segunda-feira, 28 de abril de 2014

Operação Capela - Segredos de convenção


Nos anos 70, sargento Vallejo percorria em sua Kombi disfarçada as paróquias do interior e 'convencia’ padres a colaborar com o regime

Bernardo Kucinski*

Capivari ficou para trás. Próxima parada, Monte Mor. Faz calor. A estrada corta por monótonas lavouras de cana e um ou outro rancho abandonado. Quase não há sitiantes depois da lei da Concentração Fundiária Obrigatória. Mata de sombra também rareia. O sargento Vallejo resmunga. Estradinha pior que tábua de raspar mandioca. A Kombi sacoleja feito britadeira. Vallejo tenta evitar a ressonância dirigindo pelas beiradas. Para essa missão tinha que ser um Ford, ou que fosse um Jipão, ele pensa, sentindo o corpo moído.
Jorge Mascarenhas
"Vallejo estaciona a Kombi numa sombra da pracinha e se aboleta num boteco, para tomar uma cerveja."

Alegaram que a Kombi branca disfarça melhor. De fato, se perguntam ele diz que é da profilaxia. A maioria responde "ah, bom". Sempre perguntam, gente curiosa. Não sabem o que é profilaxia, mas a palavra impõe respeito. Povo ignorante. Se algum mais enxerido quer saber do que, ele fala, é geral, de tudo. É federal, ele arremata. Aí, ninguém pergunta mais nada.

A missão do sargento Vallejo é ultrassigilosa. O codinome é Operação Capela, mas de tão secreta não tem nada escrito. As ordens são todas de boca. Cada expedição dura 20 dias. O duro é ficar longe de casa, almoçando cada dia feijão de tempero diferente, dormindo onde dá. Também não gosta da missão, preferia a tropa. Entrou no Exército para ser soldado, não para ser espião. Mas o major insistiu, missão importante, ele disse. E tinha gratificação por fora. Vallejo não simpatiza com os utopistas, mas não gostou do que fizeram com a madre. Ficou abalado. Uma freira é quase uma santa. Está certo que prometer uma sociedade sem dinheiro e sem exército é estupidez, mas não era o caso de fazer o que fizeram.

Essa é sua quinta sortida. Com o tempo descobriu que leva jeito. Talvez porque estudou em colégio de padre. Muito jeito. O major elogiou. De toda a força tarefa, ele estava se saindo o melhor, disse. Eles são 12, escolhidos a dedo. Cada um fica com uma região.

Vallejo foi selecionado porque sabe tudo de religião. Quando era moço pensou em ser padre. Era o desejo da mãe. Não deu certo. Agora, o destino o colocou de volta dentro das igrejas. Já conhece um punhado de padres. Conseguiu recrutar dois, o padre Gonçalo, de Itupeva, e o padre Laércio, de Rio Pardo. Também descobriu que o dominicano de Bofete era utopista. Dele devem ter arrancado o nome da madre superiora. Sente um pouco de culpa...

O sargento Vallejo trabalha com duas listas, ocultas no fundo do alforje, junto ao revólver e os envelopes de dinheiro. A lista base, como ele chama, é a de todas as paróquias e padres que rezam missa e exercem o sacramento da penitência. São mais de 90 na sua área. Ele nunca pensou que tivesse tanto padre nesse interior largado e pobre de tudo. É uma lista pormenorizada e de aparência inocente. Foi preparada pelo arcebispo. Diz a ordem a que o padre pertence ou se é secular, quanto tempo está na paróquia, idade, de onde veio. Se um deles morre ou é transferido, ele risca, se é novo e não está na lista, ele acrescenta. A outra relação é a dos delegados de polícia, para os quais ele tem que entregar os envelopes. Todo o resto é memorizado. No retorno, ele reporta.

Depois que Vallejo desenvolveu seu método, a missão ficou fácil. Ele chega do meio para o fim da missa e procura o genuflexório mais perto do altar, caminhando com passadas firmes, barulhentas, fazendo-se notar, preocupado e contrito, o chapéu nas mãos juntas, em sinal de humildade e respeito. Terminada a missa dirige-se ao confessionário.

Na primeira confissão cuida de não se precipitar. Faz-se um pouco de bobo. Diz que o demônio está tentando o filho, o rapaz meteu-se numa turma que ataca as autoridades e volta tarde para casa, e nessa turma mistura homem e mulher; pede perdão por não ter educado os filhos no caminho da fé e da Santa Madre Igreja, e pergunta o que fazer. É basicamente essa a primeira conversa. Pela reação do padre ele faz uma primeira classificação. Os carismáticos reagem com severidade, acusam o filho de grave ofensa a Deus e de estarem no caminho da perdição. Exigem que o pai o obrigue a abandonar as más companhias. Os padres simpáticos aos utopistas desconversam, alguns se atrapalham um pouco; a maioria diz que jovens são assim mesmo, Cristo também se voltou contra os fariseus e por isso foi crucificado; nada disso é pecado. Recomendam trazer o filho à liturgia. Absolvem sem prescrever penitência.

Tanto num caso como no outro, o passo seguinte é o contato com o delegado. Por causa disso a Kombi branca é boa. Se fosse só para se confessar na Igreja podia ser qualquer carro, até uma moto servia. Primeiro ele entrega ao delegado o envelope com a gratificação e pede visto na lista e a data. Essa parte não faz parte da Operação Capela. Por isso tem recibo. Todos os delegados estão no programa, por ordem superior.

Tem um ou outro, como o dr. Junqueira, de Chaves, que finge colaborar, mas não passa nada. Ele já se queixou dele pra fábrica. A maioria ajuda, dá a ficha toda. Ele fica sabendo se o padre é devasso, como o de Rio Pardo, se já foi acusado de pedofilia ou se tem caso com mulher, ou alguma acusação pendente, ou se já chegou corrido de outra paróquia.

Esses padres ele traz pro programa fácil, é falar da ficha e eles se apavoram. Foi assim com o padre Laércio e com o padre Venâncio, de Mairinque flagrado forçando uma beata na cama. O bispo abafou os dois casos, mas o delegado tinha as fichas. Esse delegado, o dr. Gumercindo, é dos melhores. O envelope dele é o mais gordo. Merecido. Padre bem conservador ele consegue trazer para o programa mesmo não tendo ficha. É só falar das igrejas incendiadas pelos anarquistas na Espanha. Aprendeu isso no treinamento.

Se o padre é simpático aos utopistas, a diretiva é descobrir quem são seus amigos e se a paróquia oferece curso de alfabetização ou costuma abrigar forasteiros. Mas isso tudo é incumbência do delegado, não é mais com ele. Cabe também aos delegados plantar os olheiros na missa para anotar se os sermões são subversivos. E mandar relatório para a fábrica.

Não deixa de ser divertido, pensa o sargento Vallejo, ao se lembrar da cara do padre Laerte quando ele falou dos meninos do coro. Esse tipo de padre ele odeia. Não tem contemplação, fazem voto de castidade, mas são impostores e pervertidos, só usam batina em vez de calça pra tirar o pau pra fora mais fácil.

A estrada segue esturricada e poeirenta. Já se avista o campanário de Monte Mor, encimando o amontoado de casas. Vallejo lembra da mãe, católica praticante. Deus a tenha. Ela não ia gostar da missão. Pensando bem, não é mesmo coisa boa. Vallejo sente o corpo quebrado depois de tanta trepidação. De fato, a mãe não ia gostar. Nem um pouco. Pensar que ele entregou aquele dominicano de Bofete, um garoto ainda. O rosto redondo e rosado do rapaz não lhe sai da cabeça.

Vallejo estaciona a Kombi numa sombra da pracinha e se aboleta num boteco, para tomar uma cerveja. Ainda é cedo para a missa das 6. Da porta do boteco ele divisa a estrada perdendo-se ladeira abaixo, até atingir o pé do morro, depois subindo morro acima até sumir num fio. Ali é um morro depois do outro. Lavoura mesmo tem pouca. Terra cansada. Muito cupim, isso sim. E os alambiques. Ali tinha sido terra de gente antiga e pinga boa. Pena que veio essa lei e expulsou a maioria.

O corpo quebrado requer cachaça, pensa Vallejo. Depois da cerveja, pede uma dose dupla. Pra matar o bicho, fala. Nada de 51 ou Velho Barreiro. Pinga de alambique. Servem uma de Cabreúva. Ele emborca a dose dupla e mais outra, e a terceira. Da porta do boteco, acompanha o sol se pondo, as sombras se alongando, a estrada se desvanecendo no lusco-fusco. Aqui nem pensão de viajante tem, vou ter que pousar em Sumaré ou Hortolândia, calcula.

Merda de missão especial. Não fosse o relatório dele, o dominicano não seria preso e não pegariam a madre. O sino da igreja toca as badaladas das 6. Vallejo deixa passar 20 minutos, paga e entra na Igreja. A missa está pela metade. Com esse padre ele já se confessou uma vez. Lembra de ter ficado confuso. Não soube classificar. Não parecia da ala carismática nem simpático aos utopistas. Também não era moço nem velho, uns 40 e poucos anos. Esses são os mais difíceis de classificar.

Fez como sempre. Acabada a missa foi se confessar. O padre disse o de costume, confesse seus pecados meu filho que Deus te perdoa. Então, aconteceu. Deu um chilique no sargento Vallejo e ele confessou mesmo tudo, falou da Operação Capela, do dominicano delatado por ele, falou da fábrica, como era, como eles liquidavam uns e outros. Falou até do estupro da freira. Quando terminou estava exausto e suava frio. Na Igreja não havia mais ninguém.

O sacerdote saiu do confessionário, deu a volta, ergueu o sargento Vallejo pelo ombro e conduziu-o, amparado, até a sacristia. Não trocaram palavra. Vallejo, ainda tonto, compartilhou com o padre um caldo de galinha e broas de milho. Depois deitou-se ali mesmo, de comprido, no banco largo de madeira forrado com um acolchoado. Logo caiu em sono profundo. O padre então tirou as botinas do sargento, devagar, para não acordá-lo. Depois o cobriu com uma manta.

Naquela noite o sargento Vallejo respirou pesado. Ao despertar sentiu ter dormido o sono dos justos. Pensou no que fazer. O padre, sentado do outro lado da mesa, nada dizia. Não o admoestava, nem o acarinhava. Só observava. Sobre a mesa, uma coalhada, as broas de milho e as duas listas estendidas, como se o padre as tivesse decifrado.

O café exalava cheiro forte. Vallejo tomou uma xícara, devagar. Foi aos poucos clareando o pensamento. O padre, só olhando. Vallejo tirou da sacola os envelopes com os nomes dos delegados. Em cima da mesa foi abrindo um por um. O dinheiro ele amontoava e os envelopes, rasgava. Depois separou as notas em dois montinhos iguais, uma aqui a outra ali, uma aqui, outra ali. Pediu ao padre mais café. Terminou de dividir. Um dos montinhos ele empurrou para o padre. É o óbolo, disse.

O outro montinho ele enfiou no bolso da calça. Sua bênção, padre. Deus te abençoe, meu filho disse o padre. Vallejo levantou-se, apanhou as listas e as rasgou em pedacinhos. Na porta da sacristia ainda se deteve e deu um aceno de despedida. Depois montou na Kombi e pegou a estrada. Tinha que achar uma funilaria para pintar o carro. Não sei se vendo ou se aproveito para abrir um negócio qualquer de ambulante. Kombi é carro bom pra fazer pastel em feira, ele pensou. Entrou em São Paulo alta madrugada pela Lapa de Baixo. Ao cruzar uma esquina escura parou, desceu da Kombi e atirou seu revólver num latão de lixo.

* Bernardo Kucinski, jornalista e escritor, é autor, entre outros livros, de K - relato de uma busca e Você vai voltar pra mim - e outros contos (Cosac Naify). Este texto inédito é, na definição de Kucinski, uma "história ficcional baseada em fatos".
Jornal O Estado de S. Paulo

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