São Jorge contra o dragão de cada dia
Santo guerreiro supera resistências e conquista devotos
FRANCISCO LUIZ NOEL
Procissão de São Jorge em Quintino, no Rio de Janeiro / Foto: Divulgação
Provas
de que ele teria vivido um dia em carne e osso são inexistentes, assim
como relatos documentados de seus milagres, sem contar a façanha de ter
abatido um dragão a golpes de lança, desferidos do alto de um cavalo
branco. Nem a Igreja põe a mão no fogo quando o assunto é a vida terrena
de São Jorge, mas os adeptos desse ícone da religiosidade popular no
Brasil não dão a mínima para a reticência das autoridades eclesiásticas e
a resistência dos incrédulos. Aos que só acreditam vendo, os devotos
respondem com a fé nos poderes de proteção do santo guerreiro, cultuado
com reverência fervorosa no dia de sua morte presumida – 23 de abril – e
invocado ao longo do ano como poucas outras santidades do panteão
católico.
Figura de envergadura nacional entre os brasileiros,
São Jorge tem seu maior santuário nas terras cariocas, onde ofusca o
prestígio do padroeiro do Rio de Janeiro, São Sebastião, festejado no
feriado municipal de 20 de janeiro. Um e outro encarnam a condição de
mártir, como militares convertidos ao dogma cristão e perseguidos pelo
Império Romano. “Os dois eram cultuados em Portugal quando teve início a
colonização do Brasil. O primeiro, evocado com grito de guerra no
começo das batalhas campais; o segundo, contra a peste”, diz na
Universidade Federal Fluminense (UFF) a historiadora Georgina Silva dos
Santos, que estuda a religiosidade popular e tem tese de mestrado sobre a
irmandade portuguesa de São Jorge nos tempos da Inquisição.
Na
igreja carioca dedicada a São Jorge, matriz da paróquia do subúrbio de
Quintino, o pároco Marcelino Modelski traça um paralelo entre os adeptos
dos dois mártires. “Os devotos de São Sebastião têm uma característica:
de modo mais expressivo, são católicos tradicionais, fiéis de preceito,
de missa dominical, que têm na Igreja não apenas uma referência
ocasional, mas uma vivência comunitária. É uma fé mais madura, mais
esclarecida, que busca o santo não para pedir coisas, mas como
inspiração para uma vida de santidade, de doação, de desprendimento, de
serviço ao próximo, de amor a Cristo.” O pragmatismo marca os seguidores
de São Jorge, que apelam por proteção e força frente às adversidades do
dia a dia.
Sob o crivo da ortodoxia religiosa, as duas entidades
detêm status distinto no Cânon do Vaticano, que contém uma longa lista
de santos oficiais da Igreja. O respeito devocional ao Dia de São Jorge
não é obrigatório para os fiéis desde maio de 1969, quando o papa Paulo
VI passou a limpo o calendário litúrgico e tornou facultativo o culto de
vários santos destituídos de provas documentais de que tenham existido –
carência de que não partilha Sebastião, com vida comprovada na região
da Itália, no século 3. “Não há dados históricos sobre a vida de São
Jorge, mas, desde o início do cristianismo, a Igreja acolheu e respeitou
o processo de transmissão da devoção”, salienta o pároco de Quintino.
Sempre
figurado com elmo e lança de militar medieval, capa vermelha, cavalo
branco e o dragão subjugado no chão, São Jorge ganhou fama por
personificar valores como fé e coragem diante das forças associadas ao
mal. Padroeiro de Portugal e Inglaterra, da espanhola Catalunha e do
escotismo, o santo é personagem recorrente na cultura brasileira. Além
de venerado em altares e terreiros, inspirou o cineasta Glauber Rocha em
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ícone do Cinema Novo, e
compositores como Jorge Benjor, Caetano Veloso e Djavan. Em São Paulo, é
invocado como protetor pelos corintianos; no Rio, influencia até o
ilegal jogo do bicho. Em 23 de abril, como é grande a jogatina no
cavalo, o animal é “cotado” pelos bicheiros, que pagam prêmios menores
nas apostas feitas no quadrúpede.
Proteção e segurança
Padre
Marcelino e a historiadora Georgina creditam à força de dois fatores a
popularidade do santo guerreiro no Rio: o sincretismo entre o mundo
católico e as religiões afro-brasileiras e o sentimento de insegurança
reinante entre a população. “A associação entre São Jorge e os orixás
africanos contribuiu e ainda contribui para torná-lo uma entidade
popular, ultrapassando os limites impostos por classe social, gênero ou
etnia”, diz a pesquisadora. Para os umbandistas cariocas, ele é Ogum,
guerreiro valente e senhor do ferro, embora a tradição baiana vincule
Jorge a Oxóssi, protetor das matas e ciclos lunares. Por isso, o santo
passou a bater-se com o dragão na Lua, cenário que só aparece aos olhos
dos devotos brasileiros.
O ardor devocional pelo guerreiro, como
intermediário do socorro divino ou como entidade autossuficiente, cresce
de forma proporcional ao medo da violência urbana. “O Rio vive uma
guerra há décadas. O governo se omite, inexistem políticas públicas e a
questão é tratada como problema de polícia, e não de garantia de
direitos; em consequência, as pessoas buscam quem as defenda. Elas
procuram um herói, um lutador, alguém capaz de conter a força do mal, da
morte, da violência. São Jorge faz esse papel”, diz o padre, apontando
uma identificação particular dos jovens com o santo combatente. “A
imagem da vitória sobre o dragão é fortíssima. O devoto diz que é
guerreiro como Jorge e faz tatuagens para mostrar isso. Na oração, reza
que está vestido com as armas de Jorge, como se dissesse: ‘Sou lutador e
vou vencer’.”
Não é por menos que a economia do estado do Rio de
Janeiro para pela terceira vez neste 23 de abril, dia transformado em
feriado pelo governador Sérgio Cabral Filho, que sancionou, em março de
2008, lei aprovada pela Assembleia Legislativa. Autor do projeto, o hoje
deputado Jorge Babu conseguiu alçar a data a feriado municipal no Rio
em 2001, quando era vereador. Fazendo eco a queixas surgidas no meio
empresarial, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizou ação
direta de inconstitucionalidade contra a decisão do governador. Aos
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) cabe, agora, decidir se o
dia do santo guerreiro continuará sendo de descanso ou voltará a ser de
trabalho para os fluminenses.
Muito antes de 23 de abril ser
feriado, a afluência de fiéis à Igreja de São Jorge dava prova da
pujança da devoção popular. Na festa de 2009, estima o pároco Marcelino
Modelski, 100 mil pessoas passaram pelo templo de Quintino, na Rua
Clarimundo de Melo. Para fazer frente ao vaivém das multidões na igreja e
nas barraquinhas ao redor, a paróquia mobilizou 300 religiosos e
leigos. As cerimônias foram abertas às 5 horas, com alvorada ao som de
fogos de artifício, que espocaram também em muitos pontos da cidade.
Nove missas foram celebradas na igreja, com destaque para a das 19
horas, assistida pelo prefeito Eduardo Paes, de blusa vermelha e branca –
as cores do santo. Em seguida, a tradicional procissão saiu pelas ruas
do bairro.
Flores, palmas e espadas-de-são-jorge sobressaem entre
as oferendas comuns ao santo. “Na festa, temos uma equipe exclusiva
para receber as flores, que são passadas diante da imagem, abençoadas e
devolvidas, para ser levadas para as casas”, informa o padre. Há nove
anos na paróquia, ele assinala que a graça mais solicitada ao santo é a
proteção frente às dificuldades da existência cotidiana. Na data, devido
à gigantesca quantidade de fiéis, a igreja não atende confissões e
ministra a comunhão numa capela montada especialmente para a ocasião. A
tradição inclui uma grande queima de velas – “um problema para a igreja e
para os bombeiros”, preocupa-se o religioso. Todos os anos, mais de uma
tonelada de velas alimenta o fogaréu.
Em volta da matriz, a
festa alegra também os donos das barraquinhas. A fé em São Jorge
movimenta um diversificado e multicolorido comércio de bens de cunho
religioso, marcado pela informalidade. Nas barracas, os fiéis encontram
de tudo um pouco com a imagem do santo, incansável na cena em que, do
alto do cavalo, nocauteia o dragão peçonhento. A variedade inclui de
imagens de gesso e outros materiais, em todos os tamanhos, a camisetas
com a estampa do guerreiro, passando por escapulários, gravuras de
parede e adesivos coloridos para vidros e carroceria de automóveis.
Exemplo de fé
Ao
longo dos séculos, o apelo protetor de São Jorge relegou a segundo
plano o exame racional de suas peripécias, a exemplo do que ocorre com
outros santos e figuras lendárias, como o rei Artur, que a história não
comprova ter vivido na Grã-Bretanha do século 6. “Nos domínios da fé
popular, importa mais a eficácia simbólica do que propriamente a
veracidade das informações”, explica a historiadora Georgina. “Ao
prestar culto, o fiel pretende saturar-se da força extraordinária do
santo para lidar com a realidade, injusta e opressora. A superação de um
problema engendra uma relação de gratidão que se perpetua no tempo e
reforça essa dependência.”
Nas pesquisas sobre a construção da
imagem de São Jorge no imaginário popular, Georgina rastreou duas
versões sobre a origem do santo. Segundo a mais antiga, que consta de um
fragmento de texto em grego, ele foi torturado ao recusar-se a cultuar
divindades pagãs. Por manter-se fiel a Jesus, recebeu marteladas na
cabeça, calçou sapatos cheios de pregos, foi cortado a golpes de gládio
(espada curta das legiões romanas) e bicado por aves de rapina. Sua
sobrevivência ao martírio foi obra de Deus, que o fez ressuscitar três
vezes. Numa das voltas à vida, o santo curou um boi, sarou o filho de
uma viúva, ressuscitou 400 pagãos e arrematou o milagre batizando todos
eles.
No século 4, assinala a historiadora, as narrativas sobre
São Jorge foram rechaçadas pelo Concílio de Niceia, que as considerou
destoantes das Escrituras. Nem por isso os seguidores abandonaram o
santo, venerando-o em regiões costeiras do mar Mediterrâneo e no norte
da Europa. No ano 916, nova versão sobre Jorge reforçou sua legenda,
adicionando detalhes mais verossímeis à vida do mártir. Segundo esse
relato, ele foi homem rico na Capadócia, na atual Turquia, integrou o
exército romano e negou-se a curvar-se aos deuses pagãos. Preso por
ordem do imperador Diocleciano, doou os bens aos pobres e amargou
suplícios cruéis, sempre operando milagres. Depois de converter a
imperatriz ao cristianismo, foi condenado à decapitação.
Dragão em cena
O
dragão entrou na lenda numa narrativa popular registrada no século 13
pelo arcebispo Jacopo de Varazze, de Gênova. Na coletânea de histórias
Legenda Áurea, assinala a pesquisadora da UFF, Jacopo relata que o
monstro flagelava a cidade de Lida e saciava a fome com animais
entregues pelos moradores. Extintos os rebanhos, as oferendas passaram a
ser humanas, por sorteio. Quando teve a filha sorteada, o rei não
conseguiu quem a substituísse e foi obrigado a cedê-la ao martírio.
Jorge passava pelo lugar e, vendo a jovem aos prantos à espera do dragão
voraz, matou-o a golpes de lança. Modesto, dispensou a mão da moça,
oferecida pelo pai, e fez dois pedidos ao rei: a propagação da fé cristã
e o socorro aos pobres.
Como guardião da fé e defensor de povos e
territórios, São Jorge foi invocado por espanhóis e portugueses na
resistência às invasões árabes e, do século 11 ao 15, na reconquista da
península Ibérica. Em Portugal, no século 12, uma igreja foi dedicada a
ele pelo fundador do reino, Afonso Henriques. Com a ascensão ao poder da
dinastia dos Avis, o santo foi alçado a patrono do país em formação e
deu nome ao paço real – o Castelo de São Jorge, em Lisboa. Na fase dos
Descobrimentos, na virada do século 15 para o 16, a figura do guerreiro
em luta com o dragão era lembrada pelos portugueses nas aventuras nos
mares e lugares em que aportavam, dando nome a uma ilha nos Açores,
fortificações na costa africana e, no Brasil, à freguesia de São Jorge
dos Ilhéus, em terras que hoje pertencem ao estado da Bahia.
A
popularidade de São Jorge entre os lusitanos difundiu-se com a
incorporação de sua imagem às celebrações do Corpo de Deus, no fim do
século 14, destaca Georgina. A festa de Corpus Christi era a mais
concorrida de Portugal, reunindo o povo, autoridades da Igreja e do
Estado, contando às vezes com a participação do rei. No Brasil, relata a
pesquisadora, o santo guerreiro é venerado desde os primórdios da
colonização portuguesa, no século 16. “A primeira notícia é trazida
indiretamente pelo padre Manuel da Nóbrega, que afirma ter realizado na
Bahia uma procissão do Corpo de Deus, segundo os moldes portugueses.
Portanto, a dar crédito à voz do jesuíta, São Jorge saiu no cortejo de
1549”, observa Georgina.
A historiadora explica que o culto ao
santo tomou impulso no Brasil depois que a família real portuguesa
desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão
Bonaparte. Sob dom João VI, Pedro I e Pedro II, a procissão de Corpus
Christi ganhou pompa, trasladando ao Brasil a presença de São Jorge nas
celebrações. Em sua pesquisa, Georgina reconstituiu o espetáculo de
devoção que caracterizava a data: “A aparição do santo no cortejo era o
clímax da festa. Vestido como um general, sobre um garboso cavalo, o
mártir era saudado com canhonaços. A única figura a rivalizar com ele
era o próprio imperador. O aparato cênico da festa decerto contribui
para destacá-lo entre os santos do panteão católico”.
Da Capadócia ao Corinthians
No
esporte das multidões, a invocação ao santo guerreiro é uma das armas
dos corintianos para vencer o dragão nos gramados. Com sede no Parque
São Jorge, situado no bairro paulistano do Tatuapé, o Corinthians mantém
uma capela dedicada ao santo, representado no altar por uma vistosa
imagem comprada na Turquia pela ex-presidente do clube Marlene Matheus,
esposa do lendário ex-presidente Vicente Matheus, morto em 1997. Talhada
à mão em madeira, a figura do santo foi benzida pelo papa João Paulo II
em 1990, junto com camisas do time levadas ao Vaticano por Marlene e
uma sobrinha, após gestões eclesiais de dois corintianos – o então
cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o monsenhor
Arnaldo Beltrami, capelão do clube, falecido em 2001.
A capela
foi erguida em 1969, perto de uma bica de água em que umbandistas –
entre eles, Pai Nilson, famoso no Corinthians – realizavam rituais com
pedidos a Ogum. “Eu via que o culto a São Jorge era forte na umbanda e
queria para os católicos uma imagem feita no lugar em que ele nasceu,
abençoada pelo papa”, conta Marlene Matheus. A devota lamenta que, nas
procissões feitas no clube em 23 de abril, a imagem usada seja menor, de
gesso, comprada no comércio local. Em 2008, levada pelos fiéis à capela
depois de missa no salão da sede, a figura caiu do andor e
espatifou-se. A comoção foi grande, como se já não fosse pouco o
Corinthians ter ficado de fora do Campeonato Brasileiro de Futebol
daquele ano, rebaixado à segunda divisão.
Marlene Matheus chegou
ao papa, em 1990, graças à intermediação do cardeal Arns, que levou a
questão a auxiliares de João Paulo II, como o brasileiro dom Geraldo
Majella Agnelo, atual cardeal arcebispo de Salvador. Duas décadas antes,
Arns havia saído em defesa de São Jorge quando o guerreiro corria
riscos na reforma de Paulo VI. No livro Corintiano, Graças a Deus, de
2004, ele conta que escreveu um bilhete ao pontífice: “Santo Padre,
nosso povo não está entendendo direito a questão. São Jorge é muito
popular no Brasil, sobretudo entre a imensa torcida do Corinthians, o
clube de futebol mais popular de São Paulo”. Demonstrando atenção ao
tema, o pontífice respondeu também num bilhete, conservado pelo
religioso brasileiro: “Não podemos prejudicar nem a Inglaterra nem o
Corinthians”.
Entre os paulistanos, contudo, São Jorge não tem o
prestígio adquirido no Rio de Janeiro e é bem menos lembrado que Santo
Expedito e São Judas Tadeu. Santo das causas urgentes, Expedito, que
também foi militar romano, é venerado em 19 de abril e atrai mais de 100
mil pessoas à tradicional festa na igreja do Jaçanã; Judas Tadeu,
apóstolo de Jesus e santo dos desesperados, também arrasta multidões a
seu santuário, no Jabaquara, a cada 28 de outubro. No Rio, depois de São
Jorge, outro santo bem cotado, além do padroeiro e de Judas Tadeu, é
Francisco de Assis, protetor dos animais, lembrado em 4 de outubro. Em
alta conta entre os fiéis também estão os santos juninos – Antônio,
religioso português do século 12, festejado no dia 13, e os apóstolos
João e Pedro, nos dias 24 e 29 –, reverenciados de norte a sul do país.
Revista Problemas Brasileiros