Estudiosos concluem dicionário da língua mesopotâmica, que ficou 2 mil anos sem ser falada, e reavivam interesse pelos primórdios da escrita
Para quem achava que a Mesopotâmia estava restrita às aulas de história e aos enredos de escolas de samba, o antigo território ganhou destaque mês passado por uma razão linguística. Após noventa anos, acadêmicos da Universidade de Chicago (EUA) concluíram um dicionário de 21 volumes sobre a língua mesopotâmica e seus dialetos babilônicos e assírios.
Trata-se da língua usada por Sargão da Acádia, em 24 a.C., para comandar o primeiro império do mundo e empregada por Hamurabi, em 1700 a.C., para proclamar as primeiras leis conhecidas pela humanidade. Com ela foi composta Gilgamesh, a primeira obra da literatura, criada na metade do terceiro milênio a.C. (compilada em 7 a.C.). Narra a epopeia do rei semilendário da cidade de Uruk, em 12 tabuletas achadas na biblioteca do rei assírio Assurbanípal, em Nínive.
O dicionário abre perspectivas ao estudo da escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios no 4º milênio a.C., entre os rios Tigre e Eufrates, onde hoje é o Iraque, estendendo-se a partes da Síria. É o primeiro sistema de escrita de que se tem notícia. A palavra "mesopotâmia", no entanto, vem do grego meso ("entre") e potamia ("rios").
Evolução
A obra conta com 28 mil palavras, que recobrem de 2500 a.C. a 100 d.C., seguindo as nuances de significado de cada termo. Por essa razão, assemelha-se mais a uma enciclopédia do que a um dicionário propriamente, pois suas definições trabalham com múltiplas acepções, abrangendo áreas tão diversas quanto a religião, o comércio e a literatura. Embora umu designe "dia", por exemplo, foram necessárias 17 páginas para explicá-la. Ardu (escravo) implica todo o universo relacionado ao trabalho da época, exigindo extensas considerações de ordem histórica e sociológica; e o versátil verbo kalu tem acepções que variam com o contexto, como "deter", "demorar", "manter em custódia", "interromper".
A notícia indica a união de forças da arqueologia e da linguística para entender-se o surgimento e a evolução da escrita, tema de encanto e curiosidade, como mostra Josué Machado, consultor e colunista de Língua, nas páginas que seguem.
A evolução da escrita
Do desenho à escrita
Josué Machado
O homem encontra a mulher, longe da tribo. São jovens. Ele emite grunhidos. Ela grita e ameaça correr. Estamos há 29 mil anos, no atual Parque Nacional da Capivara, Piauí. É o início do paleolítico superior. Um bom dia para o bípede. Antes, tinha devorado um naco de carne crua de tatu. Não precisara comer apenas frutas, larvas e minhocas.
Saciados, rabiscam a rocha. Reproduzem cenas domésticas, bichos de que fugiam ou perseguiam, as delícias da carne. Nítidas, coloridas, são gravuras parietais (em paredes) - de cavernas, mais conservadas; ou rupestres (de rocha), ao ar livre, dadas a intempéries. As de Lascaux (França) têm 20 mil anos. As de Altamira (Espanha), "só" 11 mil. Bem mais novas do que as do Piauí. Conclui-se, sem originalidade, que a forma de expressão na infância da humanidade foi o desenho, como em geral ocorre na infância do homem. Foram os desenhos que precederam as primeiras formas de escrita, entre 5 e 6 milênios passados, na Idade do Bronze.
Muitos nascimentos
A escrita se desenvolveu da necessidade de o homem reter informação impossível de guardar na memória. E de comunicar-se a distâncias que ultrapassam o alcance da voz. Surgiu provavelmente em mais de um lugar mais ou menos ao mesmo tempo - entre dezenas ou centenas de anos. Prazo desprezível, considerando que a escrita hieroglífica egípcia e a cuneiforme suméria perduraram por 3 mil anos. E dessas são os primeiros vestígios encontrados, embora se reconheça que houve ao menos outros nascedouros da escrita: um entre os maias e outro no Vale do rio Indo, atual divisa entre Índia e Paquistão, que data, no mínimo de 2500 a.C. Trata-se de um sistema de escrita ainda não inteiramente decifrado: as pesquisas das inscrições em Mohenjo-Daro e Harapa são recentes.
O berço egípcio
Os hieróglifos (que significa "entalhes sagrados") surgiram há 5.250 anos, segundo os egiptólogos John Colleman Darnell, da Universidade de Yale (EUA), e sua mulher, Deborah. Eles encontraram o que supõem ser os mais antigos exemplares de escrita até o momento. São proto-hieróglifos gravados numa placa de argila descoberta em 1995 a oeste do rio Nilo. A placa registra a vitória de um poderoso monarca, provavelmente o lendário rei Escorpião, que teria desempenhado papel importante na unificação do Egito.
Contemporânea da cuneiforme, a escrita hieroglífica foi a que se manteve em uso por mais tempo. Há gravações de hieróglifos feitas em 394 a.C. Também formados por sinais pictográficos, aos poucos foram deixando de registrar diferentes tipos de textos para ser usados só para expressar sentimentos religiosos.
No entanto, é possível que tanto egípcios quanto sumérios tenham usado a escrita antes disso, mas em material perecível, como madeira, de que não ficaram vestígios. Rolos de papiro com inscrições, embora perecíveis, conservaram-se em tumbas por causa do clima seco do Egito.
A escrita cuneiforme
A escrita cuneiforme surgiu há mais de 5 milênios na Mesopotâmia, criada pelos culturalmente adiantados sumérios. Sua ideografia evoluiu para a escrita mais tarde usada pelos acádios, assírios, babilônios e outros povos.
"Cuneiforme" pois seus caracteres têm forma de cunha (latim cuneus). Eram gravados em placas de argila úmida com a extremidade de junco ou cabo de madeira e, depois, cozidas. Como os sumérios não haviam formado império, mas viviam em cidades-Estado em guerra entre si, eram fracos militarmente. Por isso, os agressivos babilônios os dominaram e lhes assimilaram a cultura.
Saltos evolutivos
Há autores que consideram a transição da escrita ideográfica para a escrita fonética uma das maiores realizações da humanidade. Basta lembrar que na escrita ideográfica os muitíssimos símbolos correspondem a objetos, a coisas, e na escrita fonética, a sons, com possibilidades infinitas; na escrita ideográfica, era preciso criar cada vez mais sinais para corresponder ao número crescente de novidades, enquanto a fonética atende com precisão e permanentemente às exigências do pensamento em evolução - um passo fundamental para o progresso do homem.
As pequenas tábuas de argila achadas nas ruínas de cidades sumérias de Ur e Uruk exibem os sinais pictográficos característicos: o sinal correspondente a um boi, por exemplo, assemelha-se à cabeça de um animal, e o que representa o dia é o desenho do nascer do sol. A maior parte delas se refere a registros econômicos.
Por isso, é quase certo que tais registros tenham sido criados pela necessidade de controlar a mercadoria que entrava no palácio real e no templo e deles saía. Eram as duas mais importantes instituições da época. Poder e religião. Mais ou menos como agora.
Mas a escrita evoluiu. Aos poucos, foi deixando de representar a realidade para se tornar mais e mais abstrata. As ideias passaram a ser expressas por traços, e não mais por desenhos e ideogramas.
O alfabeto fenício
Foi em torno dos séculos 12 ou 13 a.C. que os fenícios, comerciantes profissionais, criaram as bases do alfabeto. A Fenícia ocupava a margem oriental do Mediterrâneo oriental e as montanhas do atual Líbano. Seus habitantes haviam assimilado as culturas egípcia e mesopotâmica e se movimentavam com desenvoltura pelo Mediterrâneo.
Como os fenícios precisavam de um sistema simples de escrita para suas atividades, transformaram os ideogramas egípcios e sumérios em símbolos simplificados. Era um alfabeto consonantal (sem a representação de vogais) que, aparentemente, originou as escritas aramaica e hebraica. E foi a fonte usada pelos gregos, em 750 a.C., para criar o alfabeto fonético ocidental, com sinais para consoantes e vogais. Em seguida, os romanos o adaptaram para o latim.
O marco maia
Enquanto os fenícios criavam as bases do alfabeto atual, no século 12 ou 13 a.C., a civilização maia florescia no México e na América Central, também com seus ideogramas como forma de expressão escrita. A cidade maia de Atlan, destruída por um terremoto em 666, guardava 2.156 tabuletas de ouro com suas leis, o chamado Código Maia de Desdre. Parte dessas tábuas foram descobertas nesta década por pesquisadores alemães, na Guatemala. São provavelmente as amostras mais antigas de escrita na América.
Inscrição com trecho do poema épico Gilgamesh: escrita cuneiforme registrou as primeiras manifestações literárias da humanidade
Para quem achava que a Mesopotâmia estava restrita às aulas de história e aos enredos de escolas de samba, o antigo território ganhou destaque mês passado por uma razão linguística. Após noventa anos, acadêmicos da Universidade de Chicago (EUA) concluíram um dicionário de 21 volumes sobre a língua mesopotâmica e seus dialetos babilônicos e assírios.
Trata-se da língua usada por Sargão da Acádia, em 24 a.C., para comandar o primeiro império do mundo e empregada por Hamurabi, em 1700 a.C., para proclamar as primeiras leis conhecidas pela humanidade. Com ela foi composta Gilgamesh, a primeira obra da literatura, criada na metade do terceiro milênio a.C. (compilada em 7 a.C.). Narra a epopeia do rei semilendário da cidade de Uruk, em 12 tabuletas achadas na biblioteca do rei assírio Assurbanípal, em Nínive.
O dicionário abre perspectivas ao estudo da escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios no 4º milênio a.C., entre os rios Tigre e Eufrates, onde hoje é o Iraque, estendendo-se a partes da Síria. É o primeiro sistema de escrita de que se tem notícia. A palavra "mesopotâmia", no entanto, vem do grego meso ("entre") e potamia ("rios").
Evolução
A obra conta com 28 mil palavras, que recobrem de 2500 a.C. a 100 d.C., seguindo as nuances de significado de cada termo. Por essa razão, assemelha-se mais a uma enciclopédia do que a um dicionário propriamente, pois suas definições trabalham com múltiplas acepções, abrangendo áreas tão diversas quanto a religião, o comércio e a literatura. Embora umu designe "dia", por exemplo, foram necessárias 17 páginas para explicá-la. Ardu (escravo) implica todo o universo relacionado ao trabalho da época, exigindo extensas considerações de ordem histórica e sociológica; e o versátil verbo kalu tem acepções que variam com o contexto, como "deter", "demorar", "manter em custódia", "interromper".
A notícia indica a união de forças da arqueologia e da linguística para entender-se o surgimento e a evolução da escrita, tema de encanto e curiosidade, como mostra Josué Machado, consultor e colunista de Língua, nas páginas que seguem.
A evolução da escrita
8000 - 4000 a.C.
Símbolos, sinais, pictogramas mesopotâmicos
3700 a.C. Sistema fonético sumério
3500 a.C. Hieróglifos egípcios e escrita cuneiforme
2200 a.C. Alfabeto consonantal
1200 a.C. Alfabeto fenício
1000 a.C. Alfabeto grego
600 a.C. Latim
700 d.C.
Alfabetos europeus ocidentais Símbolos, sinais, pictogramas mesopotâmicos
3700 a.C. Sistema fonético sumério
3500 a.C. Hieróglifos egípcios e escrita cuneiforme
2200 a.C. Alfabeto consonantal
1200 a.C. Alfabeto fenício
1000 a.C. Alfabeto grego
600 a.C. Latim
700 d.C.
Do desenho à escrita
Josué Machado
O homem encontra a mulher, longe da tribo. São jovens. Ele emite grunhidos. Ela grita e ameaça correr. Estamos há 29 mil anos, no atual Parque Nacional da Capivara, Piauí. É o início do paleolítico superior. Um bom dia para o bípede. Antes, tinha devorado um naco de carne crua de tatu. Não precisara comer apenas frutas, larvas e minhocas.
Saciados, rabiscam a rocha. Reproduzem cenas domésticas, bichos de que fugiam ou perseguiam, as delícias da carne. Nítidas, coloridas, são gravuras parietais (em paredes) - de cavernas, mais conservadas; ou rupestres (de rocha), ao ar livre, dadas a intempéries. As de Lascaux (França) têm 20 mil anos. As de Altamira (Espanha), "só" 11 mil. Bem mais novas do que as do Piauí. Conclui-se, sem originalidade, que a forma de expressão na infância da humanidade foi o desenho, como em geral ocorre na infância do homem. Foram os desenhos que precederam as primeiras formas de escrita, entre 5 e 6 milênios passados, na Idade do Bronze.
Muitos nascimentos
A escrita se desenvolveu da necessidade de o homem reter informação impossível de guardar na memória. E de comunicar-se a distâncias que ultrapassam o alcance da voz. Surgiu provavelmente em mais de um lugar mais ou menos ao mesmo tempo - entre dezenas ou centenas de anos. Prazo desprezível, considerando que a escrita hieroglífica egípcia e a cuneiforme suméria perduraram por 3 mil anos. E dessas são os primeiros vestígios encontrados, embora se reconheça que houve ao menos outros nascedouros da escrita: um entre os maias e outro no Vale do rio Indo, atual divisa entre Índia e Paquistão, que data, no mínimo de 2500 a.C. Trata-se de um sistema de escrita ainda não inteiramente decifrado: as pesquisas das inscrições em Mohenjo-Daro e Harapa são recentes.
O berço egípcio
Os hieróglifos (que significa "entalhes sagrados") surgiram há 5.250 anos, segundo os egiptólogos John Colleman Darnell, da Universidade de Yale (EUA), e sua mulher, Deborah. Eles encontraram o que supõem ser os mais antigos exemplares de escrita até o momento. São proto-hieróglifos gravados numa placa de argila descoberta em 1995 a oeste do rio Nilo. A placa registra a vitória de um poderoso monarca, provavelmente o lendário rei Escorpião, que teria desempenhado papel importante na unificação do Egito.
Contemporânea da cuneiforme, a escrita hieroglífica foi a que se manteve em uso por mais tempo. Há gravações de hieróglifos feitas em 394 a.C. Também formados por sinais pictográficos, aos poucos foram deixando de registrar diferentes tipos de textos para ser usados só para expressar sentimentos religiosos.
No entanto, é possível que tanto egípcios quanto sumérios tenham usado a escrita antes disso, mas em material perecível, como madeira, de que não ficaram vestígios. Rolos de papiro com inscrições, embora perecíveis, conservaram-se em tumbas por causa do clima seco do Egito.
A escrita cuneiforme
A escrita cuneiforme surgiu há mais de 5 milênios na Mesopotâmia, criada pelos culturalmente adiantados sumérios. Sua ideografia evoluiu para a escrita mais tarde usada pelos acádios, assírios, babilônios e outros povos.
"Cuneiforme" pois seus caracteres têm forma de cunha (latim cuneus). Eram gravados em placas de argila úmida com a extremidade de junco ou cabo de madeira e, depois, cozidas. Como os sumérios não haviam formado império, mas viviam em cidades-Estado em guerra entre si, eram fracos militarmente. Por isso, os agressivos babilônios os dominaram e lhes assimilaram a cultura.
Saltos evolutivos
Há autores que consideram a transição da escrita ideográfica para a escrita fonética uma das maiores realizações da humanidade. Basta lembrar que na escrita ideográfica os muitíssimos símbolos correspondem a objetos, a coisas, e na escrita fonética, a sons, com possibilidades infinitas; na escrita ideográfica, era preciso criar cada vez mais sinais para corresponder ao número crescente de novidades, enquanto a fonética atende com precisão e permanentemente às exigências do pensamento em evolução - um passo fundamental para o progresso do homem.
As pequenas tábuas de argila achadas nas ruínas de cidades sumérias de Ur e Uruk exibem os sinais pictográficos característicos: o sinal correspondente a um boi, por exemplo, assemelha-se à cabeça de um animal, e o que representa o dia é o desenho do nascer do sol. A maior parte delas se refere a registros econômicos.
Por isso, é quase certo que tais registros tenham sido criados pela necessidade de controlar a mercadoria que entrava no palácio real e no templo e deles saía. Eram as duas mais importantes instituições da época. Poder e religião. Mais ou menos como agora.
Mas a escrita evoluiu. Aos poucos, foi deixando de representar a realidade para se tornar mais e mais abstrata. As ideias passaram a ser expressas por traços, e não mais por desenhos e ideogramas.
O alfabeto fenício
Foi em torno dos séculos 12 ou 13 a.C. que os fenícios, comerciantes profissionais, criaram as bases do alfabeto. A Fenícia ocupava a margem oriental do Mediterrâneo oriental e as montanhas do atual Líbano. Seus habitantes haviam assimilado as culturas egípcia e mesopotâmica e se movimentavam com desenvoltura pelo Mediterrâneo.
Como os fenícios precisavam de um sistema simples de escrita para suas atividades, transformaram os ideogramas egípcios e sumérios em símbolos simplificados. Era um alfabeto consonantal (sem a representação de vogais) que, aparentemente, originou as escritas aramaica e hebraica. E foi a fonte usada pelos gregos, em 750 a.C., para criar o alfabeto fonético ocidental, com sinais para consoantes e vogais. Em seguida, os romanos o adaptaram para o latim.
O marco maia
Enquanto os fenícios criavam as bases do alfabeto atual, no século 12 ou 13 a.C., a civilização maia florescia no México e na América Central, também com seus ideogramas como forma de expressão escrita. A cidade maia de Atlan, destruída por um terremoto em 666, guardava 2.156 tabuletas de ouro com suas leis, o chamado Código Maia de Desdre. Parte dessas tábuas foram descobertas nesta década por pesquisadores alemães, na Guatemala. São provavelmente as amostras mais antigas de escrita na América.
Revista Língua Portuguesa