segunda-feira, 28 de abril de 2014

Reis Magos: origens e tradições populares brasileiras


Bandeira de Folia de Reis
 Xilogravura Bumba-Meu-Boi

Cartaz da “Cabalgata de Reyes Magos” (1999, Sevilha-Espanha)


A história dos personagens cristãos e suas representações na cultura


As celebrações em louvor aos Reis Magos ocorrem basicamente entre o Natal e 6 de janeiro, dia de Santos Reis: é o terceiro momento do ciclo festivo do Natal, que se integra ao patrimônio artístico e cultural. Para alguns, esta alegre manifestação de religiosidade popular teria surgido entre nós; entretanto, ela se originou bem mais remotamente. Esses personagens bíblicos surgem no capítulo 2 do Evangelho de São Mateus, no episódio da Adoração dos Reis Magos, que a eles alude vagamente, sem especificar nomes, categorias, número ou procedência. Após meditação exegética, Apologistas e os Pais da Igreja – Gregório, Ambrósio, Jerônimo, João Crisóstomo, Agostinho e Tomás de Aquino, entre outros, formularam os primeiros dogmas e rituais cristãos e se manifestaram sobre os Magos.

No século VI, os Magos já eram considerados “Reis” e o Papa Leão I, o Grande, fixou-os em número de três. No século XII, em documento atribuído ao monge beneditino inglês Beda, surgem os nomes definitivos: Gaspar, Balthazar e Melchior, e suas descrições foram estabelecidas. Os Magos influenciaram artes e tradições populares desde os primórdios da cristandade. O pesquisador francês Gilbert Vezin, autor da obra clássica “L’Adoration et le cicle des Mages dans l’art chrétien primitif" afirma de modo categórico: “O tema da Adoração dos Magos foi o assunto mais popular e frequente que se expressou na Arte, no Oriente e no Ocidente”.

Na Idade Média, em Creccio-Itália, São Francisco de Assis concebeu, em 1223, a representação da cena da natividade (Presépio), na qual se incorpora a figura dos Reis Magos. Esta criação difundiu-se por toda a cristandade, dando notável impulso ao processo de evangelização da doutrina cristã, passando a estar também presente nos lares mais humildes em zonas rurais e pequenas localidades distantes dos aglomerados urbanos.

Surgiram também estórias e lendas envolvendo os Reis Magos, no sentido de “(...) complementar o que faltava à imaginação popular (...)”, anota o historiador de arte francês Émile Mâle, em artigo publicado nos alvores do século XX, na Gazette de Beaux-Arts. Prossegue o autor: "O povo achava os evangelhos muito suscintos(...). Nenhuma das cenas da infância de Cristo forneceu mais material para o povo que a ‘Adoração dos Magos’. Suas misteriosas figuras mostradas veladamente nos evangelhos despetavam ávida curiosidade nas pessoas.” Dentre essas histórias, sobressai o manuscrito Historia Trium Regum, de Johannes von Hildesheim, carmelita alemão e professor de teologia em Paris, publicado entre 1364-1375, para elucidar a origem dos Magos.

Seus restos mortais, transladados do Oriente para o continente europeu, estiveram desde o século VII abrigados inicialmente num modesto templo construído à época nos arredores de Milão, na Itália. A partir de 1164 seguiram para a Alemanha e encerrados numa urna dourada instalada no altar mor da Catedral de Colônia. Esta grandiosa obra de arte - ouriversaria passou a ser conhecida como “Relicário de Santos Reis”.

O assunto é...

O texto de Hildesheim mereceu ensaio crítico, na reputada coleção "Early English Text Society", em 1876, assinada por seu presidente C. Horstmann, reconhecendo “(...) o grande número de manuscritos espalhados na Inglaterra e por toda Europa cristã, o que comprova a grande popularidade do referido manuscrito”. E conclui: “(...) o assunto dos Três Reis Magos tornou-se um dos temas favoritosda Idade Média, eram os santos mais populares do mundo cristão”. Afora a Terra Santa, as peregrinações a Colônia só eram suplantadas pelas de Roma e de Santiago de Compostela.

A presença dos Magos nas artes visuais alcançou o apogeu na Renascença: artistas de muitas nacionalidades retrataram a Adoração dos Magos. Giotto di Bondone(1266-1337) representou como cometa a estrela que conduziu os Magos do Oriente a Belém, depois de o Cometa Halley passar sobre a Europa, em 1301. O próprio Leonardo da Vinci deixou pintura incompleta da Adoração dos Magos.

No domínio da música clássica, destacam-se as composições de Johann. Sebastian Bach (1685-1750), num ciclo de cantatas dedicadas à solenidade da epifania. Consta que Goethe(Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832), inspirado nos Magos, compôs o poema “Epiphanias”, redescobriu o manuscrito de Hildesheim, em 1818, e se empenhou em traduzi-lo para o alemão, entregando a tarefa ao poeta alemão Gustav Schwab, que não só o traduziu, mas escreveu poema para fazer parte do texto. Publicado em 1821, incorporou pequeno poema de Goethe que conclui: (...) pois, afinal, somos todos Reis Peregrinos, ao alvo querendo chegar.

No medievo, o episódio dos Magos do Oriente era representado nas igrejas européias através dos Dramas (ou Autos) Litúrgicos Medievais, Mistérios ou Officium Stellae. A dramaturgia sobre os Magos se sobressaiu como um dos temas mais apreciados para encenações segundo Karl Young ( The Dramas of the Medieval Church) e William Smoldon(The Music of the Medieval Church Dramas), reconhecidos estudiosos do teatro medieval.

Alguns Autos eram dialogados, outros musicados, como dramas musicais, óperas, ou operetas. Foram famosas as dramatizações do século XII, nas catedrais francesas de Rouen, Limoges e Besançon, cujos originais em latim ainda estão conservados na Biblioteca Nacional da França.

Na Espanha, encenava-se o Auto de los Reyes Magos, de autor desconhecido. Encontrado na Catedral de Toledo, o texto é incompleto e escrito em linguagem castellianizada e influída por el dialecto mozárabe, sendo reconstituído por Ramón Menendez de Pidal, com data provável do século XII, e considerado la pagina más antigua del teatro español.

Presume-se que esta peça se disseminou pela Península Ibérica, influenciando obras similares, abundantes nas literaturas hispânica e lusa. A propósito, cabe mencionar que na Espanha o dia de Reis permanece feriado. Retomando o ensaio de C.Horstmann, se observa um aspecto interessante nas festas medievais dos Reis Magos, de natureza nitidamente profana: “A celebração no dia de Santos Reis era solenizada com incomum alegria e esplendor, com encenações dramáticas dentro da igreja e de mascaradas(sic) fora (...)”.

Émile Male, também referendado anteriormente, registrou a tendência de popularização dos dramas litúrgicos medievais sobre os Magos: “(...) ganhavam o gosto popular e no século XIV o drama dos Magos não se representava somente nas igrejas, mas também em pleno ar livre”. Ele a ilustra, relatando o cortejo dos Reis Magos, dos dominicanos em Milão, em 1336. Esta milenar tradição voltou a ser representada em 1962, após longa interrupção.

Cidades europeias realizam cortejos similares: Florença, Sevilha e Coimbra, dentre outras. No tocante a Portugal, Luiz Francisco Rabelo na “Breve Historia do Teatro Português alude a não aceitar que: “ as manifestações místicas de Idade Média, religiosas ou profanas não houvessem chegado ao extremo ocidental da Península Ibérica”.Mais adiante, conclui:” As Ordens Religiosas que se instalaram em Portugal, certamente trouxeram consigo os mistérios”.

Assim, ordens religiosas na Espanha e em Portugal incorporaram os dramas litúrgicos dos outros países europeus para ensino e propagação da doutrina cristã. Na quadra natalina, grupos peditórios iam de casa em casa, pelas aldeias e freguesias: na Espanha, o costume dos “Villancicos” e, em Portugal, os “Cantares de Janeiras e Reis.”

As tradições populares ibéricas, como dramatizações ou grupos peditórios, foram transplantadas para o Brasil. Os jesuítas que aqui aportaram com o primeiro Governador Geral Tomé de Sousa, em 1549, utilizavam essas tradições sob forma de canto, dança e encenação, na catequese e no ensino a indígenas e colonos portugueses – reinóis. Anchieta, o precursor das letras brasileiras, formado na escola de Gil Vicente, compôs (a pedido do Padre Manuel da Nóbrega), ensaiou e representou sua peça Pregação Universal, reintitulada Na Festa de Natal, na igreja dos Jesuítas em São Paulo de Piratininga (atual cidade de São Paulo), no Natal de 1561, no Ano Novo e Dia de Reis de 1562. Nesse Auto, insere-se ato com a presença dos Reis Magos.

Sobre o auto, o Padre Armando Cardoso, em obra sobre o teatro anchietano, assegura que a peça foi encenada noutros núcleos jesuítas, no litoral brasileiro. Um deles, o dos Reis Magos, localizava-se no Espírito Santo, 20 km ao norte de Vitória - atual localidade de Nova Almeida -, sendo aí erigida a igreja dos Reis Magos, marco jesuítico do Brasil, tombado pelo IPHAN, em 1943.

Outro registro consta do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, citado por Luiz da Câmara Cascudo: “desses grupos pedindo os Reis (no sentido de oferta) na Bahia, na segunda metade do século XVII”. Do Compêndio, o etnógrafo português Leite de Vasconcellos extraiu comentário sobre a presença de mascarados(sic) nas peças jesuítas.

Graciliano Ramos, atento observador de nossos costumes, no conto Um Natal, escreveu:
“O Natal, festa profana, alcança duas outras; Ano Bom e Reis. Começa dia 24 de dezembro e termina 6 de janeiro, representa uma solução de continuidade nas aperreações do sertanejo”. Assim, entre nós, as tradições populares dos Reis Magos derivam de manifestações ibéricas, em rituais litúrgicos e paralitúrgicos que sofreram influências locais, regionais e étnicas. Realizados no interior das igrejas, pouco a pouco, foram se popularizando no meio rural, praças e ruas. No Brasil, são designados por Reisados, “festejam o Natal e os Reis”, segundo Câmara Cascudo. Compreendem: Folias ou Companhias de Reis, Tiração de Reis, Presépio,Pastor, Pastorinhas, Pastoris e o Bumba meu boi do nordeste oriental.

Há, ainda: Cavalo Marinho, Boi de Reis,Reis de Boi, Terno de Reis (baiano e sulino), Reiadas e outras mais expressões dessa tradição popular, disseminada por quase todo território brasileiro.


Affonso M. Furtado da Silva é vice-presidente da Comissão Nacional de Folclore, membro do Conselho Estadual de Cultura/RJ e autor de Reis Magos: história, arte e tradições (Léo
Christiano Editoria)

Colaboração de Affonso M. Furtado da Silva 
 http://www.cultura.rj.gov.br

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