Alimentação permite entender a dinâmica das relações no Brasil colonial
CARLOS HAAG
CARLOS HAAG
A exuberância das frutas foi retratada por Albert Eckhout no século XVII
Pegar a história “pelo estômago”. Essa é a estratégia da historiadora Leila Algranti, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para ter mais uma chave de leitura do Império Português. “Meu interesse é a história colonial. A comida foi mais uma forma que encontrei de entender a dinâmica desse Império”, explica. “Afinal, se entender a colonização da América é captar as formas de comunicação entre conquistadores e conquistados, de integração e modificação entre o Velho e o Novo Mundo, a alimentação permite ao historiador entender não só os resultados desse intercâmbio cultural, mas o seu processo”, afirma.
Foi esse interesse que a levou a desenvolver a pesquisa As especiarias na cozinha e na botica – Um estudo de história da alimentação na América portuguesa, que analisa a alimentação no mundo lusitano entre os séculos XVI e XVIII, para refletir sobre as trocas culturais, apropriações e ressignificações de elementos entre os habitantes de diferentes regiões do Império, um fantástico intercâmbio cultural.
“Alimentação não é um tema supérfluo: a fome ainda está no centro das políticas governamentais. Comida não é só sustento, mas é estruturante na organização social de um grupo humano, abordando todos os aspectos da vida social, da espiritualidade ao poder, passando pela sexualidade e pelas diferenças de gênero. Em sua pesquisa, Leila debate com clássicos como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Câmara Cascudo, que, de diferentes formas, usaram a comida para explicar a formação nacional pela miscigenação das “três raças”. “A nova historiografia mostra que a tese da mistura de elementos é diferente de fazer nascer algo novo, é ultrapassada, como se pensar a comida brasileira sendo um pouquinho da culinária indígena com uma pitada da cultura africana e muito da comida portuguesa”, avisa.
Conceitos tradicionais, como a importância indígena e africana na dieta cotidiana, a adaptação dos portugueses a novo regime alimentar de produtos locais ou imagens de fome por causa da monocultura precisam passar por uma sintonia fina. Afinal, eram tempos em que intelectuais brasileiros se voltavam para o passado colonial a fim de pensar o futuro do Brasil. Já no caso de Caio Prado Jr. a abordagem da colonização estava focada na monocultura para o mercado externo, que absorvia a todos e ninguém cuidava das culturas alimentares.
“Assim, a ideia de uma cozinha mestiça, híbrida e sincrética não satisfaz mais, porque só mostra o resultado final, sem revelar o processo de mediação cultural, de superposição de diferentes formas de alimentação. Se houve substituição, também houve resistência de identidades”, afirma Leila, na contramão, por exemplo, da flexibilidade alimentar do português, preconizada por Freyre. “É preciso pensar a alimentação na sua dimensão imperial, pois a colonização da América é só uma parte de um empreendimento maior: a expansão marítima portuguesa”, diz a pesquisadora.
Comidas do senhor e do escravo eram igualmente pobres em valor nutricional
Após dominarem o comércio de especiarias, garantindo o sabor nas mesas europeias, os portugueses, no século XVII, viram holandeses e ingleses roubarem seu monopólio. A crise levou a um intercâmbio de produtos e saberes pelas colônias: Portugal trouxe para o Brasil sementes de especiarias do Oriente e levou plantas para outras partes do Império, a ponto de embaçar a origem da flora. “O coqueiro, por exemplo, chegou aqui por volta de 1553, a bordo de embarcações vindas de Cabo Verde. Hoje é um dos símbolos do Brasil. O mesmo se deu com a manga, a jaca, a canela, o açúcar, o algodão. Incentiva-se essa troca para diversificar as culturas e salvar a balança comercial”, observa a historiadora Márcia Moisés Ribeiro, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e coordenadora de Jornada no ultramar: a circulação do conhecimento científico no império colonial português, apoiado pela FAPESP como Jovem Pesquisador.
“A Metrópole tentava compensar a perda das especiarias do Oriente, mas graças a isso o cultivo de drogas da Índia no Brasil ajudou a promover a circulação de uma cultura científica pelos domínios lusitanos, a ‘aventura das plantas’.” Era, porém, um movimento contraditório: havia avidez por novidades e diversidade, mas a empreitada era dominada pela tradição de enquadrar o desconhecido em padrões familiares, como se verá.
Humores
As célebres especiarias tinham origem na palavra latina “drogas” e, apesar do senso comum, não eram desejáveis apenas como forma de conservar alimentos ou disfarçar sabores de carnes apodrecidas. “Elas representavam a associação entre culinária e cura baseada na farmacologia galênica dos ‘humores’, cujas alterações se ligavam ao que se comia. Para corrigir desequilíbrios comiam-se pratos que teriam qualidades contrárias ao ‘humor’ fora de balanço. Receitas culinárias e medicinais eram iguais e a comida, além de um gosto, era uma questão de saúde”, observa Leila. Isso transparece no primeiro livro português de culinária, Arte de cozinha (1680), de Domingos Rodrigues, com receitas de uma comida condimentada ao gosto da época e que também seria boa para a saúde. A exuberância do Novo Mundo, onde indígenas usavam a fartura da terra em caça, peixes, raízes e tubérculos como a mandioca, que o nativo aprendeu a dominar, e o milho, deveria ter feito, como preconizava a antiga geração historiográfica, com que os portugueses abrissem mão da dieta natal pelo novo.
“Mas o colonizador se manteve fiel a sua dieta de trigo, vinho e azeite até quando foi possível. A incorporação de práticas alimentares na América foi mais rápida do que o processo inverso, já que os europeus opuseram resistência a produtos americanos, com o custo da importação, em vez de adotar o trivial da terra: feijão, farinha e carne-seca”, nota Leila. “Prover colonizadores com alimentos de seus países de origem levou à reprodução no Novo Mundo da alimentação: tudo o que fosse transportável em termos de comida foi introduzido na América.”
A monocultura da cana enriqueceu a Metrópole e deu origem aos doces, marca cultural da Colônia
Quando os europeus chegaram aqui, a população autóctone tinha o milho e a mandioca como alimentos de base. Mais tarde, os dois também seriam a base da alimentação na América portuguesa. Mas cada um procurou manter seu modo de vida: os nativos usaram técnicas de preparo estrangeiras, embora em alimentos já conhecidos. “Os europeus só aceitavam a alimentação vinda do reino, só quando não se pôde manter esse cardápio é que se optou por substitutos, como a mandioca no lugar do trigo”, explica o historiador Rubens Panegassi, da Universidade Federal de Viçosa. É a tese de Evaldo Cabral de Mello em Olinda restaurada (Topbooks, 1998): a aceitação dos gêneros nativos pela elite açucareira da Colônia só ocorreu com a instabilidade do abastecimento de importados nas guerras holandesas. Só quando a única opção possível contra a fome era usar a farinha de mandioca, que tinha status inferior ao trigo, a elite se submeteu.
A “eterna culpa” da monocultura é outro ponto a ser refinado. “Se a colonização do Brasil foi marcada pelo cultivo de produtos para a demanda europeia, em detrimento do abastecimento interno, no dia a dia, a alimentação foi motivo de atenção e cuidado permanentes”, avisa Rubens. Afinal, a ideia de uma Colônia monocultora não representa a América portuguesa em sua totalidade. “Regiões no sul dos grandes centros produtores de cana-de-açúcar, e no norte, não estavam tão ligadas ao comércio externo e se dedicavam à agricultura. No Maranhão, a produção local permitia o consumo de gêneros ainda frescos”, afirma a historiadora Paula Pinto e Silva, autora de Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colonial (Senac, 2005).
“Também a distância entre São Paulo e as regiões centrais estimulou a autossuficiência: a independência aos importados, somada ao contato com os indígenas e à opção pelo milho como alimento de base, foi repertório alimentar particular da região”, nota Rubens. É conhecido o empenho paulista em ser fornecedor de alimentos para as Minas, cuja obsessão pela mineração, reza a historiografia, levou a um desinteresse pela agricultura de subsistência, com crises de fome. “Hoje sabemos de cinturões verdes em torno da mineração e a produção de alimentos. Mesmo no Nordeste houve, sim, produção de subsistência, sem negar a falta crônica de alimentação”, observa Leila. Ficaram esquecidas por estudos generalizantes as hortas que cercavam os engenhos, feitas para a aclimatação de espécies europeias e o cultivo de outras nacionais.
“As espécies aclimatadas cresciam, mas logo verduras e legumes da terra invadiram as hortas ‘europeias’ e se iniciou, na cozinha das casas-grandes, um processo de substituição dos ingredientes originais da receita por equivalentes locais”, nota Paula.
Havia também as hortas feitas, às escondidas, pelos escravos negros. “A contribuição africana deu-se em vários aspectos, mas é preciso uma biografia mais detalhada dos pratos que se acredita africanos. A sua influência se deu mais pelo gosto e pela forma de preparar alimentos do que pela feitura de comidas nativas”, avisa Leila.
“Eles não trouxeram elementos de seus sistemas alimentares, mas esses elementos foram introduzidos no Brasil e marcaram nossa comida por meio dos comerciantes, ou seja, fazendo parte do comércio atlântico Portugal-Brasil-África, que incluía o tráfico de escravos”, afirma a antropóloga Maria Eunice Maciel, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do estudo Uma cozinha à brasileira. “A permanência de receitas africanas não é só a persistência de hábitos alimentares, assim como as mudanças que ocorreram nestas receitas não resultaram só da falta de ingredientes. Ambas são parte de uma dinâmica cultural de constante recriação da maneira de viver.”
Mesmo a origem da feijoada revela uma luta simbólica. “Se a versão do surgimento nas senzalas é um mito, vale lembrar que o mito fala. Assim, haver essa narrativa revela as relações de classe e raça no Brasil. O mesmo vale para as versões que a negam.” Nisso entra também a cachaça, originalmente a escuma formada pelas impurezas que subiam dos tachos em que se fervia o sumo da cana, dada aos animais, negros e índios, que a fermentavam. O destilado era novidade para os europeus, acostumados ao vinho. Reprimida por não pagar impostos e roubar mercado das bebidas do Reino, seu consumo foi perseguido pelos jesuítas. A aguardente foi usada para conquistar corações e mentes de índios, moeda de troca pelos conhecimentos da terra que os nativos possuíam. Os negros eram “acalmados” com a bebida. “Mas não se pode ignorar o valor calórico das aguardentes e a importância na dieta pobre e insatisfatória dos escravos”, nota Leila.
© LOJA DI CARNE SECCA, JEAN-BAPTISTE DEBRET. AQUARELA SOBRE PAPEL, 15,2 X 20,4 CM, 1825. REPRODUÇÃO DO LIVRO DEBRET E O BRASIL – OBRA COMPLETA, ED. CAPIVARA, 2009
Venda de produtos para alimentação: desenho de Debret mostra pouca diversidade da cozinha da época
Doces
Foi outro o caso das frutas, evitadas pelos europeus, que temiam seus efeitos, e destinadas aos escravos. “Os senhores só comiam frutas cozidas com açúcar, em compotas, geleias, doces secos e cristalizados. A doçaria revela a adaptação de frutas tropicais ao cotidiano europeu, exemplo notável do ajuste cultural nas cozinhas dos engenhos”, afirma Paula.
Nos doces via-se também a preocupação com a saúde. “Registros de época mostram a presença de doces à mesa dos colonos e na cabeceira dos doentes”, diz Leila. “A doçaria é a tradição mais original da cozinha portuguesa, um paradigma da mediação cultural. Não é um segmento secundário da alimentação na América portuguesa, mas a mais importante produção colonial, que alterou hábitos alimentares e de nutrição na idade moderna”, analisa. Se nas comidas salgadas a refeição do senhor e a do escravo eram algo semelhantes em “pobreza”, os doces são de outra esfera. Especiaria rara e preciosa, o açúcar de início era usado nas farmácias e só no século XV provocou o renascimento na era das guloseimas. “Antigamente só tinha açúcar nas boticas para os doentes. Hoje o devoram por gulodice. O que era remédio agora é gula”, observou o geógrafo Ortelius em 1572.
Com a abundância de frutos tropicais, além dos trazidos pelos colonizadores, faziam-se doces que lembravam os da Metrópole. “Mas a combinação de produtos novos com técnicas tradicionais portuguesas deu origem a doces diferentes, que até mantinham o nome original, como o pão de ló, embora diferenciados dos europeus. É sintomático que a continuidade do nome marcava uma mudança importante de conteúdo, ou seja, uma palavra antiga designava um produto novo”, nota Leila.
“Entre os séculos XVI e XIX, a culinária na América portuguesa foi sendo construída e transformada, uma vez que se trata de uma arte combinatória e de inter-relações, mais do que de invenções, com processos baseados mais na variação do que na criação pura. Por isso não há apenas uma doçaria ou cozinha colonial, híbrida ou mestiça, indicativa do final de um percurso, mas sim uma convivência de cozinhas ‘no plural’ e de práticas alimentares, com continuidades da cozinha da Metrópole, mas também alteradas e relidas na América”, analisa Leila. Um salto desde o relato do padre Cardim, no século XVI, que descreve como foram servidos a um bispo lusitano vinhos reinóis e pratos medievais em pleno sertão da Bahia. Ainda assim não era uma “cozinha brasileira”, mas a justaposição de “cozinhas”.
“Tivemos uma interculturalidade materializada em redes de relações perceptíveis no espaço das refeições, no uso dos artefatos, nas técnicas de processamento dos alimentos, nas receitas, no ‘fazer a cozinha’ na América portuguesa”, avalia a historiadora. Mais: a própria construção da nação será acompanhada pela transformação da alimentação.
Uma prova disso é a publicação, no século XIX, do Cozinheiro imperial, em que não há um doce sequer que leve frutas nacionais. “A sociedade brasileira se pretendia avançada, lendo manuais de bons modos à mesa. Isso mostra como a comida foi eleita como um dos motes centrais para a distinção entre civilizados e ‘não civilizados’”, observa Leila. Tudo o que lembrasse a animalidade seria punido, e a refeição, para além da satisfação do corpo, servia para expor a nova sociabilidade.
Na República, a publicação do Cozinheiro nacional reforça esse princípio pela inclusão de receitas que uniam o nacional e o europeu. Antes, em 1780, outro livro de receitas já revelava as relações políticas da comida na nova dinâmica colonial: O cozinheiro moderno ou a nova arte de cozinhar (1780), de Lucas Rigaud. “São receitas de comida mais simples, com temperos e ervas aromáticas leves para ressaltar o sabor, e não escondê-los com o gosto forte das especiarias. São indicações significativas sobre o comércio de determinados produtos, além de intercâmbios culturais mais amplos que ocorrem no espaço do Atlântico Sul. A comida é política pura”, avisa Leila.
Não só no Brasil. A ciência na cozinha e a arte de comer bem (1891), do italiano Pellegrino Artusi, compilava receitas de todas as regiões italianas, uma unificação pelo estômago apenas duas décadas após a unificação política italiana.
“Há agora um desejo de recuperar a alimentação do passado, um saudosismo de comer melhor como nas receitas antigas. Posso comer fast food ou ‘a quilo’, mas o ideal é a ‘comida da vovó’, uma busca inconsciente de uma identidade que está na nossa cozinha”, observa Leila. Pronta a nos pegar pelo estômago.
Revista FAPESP
Nenhum comentário:
Postar um comentário