Unido se une à França e à Rússia para formar a Tríplice Entente.

6 de outubro de 1908 - Fator sérvia

Um dia após a Bulgária declarar independência, o Império Austro-Húngaro anuncia a anexação da vizinha Bósnia. As relações com a Sérvia se tornam tensas. A situação se agrava na medida em que a Rússia se aproxima dos sérvios.

28 de outubro de 1908 - Loucos como lebres

Em entrevista ao jornal britânico Daily Telegraph, o kaiser Guilherme II diz que é um “amigo da Inglaterra”. Mas também afirma que os ingleses são “loucos, loucos, loucos como lebres em março”. A frase repercutiu mal entre os líderes da Inglaterra.

18 de fevereiro de 1913 - Retórica guerreira

A França elege Raymond Poincaré (1860-1934) para presidente. Dotado de inflamada retórica antialemã, ele repete em seus discursos que a Alsácia e a Lorena precisam ser recuperadas. Poincaré cria o Plano XVII, a versão francesa do Plano Schlieffen.

18 de julho de 1913 - Fator sérvia, de novo

Termina a Segunda Guerra Balcânica, em que Sérvia, Grécia e Romênia lutaram contra a Bulgária por causa da divisão do território que os quatro países haviam conquistado na Macedônia. O conflito transforma o pequeno reino da Sérvia em uma potência local.

28 de junho de 1914 - O primeiro tiro

Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, é morto em Sarajevo por conspiradores sérvios. Um mês depois, o Império invade a Sérvia. Seguem-se várias declarações de guerra, até que, em 6 de agosto, o continente inteiro está envolvido. Estão abertas as portas do inferno.

Revista Aventuras na História

A descoberta da Europa


A descoberta da Europa
Em busca de um novo mundo, povos do leste partiram rumo ao desconhecido. No caminho, encontraram uma gente atrasada, que comia com as mãos e mal dominava a agricultura. Ao lugar que descobriram, hoje chamamos Europa
por Beto Gomes

Numa terra praticamente virgem, homens, mulheres e crianças viviam em bandos de 60 ou 100 indivíduos. Isolados uns dos outros, os maiores podiam chegar a 400 pessoas. Alimentavam-se do que conseguiam com uma agricultura muito rudimentar, da caça e do que simplesmente catavam no mato. Eram seminômades, ou seja, ficavam num lugar apenas tempo suficiente para comer o que estava ao seu alcance, aí levantavam acampamento e iam embora. Suas vilas eram mesmo pouco mais que isso: acampamentos. Não construíam muita coisa além de totens ou amontoados de pedras. Não criaram escrita. Não tinham sistema político e seus líderes eram uma mistura de patriarca com guia espiritual. Viviam como selvagens. E eram europeus.

Estamos em 3000 a.C. e, nessa época, o centro do mundo não é a Europa. A 5 mil quilômetros dali, na Mesopotâmia, região entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, vicejam cidades com mais de 10 mil habitantes. Lá os sumérios desenvolvem leis e códigos para orientar a vida em sociedade. No norte da África, o Baixo e o Alto Egito se unem para formar um dos maiores impérios do mundo antigo, capaz de erguer colossos, como a enorme esfinge de pedra a espiar a planície de Gizé. Eles constróem canais e dominam os ciclos de cheia do rio Nilo. No Extremo Oriente, pequenos reinos vivem sob um só signo: o dragão. A China está prestes a despertar, mas já domina a matemática e a agricultura. Nos três cantos, a pré-história ficou para trás. Eles inventaram a escrita. E com ela preenchem notas fiscais, escrevem livros sagrados, assinam recibos, contratam serviços, registram casamentos e filhos. Fazem cálculos e poesia. Inauguram a história.

E no sul de onde hoje fica a França e ao longo do rio Danúbio, na região que agora chamamos Alemanha, ainda há gente morando em cavernas. Mas esse mundo está prestes a mudar. O agente dessa transformação ainda é um mistério, alvo de muita polêmica entre especialistas, mas definitivamente algo grande aconteceu entre 3500 e 3000 a.C. que transformou a vida na Europa. Algo que causou um salto tecnológico sem precedentes e do qual as marcas se percebem em povos tão diferentes quanto celtas e aqueus, irlandeses e gregos. Segundo o arqueólogo Dinc Sarac, da Universidade de Bilkent, na Turquia, esse algo mais foi a chegada de um povo vindo do leste (de uma região entre a atual Ucrânia e o sul da Rússia), em levas migratórias que durou séculos. “Essa teria sido a ‘descoberta’ da Europa, uma viagem épica só comparável à chegada dos europeus na América, 4 500 mil anos depois”, afirma Sarac, que pesquisa as migrações transcaucasianas e suas influências sobre o povoamento europeu.

Especialistas como Sarac chamam esses descobridores de indo-europeus primitivos e acreditam que, em algum momento entre o quarto e o terceiro milênio antes de Cristo, eles deram início a sucessivas ondas migratórias que os fragmentou em diversos grupos lingüísticos. Uns tomaram o rumo da Índia, influenciando e formando novos povos como os armênios, indo-iranianos, tocarianos e hititas. Outros seguiram para a Europa, onde mais tarde dariam origem aos eslavos, celtas, itálicos, aqueus, jônios, eólios e germânicos. “Eles não formavam uma única sociedade, sólida e organizada, tampouco uma civilização comum. Cada grupo evoluiu de maneira independente, em diferentes épocas e para diferentes lugares, num movimento que chegou a levar séculos”, diz Sarac.

Na verdade, os indo-europeus não tinham sequer um nome para designá-los. O único que receberam surgiu apenas em meados do século 20, quando a antropóloga e arqueólogoa lituana Marjia Gimbutas elaborou uma teoria que deu nova luz à origem dos povos da Europa. Além de algumas hipóteses ainda hoje questionadas pelo meio científico (mas amada pelo neopaganismo new age – religiões que na virada do milênio praticam rituais xamãnicos e adoram entidades da natureza), como a idéia de que se tratava de uma sociedade matriarcal, Gimbutas batizou os primeiros indo-europeus de Cultura Kurgan. Eram assim chamados porque enterravam seus mortos em covas profundas, um método não muito convencional para a época e que caracteriza, segunda ela, esse período e seria um traço comum aos povos que migraram para a Europa nesse período.

Outra coisa em comum é a língua. Em turco, a palavra “kurgan” quer dizer túmulo, sepultura. O mesmo significado que ela tem em eslavo. “De fato, a língua é a chave mais importante nesse tipo de pesquisa que procura revelar a origem tão distante de civilizações tão díspares. Ela mostra que povos que hoje são separados por milhares de quilômetros têm ancestrais comuns. O idioma dos tocarianos (que viveram numa região próxima à China), por exemplo, tem uma forte ligação com o dos germânicos”, diz o antropólogo americano Roger Pearson, editor e fundador do The Journal of Indo-European Studies.

Segundo o antropólogo Jos Stepahnek, checo de nascimento, mas radicado na Universidade de Atenas, na Grécia, essas coincidências lingüísticas são, ainda, um forte indício da presença de um elemento novo, que se impôs e se espalhou por todo o continente.

O invasor

Mas afinal, quem eram os kurgans? Stepahnek diz que eles eram politeístas que acreditavam num deus principal e cultuavam divindades da natureza, como a Lua e a aurora. Não eram tão avançados quanto as civilizações que começavam a se formar nos vales dos rios Nilo, Tigre e Eufrates. Não chegavam nem perto disso. Mas estavam à frente dos povoados que já existiam na Europa. Tinham domesticado o cavalo, usavam carroças de duas ou quatro rodas feitas de madeira maciça, produziam objetos de cobre (facas, adagas e punhais) e possuíam utensílios de ouro e prata, como vasos, contas de colares e anéis.

Diversos animais faziam parte de seu dia-a-dia. Criavam porcos, ovelhas e cabras, mas o cavalo era o mais importante de todos. Além de servirem como meio de transporte, alguns especialistas sugerem que os kurgans sacrificavam cavalos em rituais de sepultamento. Nos sítios arqueológicos da Rússia e da Ucrânia, os ossos dos eqüinos eram os mais numerosos. Mas também foram achados ossos de cervos, alguns dentro dos túmulos de crianças. Sobras de caças? Não exatamente. É certo que os primeiros indo-europeus não foram caçadores e nem grandes agricultores. Então, o que os ossos faziam na tumba dos pequenos kurgans? Provavelmente, não passavam de simples regalos da vida terrena, pois funcionavam como uma espécie de dado em inocentes jogos de apostas.

Para os adultos, os ossos serviam apenas como ornamentos e pequenos utensílios (furadores, talhadeiras e polidores, por exemplo). Suas armas já estavam em outro estágio de evolução, embora o tipo e o grau de desenvolvimento também dividem os pesquisadores. É certo que eles possuíam objetos de cobre e conheciam o estanho, mas ainda não dominavam as técnicas de fundição do bronze, o que só viria a acontecer alguns séculos mais tarde, quando já estavam na Europa. “Os primeiros indo-europeus não eram guerreiros. Além disso, poucos povos dominavam a metalurgia do bronze no terceiro milênio antes de Cristo”, diz o antropólogo italiano Brunetto Chiarelli, professor da Universidade de Firenze.

Para Stepahnek, no entanto, os povos da cultura kurgan já possuíam espadas quando começaram a migrar para lugares mais distantes, levando sua cultura às populações menos avançadas. “Eles conheciam o bronze e produziam armas. Foi assim que resistiram aos conflitos entre vizinhos em seu próprio território, coisa que era muito comum e que, em determinado momento, pode até ter contribuído para que migrassem rumo à Europa”, diz Sarac. “Porém, não foi encontrado nada que indique que a ocupação da Europa tenha sido feita à força. Nada parecido com os indícios de massacres da América. Parece que, embora eles não fossem essencialmente guerreiros – ao contrário, o pastoreio era a principal atividade – sabiam se defender muito bem.”

Além dos vizinhos, eles tinham outro inimigo no Cáucaso: as baixíssimas temperaturas, que chegavam fácil, fácil nos 20 graus negativos. Para eles, qualquer pontinho acima do zero grau já era lucro. Por isso, suas casas tinham fundações de pedra e eram semi-subterrâneas – ou seja, metade embaixo da terra, metade em cima. Nada muito diferente do que acontecia em terras armênias até pouco tempo atrás e que ainda hoje existe no deserto de Gobi. Os kurgans moravam em dois tipos de povoados. Os mais simples não passavam de pequenos vilarejos, sempre ao lado de rios ou córregos, e tinham de dez a 20 casas retangulares, com telhados sustentados por toras finas de madeira. Todas as moradias possuíam pelo menos uma lareira, geralmente feita de pedra. As vilas maiores chegavam a pouco mais de 200 casas e também ficavam perto de rios e florestas. As vilas eram bem protegidas e cercadas por muros de pedra, que podiam chegar a três metros de altura.

Quando chegaram à Europa, os kurgans não mantiveram uma unidade social. Alguns grupos foram rechaçados, outros, a maioria, foram incorporados pelas comunidades locais. Eles trocaram influências e deram origem a outros povos. Alguns se estabeleceram na parte setentrional, outros foram para o norte, uma leva foi para o sul e alguns chegaram até a Grã-Bretanha. Obviamente, esse processo não aconteceu da noite para o dia. Séculos e séculos de migrações e miscigenações se passaram. No meio do caminho, muitos povos resultantes dessa miscigenação simplesmente desapareceram sem deixar qualquer rastro. Outros sofreram tantas mudanças que a principal herança dos antepassados manteve-se presente apenas na língua – e, mesmo assim, com muitas transformações.

Mas essas interações originaram subgrupos que mais tarde atingiram um alto grau de desenvolvimento. Os celtas, por exemplo, estão entre os mais antigos e espalharam-se por boa parte da Europa até serem conquistados pelos romanos. Hábeis na fabricação de objetos de bronze, foram um dos povos europeus mais importantes nos séculos que antecederam a supremacia de Roma. Acredita-se que sua terra de origem seja a região onde hoje ficam a Suíça, Áustria e Alemanha, mas eles chegaram até a Grã-Bretanha e a Península Ibérica.

Outro grupo descendente dos kurgans que viveu dias de glória foram os aqueus. Eles chegaram aos Bálcãs por volta de 2000 a.C. e fundaram diversas cidades, como Micenas e Tirinto. Cinco séculos depois, invadiram a ilha de Creta e assimilaram sua cultura. Aperfeiçoaram sua agricultura, navegação, comércio e construção de armas. Foi aí que nasceu a civilização creto-micênica, que serviu de base para a sociedade grega.

No oriente, os indo-europeus chegaram praticamente até a China e deram origem a povos como os hititas e indo-iranianos. Mas esta já é outra história. Agora, é melhor voltar para o século 21.



Tese é polêmica
Ainda há muito a ser descoberto
Já faz mais de 200 anos que o lingüista inglês William Jones descobriu a surpreendente afinidade entre o grego, o latim e o sânscrito. Na época, observou que muitas palavras destas línguas tinham o mesmo radical e, por conseqüência, poderiam ser derivadas de um mesmo idioma. Alguns anos mais tarde, no início do século 18, outro inglês, chamado Thomas Young, batizou esta língua comum de indo-europeu. Assim, nasciam as primeiras teses sobre a origem e a expansão destes povos. Ainda hoje, a unidade lingüística é um dos principais fundamentos das teorias sobre os ancestrais dos europeus. Mas muita coisa mudou nas últimas décadas.

O primeiro grande salto ocorreu no século passado, com a teoria da antropóloga lituana Marjia Gimbutas, segundo a qual a origem dos indo-europeus seria a atual Ucrânia, entre o Cáucaso e o mar Negro. Baseada em achados arqueológicos, ela afirmou que estes povos já haviam domesticado o cavalo e possuíam armas de bronze, um grande avanço para a época. Eles teriam começado a migrar para a Europa por volta de 3000 a.C., assimilando as comunidades locais e dando origem a vários povos que, séculos depois, formariam as grandes civilizações do mundo antigo. Ainda hoje, a teoria de Gimbutas é a mais aceita entre os estudiosos, mas com algumas mudanças importantes. O americano James Mallory, professor da Universidade da Califórnia, acredita que as migrações começaram em 4000 a.C. – ou seja, antes da época apontada pela antropóloga lituana. Já o arqueólogo inglês Colin Renfrew, professor da Universidade de Cambridge e um dos maiores especialistas no assunto, sugere que os primeiros indo-europeus começaram a migrar para a Europa a partir da atual Turquia por volta de 7000 a.C. Para Renfrew, eles eram agricultores em busca de novas terras.

As teorias, aparentemente contraditórias, podem se completar. “Como não temos provas escritas, dificilmente chegaremos a uma verdade absoluta. Mas existe um consenso entre parte dos estudiosos acerca das teorias de Gimbutas e Renfrew”, diz o antropólogo americano Roger Pearson, fundador do The Journal of Indo-European Studies.

Outros, porém, crêem numa terceira via: a Teoria da Continuidade do Paleolítico, que diz que os europeus evoluíram de comunidades neolíticas. A principal evidência seriam estudos que mostram que 80% dos genes dos atuais europeus conferem com as análises de DNA dos povos locais no Paleolítico. Mas isso não convence os que acreditam nas ondas migratórias. “Uma pandemia acabou com diversos povoados do neolítico e não podemos afirmar que eles são nossos ancestrais diretos", diz o antropólogo italiano Brunetto Chiarelli, da Universidade de Firenze.


Longa estrada da vida
As ondas migratórias duraram mais de 2 mil anos
4400 – 4200 a.C.

Os indo-europeus partiram da região do Cáucaso por volta do ano 4000 a.C., em direção à Europa e à Índia. Foi a primeira de uma série de ondas migratórias, que mudaram a história dos povos antigos

3500 – 3000 a.C.

As migrações eram muito lentas. Podiam demorar séculos e até milênios. Por volta do ano 3000 a.C., os indo-europeus estavam próximos aos Bálcãs. Mas chegaram de vez à região apenas 500 anos depois

3000 – 2500 a.C.

Os povos das estepes russas chegaram à Europa Setentrional por volta de 2500 a.C. Depois de assimilar e influenciar as culturas locais, acredita-se que deram origem aos eslavos, germânicos e celtas

Migrações sucessivas

Apesar da unidade lingüística, os indo-europeus continuaram migrando de maneira independente, em diferentes épocas e para diferentes lugares. Eles nunca formaram uma sociedade sólida e organizada


Passado europeu
Vestígios de pedra e de barro. De ferro e cerâmica
8000 – 3500 a.C. - Neolítico

As comunidades iniciam um período de desenvolvimento econômico, social e tecnológico. Surgem os indo-europeus em 5 000 a.C., no Cáucaso, provavelmente. Mil anos depois,começam as migrações. A estatueta ao lado, encontrada no Líbano, data dessa época

3000 – 1100 a.C. - Idade do Bronze

O uso cada vez mais comum de utensílios de cobre muda as formas de organização econômica e social em algumas regiões da Ásia Ocidental. Estas técnicas de metalurgia logo chegam à Europa, pela Península Balcânica. No início dessa época, as ondas migratórias indo-européias estavam em pleno funcionamento

5000 – 3000 a.C. - Kurgan

Foram os primeiros indo-europeus. Moravam nas estepes das atuais Rússia e Ucrânia e eram pastores nômades que deram origem às principais civilizações clássicas. Eram mais avançados que os povoados europeus, mas estavam distantes dos mesopotâmios e egípcios

3000 a.C. - Mesopotâmia

Enquanto outros povos não passavam de comunidades agrícolas, a Mesopotâmia já possuía cidades, havia inventado a escrita cuneiforme e uma organização político-social jamais vista na história

3000 a.C. - Egípcios

Na época em que os indo-europeus estavam engatinhando, os egípcios davam os primeiros passos para a formação de uma civilização organizada. Já dominavam técnicas avançadas de irrigação e construção de canais e haviam criado a escrita hieroglífica

2000 – 1500 a.C. - Gregos

Sofreram intensa influência dos povos indo-europeus chamados aqueus. Eles dominaram a região dos Bálcãs no século 15 a.C., após invadirem e assimilarem a cultura da ilha de Creta, uma das civilizações mais avançadas da época


Saiba mais
Livros

Proto-Indo-European Culture: the Kurgan Culture During the 5th to the 3rd Millennia B.C. , de Marija Gimbutas, New and Updated, 1970 - A gênese das teorias sobre os indo-europeus está neste livro, publicado pela antropóloga romena. É o ponto de partida de qualquer estudo, abrangente ou não, sobre a origem destes povos.

Archaeology and Language. The Puzzle of Indo-European Origins, de Colin Renfrew, Cambridge University Press, 1996 - Um dos maiores especialistas no assunto no mundo faz uma espécie de leitura atualizada da teoria de Gimbutas.

Origini delle Lingue d’Europa – La Teoria della Continuità, de Mario Alinei, Il Mulino, 2000 - Defende teoria da continuidade, coloca em xeque as idéias mais aceitas hoje em dia. Em dois volumes.

Sites

www.jies.org - Página do The Journal of Indo-European Studies, traz artigos recentes e é o melhor complemento de qualquer leitura sobre o assunto. Mas é preciso pagar para ter acesso aos textos

www.continuitas.com - É o site oficial dos defensores da Paleolithic Continuity Theory, o principal contraponto às hipóteses mais aceitas pelo meio científico atualmente

Revista Aventuras na História

Muro de Berlim - A revolução que salvou o mundo

Há vinte anos, os alemães-orientais derrubaram o Muro de Berlim, libertando-se de quatro décadas de totalitarismo e enterrando para sempre a experiência comunista. Os efeitos do regime falido são sentidos até hoje na antiga Alemanha Oriental, mas prevê-se que em dez anos não haverá diferenças no país reunificado

Diogo Schelp, de Berlim


Peter Turnley/Corbis /Latinstock

A QUEDA
Em 11 de novembro de 1989, dois dias depois de os alemães-orientais forçarem a passagem para o Ocidente, os guardas do regime comunista ainda tentavam, sem muita vontade, impedir que o muro fosse desmantelado

Em Berlim, para lembrar é preciso olhar para baixo. As cicatrizes estão marcadas no chão da capital da Alemanha. Discreta, quase imperceptível, uma estreita faixa de paralelepípedos corta uma avenida de asfalto impecável, invade a calçada e desaparece sob a parede de um moderníssimo prédio. Em outros trechos, a menção ao símbolo maior da Guerra Fria traz uma mensagem mais direta: placas de metal encravadas no solo com a inscrição "Muro de Berlim – 1961-1989" informam que por ali passava a barreira que dividiu a Alemanha, a Europa, a Terra. A queda do muro, em 9 de novembro de 1989, foi um desses eventos raros em que a ruptura com o passado é tão brusca que uma única data marca o início de uma nova era. O efeito mais óbvio daquela noite de outono berlinense, em que os alemães-orientais forçaram a abertura das fronteiras para o oeste, foi dar um fim ao conflito entre Estados Unidos e aliados no mundo civilizado e União Soviética. A Guerra Fria, como se chamava esse conflito, se não resultou em embate direto entre as duas superpotências nucleares, por causa do risco de aniquilamento total, configurou o planeta em metades capitalista e comunista que descarregavam a tensão permanente em guerras localizadas, como a da Coreia e a do Vietnã. Com a queda do muro, a Alemanha voltou a ser uma só nação e ficou evidente quem eram os vencedores: o capitalismo, a democracia, a liberdade. O ano de 1989 representou, assim, o fim da história para o comunismo, um regime que, nos países em que se instalou à força de baionetas, ceifou 100 milhões de vidas e eliminou o horizonte de progresso material e espiritual de quem estava sob seus tacões. Nos dois anos seguintes, o império soviético esfacelou-se por completo. Hoje, o sistema que o engendrou sobrevive como curiosidade quase que zoológica apenas numa ilha do Caribe e na metade de uma península asiática. Até a poderosa China, nominalmente comunista, aderiu ao capitalismo, embora esteja a milhões de anos-luz de ser democrática.

Evidentemente, não foi preciso esperar até 1989 para constatar o fracasso do socialismo. A própria construção do Muro de Berlim, iniciada em 13 de agosto de 1961, foi motivada pela incapacidade do sistema de cumprir as promessas de uma vida melhor à população. Até aquela data, 3 milhões de pessoas haviam fugido da Alemanha Oriental para a Ocidental. "Para evitar o colapso do país por falta de gente, o regime comunista precisou prender os seus cidadãos, e não havia maneira mais barata de fazer isso do que construir um muro", diz o historiador inglês Frederick Taylor, autor de Muro de Berlim – Um Mundo Dividido – 1961-1989. Na órbita soviética, cultivava-se a ideia de que, como os alemães eram um povo eficiente, seriam capazes de fazer o socialismo funcionar e, assim, transformar o seu país numa vitrine do sistema. De fato, os alemães-orientais eram mais eficientes do que os seus companheiros do Leste Europeu. Tanto que exacerbaram, mais do que em qualquer outra latitude, o único atributo comunista: o total controle do estado sobre os cidadãos. Controle este que se estendia aos intestinos das crianças. Na pré-escola, todas eram obrigadas a ir ao banheiro na mesma hora.



Fotos reprodução e AFP


OPRIMIDOS E OPRESSORES
À esquerda, crianças comemoram a chegada dos aviões aliados a Berlim, bloqueada pelos soviéticos em 1948. À direita, em 1962, guardas da RDA recolhem o corpo de Peter Fechter, morto ao tentar pular o Muro de Berlim

Não havia uma Polônia Ocidental ou uma Hungria Ocidental, mas havia uma Alemanha Ocidental. Para além de se haver com a total irracionalidade de um sistema que havia banido a propriedade privada e a liberdade de opinião e associação, a República Democrática Alemã (RDA), como era chamada oficialmente a Alemanha Oriental, tinha de se confrontar com a laboriosidade dos alemães-ocidentais, que, dos escombros da II Guerra, construíram uma das nações capitalistas mais pujantes do planeta. No fim da década de 70, os dirigentes da Alemanha Oriental admitiram, para sua vergonha, que o desenvolvimento tecnológico da RDA estava duas décadas atrasado em comparação ao da República Federal da Alemanha (RFA). Provavelmente o abismo era ainda maior, e ele só fez aumentar com o passar do tempo. Em Berlim Oriental, a paisagem urbana era dominada por Trabants, um modelo de carro da década de 50 produzido na RDA. Enquanto no Ocidente a indústria automobilística equipava os veículos com acessórios eletrônicos cada vez mais modernos, o Trabant funcionava com um motor de dois tempos. Para comprar um, era preciso colocar o nome numa lista e esperar quinze anos. "Como resultado, um Trabant usado era mais caro do que um novo", diz o historiador berlinense Hanno Hochmuth. Uma contradição mais do que dialética.

A baixíssima produtividade da indústria da RDA é considerada um dos principais fatores que levaram à queda do muro. Não havia imprensa livre no país, mas não era preciso recorrer aos jornais para verificar o desastre econômico. As fábricas obsoletas, muitas das quais com equipamentos da década de 30, ora não contavam com peças de reposição para as máquinas, ora ficavam sem matéria-prima para produzir. A oferta de produtos era muito limitada. Café e banana, por exemplo, eram artigos de luxo. Como em outros países comunistas, as pessoas acostumaram-se a sair de casa sempre munidas de sacolas. Se encontrassem uma fila na porta de uma loja, entravam, mesmo sem saber o que estava à venda.

A falta de produção e, consequentemente, de recursos explica em parte por que a RDA gostava tanto de fazer presos políticos. A liberdade de cada um deles podia ser vendida por até 100 000 marcos ao governo da Alemanha Ocidental, o equivalente hoje a 50 000 euros. Entre 1963 e 1989, 3,5 bilhões de marcos ocidentais foram parar nos cofres do regime comunista por causa desse tipo de sequestro oficial. O principal objetivo do estado policial da Alemanha comunista, no entanto, era manter a submissão ideológica de seus cidadãos. Nisso, a eficiência também era germânica. A Stasi, corruptela em alemão para Segurança de Estado, era um ministério que abarcava inúmeras funções de repressão, desde a espionagem internacional e doméstica até a investigação criminal. Seus mais de 90 000 funcionários diretos e 180 000 informantes vasculharam em detalhes a vida de um em cada três habitantes da Alemanha Oriental. "Não dava para saber em quem confiar, pois houve casos de dedos-duros entre casais, irmãos e até pais e filhos", diz o historiador Bernd Floriath, pesquisador da repartição pública que administra os arquivos da Stasi. "Na minha ficha, por exemplo, descobri que minha vizinha contava até o número de garrafas de vinho da minha lata de lixo." Uma questão incômoda na Alemanha atualmente é se pessoas que espionaram para a Stasi no passado podem ocupar cargos públicos de destaque. Muitos ex-colaboradores da repressão comunista estão hoje ascendendo na política. A maioria é filiada ao partido Die Linke (A Esquerda), um herdeiro do Partido Comunista da RDA cuja representação no Parlamento alemão aumentou em 30% após as eleições deste ano. A chanceler Angela Merkel é um dos poucos políticos oriundos da Alemanha Oriental sem um passado a esconder.



Fotos reprodução, Corbis/Latinstock e Album/AKG/Latinstock


AMEAÇAS AO MURO
No alto, Kennedy olha por cima do muro, em 1963. À esquerda, guarda encarregado de vigiar a barreira foge para o lado ocidental. À direita, igreja situada na "zona da morte" é implodida, em 1985

As informações recolhidas pela Stasi eram usadas para punir os cidadãos que não se mostrassem "bons comunistas". Função semelhante tinham as diversas organizações militares ou paramilitares da RDA. "A militarização da sociedade tinha como objetivo quebrar a vontade própria do indivíduo e começava já no jardim de infância", diz Tom Sello, um dos 3 000 alemães-orientais que se arriscaram a fazer oposição na Alemanha Oriental. Entre outras atividades, as crianças tinham de fazer simulações de manobras contra hipotéticas invasões capitalistas. Na adolescência, os alunos eram pressionados a aderir à Juventude Livre Alemã, uma organização paramilitar que tinha entre suas atividades quebrar as antenas de TV dos moradores que assistiam aos canais ocidentais. Impedidos de viajar, era assim que os cidadãos sob o regime comunista verificavam que a vida do outro lado era muito melhor. A região de Dresden, onde as características topográficas dificultavam a captação de sinais de TV do Ocidente, era chamada de Vale dos Inocentes.

Muro derrubado, a Alemanha voltou a ser um só país em 1990. Até agora, o custo da reunificação já bateu em 1,5 trilhão de euros. No início, o processo produziu uma espécie de milagre alquímico: os alemães-orientais puderam trocar seu dinheiro por marcos alemães-ocidentais, então uma das moedas mais fortes do mundo, na proporção de 1 para 1. No mercado negro a proporção era de 1 para 5. Quase vinte anos depois, os efeitos são vistosos na infraestrutura. A porção oriental de Berlim reluz como a parte ocidental e as rodovias no antigo território oriental são melhores do que as do resto da Alemanha. Mas os problemas permanecem, se não insuperáveis, bastante grandes. Os subsídios governamentais atraíram empresas para o leste, mas não na proporção necessária para empregar todos os trabalhadores. Além disso, os sindicatos alemães não aceitaram que os salários fossem mais baixos nos estados que compunham a Alemanha Oriental, o que seria natural dada a menor qualificação dos trabalhadores de lá. Desse modo, as empresas em busca de mão de obra mais barata preferiram instalar-se, em sua maioria, nas outras ex-repúblicas comunistas – que adoraram, é claro, receber o investimento.

O corolário do sindicalismo míope é que o desemprego entre os alemães-orientais é o dobro do registrado no restante da Alemanha e, nos últimos vinte anos, a migração para a parte ocidental fez a região perder 8% de sua população. Um passeio a pé por Halle, uma importante cidade industrial nos tempos da RDA, deixa claro o perfil dos que saem do leste: há poucas mulheres jovens nas ruas. Uma em cada cinco residências de Halle está abandonada, e o governo chegou a demolir modernos conjuntos habitacionais cons-truídos após a reunificação, por falta de gente para morar. "O erro maior é acreditar que os problemas econômicos e demográficos são culpa da reunificação ou da transição para o capitalismo", diz Udo Ludwig, do Instituto de Pesquisas Econômicas de Halle. "Na verdade, tudo isso ainda é efeito das décadas em que estivemos apartados do resto da Alemanha." É como um braço amputado: depois de reimplantado, custa a fun-cionar normalmente.

A Alemanha Ocidental tornou-se uma potência exportadora nos anos 50 e 60, quando tinha pouca concorrência internacional. Já a Alemanha Oriental fez a transição para a economia de mercado em um momento em que a disputa é bem mais acirrada: além de todo o Leste Europeu, há a China, o novo chão de fábrica do mundo. Pouco a pouco, no entanto, a diferença entre os alemães está diminuindo. O PIB per capita no leste da Alemanha é de 75% da média nacional. "Os alemães-orientais devem alcançar a proporção de 85% em dez anos", diz Wolfgang Tiefensee, até o mês passado titular do Ministério para a Reconstrução do Leste. Desde 2005, as ofertas de emprego na região aumentaram. E mesmo os que não têm trabalho vivem melhor com a renda do seguro-desemprego do que há vinte anos sob o comunismo. Como explicar, então, a onda de "ostalgia" (neologismo que une as palavras ost, leste em alemão, e nostalgia)? "A questão é que centenas de milhares de pessoas perderam a posição de destaque que tinham na RDA e hoje têm de se contentar com atividades de status mais baixo", diz Rainer Eckert, diretor do Fórum de História Contemporânea de Leipzig.

Como não poderia deixar de ser, a reunificação alçou a Alemanha a um novo patamar de liderança externa e a queda do muro deu impulso à União Europeia. "A UE expandiu-se rapidamente para o leste, onde se mostra fundamental para melhorar a gestão pública e manter a estabilidade", diz o historiador inglês Tony Judt, especialista em Europa. O fim do comunismo, representado pela derrubada do muro, também propiciou a aceleração do processo de globalização econômica e o enfraquecimento das visões estatizantes em países como o Brasil e a Índia, hoje duas potências emergentes. Há vinte anos, porém, a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher e o presidente francês François Mitterrand tinham calafrios ao imaginar a possibilidade da reunificação do país. "Gosto tanto da Alemanha que prefiro duas", dizia Mitterrand. Recentemente, a divulgação de gravações feitas pelos russos revelou que Thatcher chegou a pedir ao líder soviético Mikhail Gorbachev que impedisse a reunificação. Em 1990, Thatcher disse a Gorbachev: "Toda a Europa está assistindo a tudo isso não sem uma dose de temor, lembrando muito bem quem começou as duas guerras mundiais". Lothar de Maizière, o último governante da RDA, diz que foi o chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, quem conseguiu convencer Mitterrand de que não era preciso se preocupar com as ambições da Alemanha. Thatcher era mais resistente. "Eu próprio tentei tranquilizá-la, dizendo que ninguém na Alemanha pensava em fazer reivindicações de território ou colocar em dúvida as fronteiras existentes", conta De Maizière.



Fotos Peter Turnley/Corbis/Latinstock e Sygma/Corbis/Latinstock

PROTAGONISTAS
À esquerda, Gorbachev e Erich Honecker, líder da RDA, ambos de chapéu, um mês antes da queda do muro. À direita, Reagan e Thatcher, em 1987

As preocupações de Thatcher eram perfeitamente justificadas para alguém que conheceu as agruras da II Guerra e se criou politicamente no período de tensões da Guerra Fria. Para não causar mais problemas, a Alemanha derrotada em 1945 emergiu do conflito partilhada pelas forças de ocupação. Foram criados um setor americano, um francês, um inglês e um soviético. Esse padrão se repetiu na capital, Berlim, encravada no coração do território alemão sob influência soviética. Em 1949, a Alemanha foi dividida em dois estados, um comunista e um capitalista. Nesse contexto, Berlim tornou-se o palco de alguns dos momentos mais críticos da Guerra Fria. Em 1948, Stalin, que queria Berlim inteira para si, ordenou um bloqueio à parte ocidental – furado por uma ponte aérea organizada pelos americanos. Ninguém resumiu tão bem o significado de Berlim como centro de resistência ao totalitarismo comunista quanto o presidente americano John Kennedy, em visita à cidade, em 1963. Em discurso aos moradores da parte ocidental, ele disse: "Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim. E é assim, como um homem livre, que me orgulho dessas palavras: eu sou berlinense!".

O Muro de Berlim não teria caído em 1989 se não fosse pelo líder soviético Mikhail Gorbachev. "O russo, ele próprio às voltas com reformas na União Soviética, deu espaço às outras repúblicas comunistas do Leste Europeu para experimentarem algum tipo de abertura", diz o americano Michael Meyer, autor do livro 1989 – O Ano que Mudou o Mundo. O presidente americano Ronald Reagan, Thatcher e Kohl souberam aproveitar a disposição de Gorbachev de reduzir as tensões entre os blocos comunista e capitalista, e a nova realidade política foi interpretada da seguinte forma no Leste Europeu: "O líder soviético não está disposto a usar a força para salvar o comunismo". Em maio de 1989, Miklós Németh, o primeiro-ministro reformista da Hungria, mandou desativar a cerca elétrica na fronteira de seu país com a Áustria. Estava aberta a primeira brecha na Cortina de Ferro. Atropelado pelas reformas iniciadas nos países vizinhos e pela crescente onda de protestos, o governo da RDA ensaiou uma tímida lei que permitiria aos cidadãos viajar ao exterior. No dia 9 de novembro, ao final de uma entrevista coletiva com jornalistas ocidentais, o porta-voz do regime Gunter Schabowski comentou as novas regras para viagens. "Quando isso entra em vigor?", perguntou um jornalista. "Imediatamente", respondeu Schabowski, um pouco confuso.

Na verdade, o plano era que as viagens pudessem ser feitas a partir do dia seguinte e de maneira organizada. Mas, logo nas primeiras horas após a entrevista, uma multidão começou a se aglomerar nos postos de controle do muro e a exigir o direito de passar para o outro lado. Um chefe da guarda acabou cedendo. A festa atravessou a madrugada e continuou no dia seguinte, quando marretas e picaretas começaram a ser empregadas para arrancar os primeiros pedaços do muro. A razão imediata que levou à queda dessa barreira ignóbil foi a mesma que justificou a sua construção: o desejo dos cidadãos de deixar para trás a claustrofobia do regime comunista. Vinte anos após a queda do muro, os pés dos berlinenses ignoram as linhas que sinalizam a localização da barreira da vergonha. Eles cruzam de um lado para outro sem tomar conhecimento da extinta divisão entre leste e oeste. Não podia haver exaltação maior à liberdade.


Saiba mais http://veja.abril.com.br/111109/revolucao-que-salvou-mundo-p-126.shtml

Revista Veja

Por que alguns países têm mais de uma capital?


Por que alguns países têm mais de uma capital?
Beatriz Santomauro (bsantomauro@abril.com.br). Com reportagem de Rita Trevisan


O processo de formação dos mercados capitalistas exigiu a centralização do poder político, originando o conceito de capitais, que funcionam como um único centro político e sede dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das nações. Porém há países em que isso não ocorre e mais de uma capital é adotada. Confira alguns exemplos:

- Bolívia: tem duas capitais desde a Guerra Civil de 1825. Sucre é a oficial, onde está o Judiciário, e La Paz é sede do Executivo e Legislativo (veja a imagem ao lado).

- Botsuana: Gaborone sedia os poderes Executivo e Legislativo, e a cidade de Lobatse, o Judiciário. Gaborone foi escolhida por ser o antigo posto administrativo colonial.

- África do Sul: tem três capitais. A sede do Legislativo é a Cidade do Cabo, Bloemfontein, do Judiciário, e Pretória, do Executivo. A descentralização ocorreu para dificultar a tomada de poder pelos negros, que viviam segregados.

- Holanda: a capital oficial é Amsterdã, por ser lá a sede da família real. Já o parlamento fica em Haia.

Revista Nova Escola