sexta-feira, 21 de março de 2014

Escrevendo a história

Estudiosos concluem dicionário da língua mesopotâmica, que ficou 2 mil anos sem ser falada, e reavivam interesse pelos primórdios da escrita


Inscrição com trecho do poema épico Gilgamesh: escrita cuneiforme registrou as primeiras manifestações literárias da humanidade


Para quem achava que a Mesopotâmia estava restrita às aulas de história e aos enredos de escolas de samba, o antigo território ganhou destaque mês passado por uma razão linguística. Após noventa anos, acadêmicos da Universidade de Chicago (EUA) concluíram um dicionário de 21 volumes sobre a língua mesopotâmica e seus dialetos babilônicos e assírios.

Trata-se da língua usada por Sargão da Acádia, em 24 a.C., para comandar o primeiro império do mundo e empregada por Hamurabi, em 1700 a.C., para proclamar as primeiras leis conhecidas pela humanidade. Com ela foi composta Gilgamesh, a primeira obra da literatura, criada na metade do terceiro milênio a.C. (compilada em 7 a.C.). Narra a epopeia do rei semilendário da cidade de Uruk, em 12 tabuletas achadas na biblioteca do rei assírio Assurbanípal, em Nínive.

O dicionário abre perspectivas ao estudo da escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios no 4º milênio a.C., entre os rios Tigre e Eufrates, onde hoje é o Iraque, estendendo-se a partes da Síria. É o primeiro sistema de escrita de que se tem notícia. A palavra "mesopotâmia", no entanto, vem do grego meso ("entre") e potamia ("rios").

Evolução
A obra conta com 28 mil palavras, que recobrem de 2500 a.C. a 100 d.C., seguindo as nuances de significado de cada termo. Por essa razão, assemelha-se mais a uma enciclopédia do que a um dicionário propriamente, pois suas definições trabalham com múltiplas acepções, abrangendo áreas tão diversas quanto a religião, o comércio e a literatura. Embora umu designe "dia", por exemplo, foram necessárias 17 páginas para explicá-la. Ardu (escravo) implica todo o universo relacionado ao trabalho da época, exigindo extensas considerações de ordem histórica e sociológica; e o versátil verbo kalu tem acepções que variam com o contexto, como "deter", "demorar", "manter em custódia", "interromper".

A notícia indica a união de forças da arqueologia e da linguística para entender-se o surgimento e a evolução da escrita, tema de encanto e curiosidade, como mostra Josué Machado, consultor e colunista de Língua, nas páginas que seguem.

A evolução da escrita

8000 - 4000 a.C.
Símbolos, sinais, pictogramas mesopotâmicos
3700 a.C. Sistema fonético sumério
3500 a.C. Hieróglifos egípcios e escrita cuneiforme
2200 a.C. Alfabeto consonantal
1200 a.C. Alfabeto fenício
1000 a.C. Alfabeto grego
600 a.C. Latim
700 d.C.
Alfabetos europeus ocidentais


Do desenho à escrita

Josué Machado

O homem encontra a mulher, longe da tribo. São jovens. Ele emite grunhidos. Ela grita e ameaça correr. Estamos há 29 mil anos, no atual Parque Nacional da Capivara, Piauí. É o início do paleolítico superior. Um bom dia para o bípede. Antes, tinha devorado um naco de carne crua de tatu. Não precisara comer apenas frutas, larvas e minhocas.

Saciados, rabiscam a rocha. Reproduzem cenas domésticas, bichos de que fugiam ou perseguiam, as delícias da carne. Nítidas, coloridas, são gravuras parietais (em paredes) - de cavernas, mais conservadas; ou rupestres (de rocha), ao ar livre, dadas a intempéries. As de Lascaux (França) têm 20 mil anos. As de Altamira (Espanha), "só" 11 mil. Bem mais novas do que as do Piauí. Conclui-se, sem originalidade, que a forma de expressão na infância da humanidade foi o desenho, como em geral ocorre na infância do homem. Foram os desenhos que precederam as primeiras formas de escrita, entre 5 e 6 milênios passados, na Idade do Bronze.

Muitos nascimentos

A escrita se desenvolveu da necessidade de o homem reter informação impossível de guardar na memória. E de comunicar-se a distâncias que ultrapassam o alcance da voz. Surgiu provavelmente em mais de um lugar mais ou menos ao mesmo tempo - entre dezenas ou centenas de anos. Prazo desprezível, considerando que a escrita hieroglífica egípcia e a cuneiforme suméria perduraram por 3 mil anos. E dessas são os primeiros vestígios encontrados, embora se reconheça que houve ao menos outros nascedouros da escrita: um entre os maias e outro no Vale do rio Indo, atual divisa entre Índia e Paquistão, que data, no mínimo de 2500 a.C. Trata-se de um sistema de escrita ainda não inteiramente decifrado: as pesquisas das inscrições em Mohenjo-Daro e Harapa são recentes.

O berço egípcio

Os hieróglifos (que significa "entalhes sagrados") surgiram há 5.250 anos, segundo os egiptólogos John Colleman Darnell, da Universidade de Yale (EUA), e sua mulher, Deborah. Eles encontraram o que supõem ser os mais antigos exemplares de escrita até o momento. São proto-hieróglifos gravados numa placa de argila descoberta em 1995 a oeste do rio Nilo. A placa registra a vitória de um poderoso monarca, provavelmente o lendário rei Escorpião, que teria desempenhado papel importante na unificação do Egito.

Contemporânea da cuneiforme, a escrita hieroglífica foi a que se manteve em uso por mais tempo. Há gravações de hieróglifos feitas em 394 a.C. Também formados por sinais pictográficos, aos poucos foram deixando de registrar diferentes tipos de textos para ser usados só para expressar sentimentos religiosos.

No entanto, é possível que tanto egípcios quanto sumérios tenham usado a escrita antes disso, mas em material perecível, como madeira, de que não ficaram vestígios. Rolos de papiro com inscrições, embora perecíveis, conservaram-se em tumbas por causa do clima seco do Egito.

A escrita cuneiforme

A escrita cuneiforme surgiu há mais de 5 milênios na Mesopotâmia, criada pelos culturalmente adiantados sumérios. Sua ideografia evoluiu para a escrita mais tarde usada pelos acádios, assírios, babilônios e outros povos.

"Cuneiforme" pois seus caracteres têm forma de cunha (latim cuneus). Eram gravados em placas de argila úmida com a extremidade de junco ou cabo de madeira e, depois, cozidas. Como os sumérios não haviam formado império, mas viviam em cidades-Estado em guerra entre si, eram fracos militarmente. Por isso, os agressivos babilônios os dominaram e lhes assimilaram a cultura.

Saltos evolutivos

Há autores que consideram a transição da escrita ideográfica para a escrita fonética uma das maiores realizações da humanidade. Basta lembrar que na escrita ideográfica os muitíssimos símbolos correspondem a objetos, a coisas, e na escrita fonética, a sons, com possibilidades infinitas; na escrita ideográfica, era preciso criar cada vez mais sinais para corresponder ao número crescente de novidades, enquanto a fonética atende com precisão e permanentemente às exigências do pensamento em evolução - um passo fundamental para o progresso do homem.

As pequenas tábuas de argila achadas nas ruínas de cidades sumérias de Ur e Uruk exibem os sinais pictográficos característicos: o sinal correspondente a um boi, por exemplo, assemelha-se à cabeça de um animal, e o que representa o dia é o desenho do nascer do sol. A maior parte delas se refere a registros econômicos.

Por isso, é quase certo que tais registros tenham sido criados pela necessidade de controlar a mercadoria que entrava no palácio real e no templo e deles saía. Eram as duas mais importantes instituições da época. Poder e religião. Mais ou menos como agora.

Mas a escrita evoluiu. Aos poucos, foi deixando de representar a realidade para se tornar mais e mais abstrata. As ideias passaram a ser expressas por traços, e não mais por desenhos e ideogramas.

O alfabeto fenício

Foi em torno dos séculos 12 ou 13 a.C. que os fenícios, comerciantes profissionais, criaram as bases do alfabeto. A Fenícia ocupava a margem oriental do Mediterrâneo oriental e as montanhas do atual Líbano. Seus habitantes haviam assimilado as culturas egípcia e mesopotâmica e se movimentavam com desenvoltura pelo Mediterrâneo.

Como os fenícios precisavam de um sistema simples de escrita para suas atividades, transformaram os ideogramas egípcios e sumérios em símbolos simplificados. Era um alfabeto consonantal (sem a representação de vogais) que, aparentemente, originou as escritas aramaica e hebraica. E foi a fonte usada pelos gregos, em 750 a.C., para criar o alfabeto fonético ocidental, com sinais para consoantes e vogais. Em seguida, os romanos o adaptaram para o latim.

O marco maia

Enquanto os fenícios criavam as bases do alfabeto atual, no século 12 ou 13 a.C., a civilização maia florescia no México e na América Central, também com seus ideogramas como forma de expressão escrita. A cidade maia de Atlan, destruída por um terremoto em 666, guardava 2.156 tabuletas de ouro com suas leis, o chamado Código Maia de Desdre. Parte dessas tábuas foram descobertas nesta década por pesquisadores alemães, na Guatemala. São provavelmente as amostras mais antigas de escrita na América.

Revista Língua Portuguesa

quinta-feira, 20 de março de 2014

A história dos celtas

Um povo na soleira da História

Durante mais de meio milênio, os celtas determinaram os destinos da Europa. Sua terra natal ficava ao norte dos Alpes. Eles chegaram a conquistar Roma e batizaram Milão, mas nunca criaram um reino unificado, nem escreveram sua
 Cay Rademacher e Martin Paetsch (TEXTO) e Berthold Steinhilber (FOTOS)

Este provavelmente foi o assentamento mais significativo da pré-história celta: a fortaleza de Heuneburg, construída em 600 a.C. às margens do rio Danúbio. Atualmente, o burgo, fielmente reconstruído, está localizado no sul da Alemanha


As primeiras Metrópoles do Norte
Em todos os lugares habitados por celtas, as pessoas começaram a construir, a partir do século 2 a.C., assentamentos como nunca tinham existido antes ao norte dos Alpes: eram cidades planejadas - inspiradas por romanos, etruscos e gregos, seus principais parceiros comerciais no sul. Essas vilas fortificadas ofereciam proteção a milhares de habitantes; ali se cunhavam moedas, falava-se em leis e o comércio era luxuoso. Na região central da França, uma tribo gaulesa construiu uma dessas metrópoles: Bibracte. Uma suntuosa avenida, de 15 metros de largura, percorria toda a cidade. O muro do reservatório de água em seu centro protegia uma nascente que já secou há muito tempo. Suas paredes, reconstruídas em um granito com um suave brilho cor-de-rosa, podem ser visualizadas como os pontos de intersecção de dois círculos secantes (diz-se de linhas retas ou curvas que interceptam outras retas ou curvas) - possivelmente o princípio de construção do projeto


Um lugar para camponeses e pastores
Embora os celtas já construíssem grandes cidades, a maioria deles permanecia no campo. Durante mais de 300 anos, camponeses habitaram essa "fazenda" - hoje reconstruída por arqueólogos - na paisagem montanhosa de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha. Acredita-se que por volta de 50 a.C. os edifícios localizados em uma pequena fortificação foram abandonados. Ao lado da casa residencial (à esquerda), coberta como todas as outras com uma espessa camada de palha ou telhas de madeira e paredes feitas de barro ou vime entrelaçado, localizam-se os celeiros e as cocheiras. Essas pessoas plantavam espelta (uma espécie de trigo vermelho) e cevada, com as quais preparavam um mingau de cereais - o principal alimento na idade do ferro. Eles também colhiam ervilhas, lentilhas e painço; e mantinham suínos e bovinos


Por onde se estende a tênue linha entre a pré-história e a história? Quando um povo desponta do crepúsculo das eras arcaicas e entra na luz da memória coletiva?

Quando ele recebe um nome.

Há milênios povos anônimos, sem nomes, viviam na Europa ao norte dos Alpes: caçadores, pescadores, camponeses, guerreiros, artistas. Incontáveis gerações deixaram suas marcas em cavernas, nas margens de rios, em pântanos, no fundo de lagos e até no gelo das geleiras. Ainda assim, para nós eles são povos estranhamente nebulosos, porque não podemos lhes dar um nome. Os cientistas resolvem o problema ao nomear grupos étnicos de acordo com relíquias importantes ou sítios arqueológicos; porém, desse modo, eles apenas mascaram o drama do anonimato.

O primeiro povo da Europa Central a despontar desse anonimato foram os celtas.

Os antigos gregos chamavam os povos que habitavam essa região - e falavam um idioma comum - de keltós ou kéltai (celtas). Eles anotaram suas observações e, desse modo, as registraram para todo o sempre. Assim, as diversas relíquias que os arqueólogos desenterram do solo, ganham um contexto intelectual e espiritual que falta aos achados mais antigos: para nós, homens modernos, são os traços materiais e uma memória escrita que de fato constituem uma cultura.

Mas essa primeira cultura centro-europeia é intrigante: ninguém sabe dizer exatamente onde ela surgiu, que nome os primeiros celtas deram a si mesmos, como eles batizaram rios, montanhas e florestas, como chamavam seus assentamentos ou em que deuses eles acreditavam. Nem aos menos se sabe se eles se autodenominavam "celtas", se suas tribos e povos se sentiam coesas, como uma unidade, ou se eles apenas foram considerados um povo pelos observadores gregos.

Sabe-se com certeza que os celtas nunca construíram um grande império e que durante toda a sua existência praticamente não escreveram uma única frase que tenha sobrevivido aos milênios. Quando a sua cultura finalmente desapareceu, uma parte significativa de sua herança intelectual e espiritual também foi apagada para sempre.

Sendo assim, aos arqueólogos e historiadores resta apenas se empenhar em uma busca de pistas para descobrir quando começou essa cultura celta. Onde ela se originou e por quê?

Em suma: quem foram os primeiros celtas?
Essa espada foi encontrada no túmulo de um príncipe às margens do rio Meno


I. PRIMEIROS TESTEMUNHOS
O mais antigo documento transmitido que fala dos celtas é lacônico e enigmático. Trata-se do périplo de um grego anônimo que compôs uma espécie de carta marítima em forma de texto, com a descrição das costas e faixas terrestres com a qual os capitães de navios poderiam se orientar em viagens de longa distância. Há séculos esse relato, provavelmente escrito por volta de 600 a.C., vinha sendo transmitido apenas em fragmentos e descrevia as regiões oeste e norte da Europa. No texto, os celtas foram citados uma única vez: eles viviam em "uma terra que haviam roubado dos ligúricos".

Outros indícios antigos sugerem que isso provavelmente se referia à Provença, o interior da costa sul da França. Mas o testemunho deixa claro que essa região não fazia parte da terra natal original dos celtas - caso contrário, ela não poderia ter sido "roubada".

O próprio Nome deles é muito estranho

Por volta de 450 a.C., o grego Heródoto, um dos maiores historiadores da Antiguidade, parece escrever com mais precisão: "O Danúbio, que vem da região dos celtas e da cidade de Pyrene, percorre o centro da Europa. Mas os kéltai vivem além das Colunas de Hércules."

O cronista, porém, que nunca viajou por essa parte do continente, vinculou duas regiões diferentes: para os antigos gregos a expressão "além das Colunas de Hércules" significava "além do Estreito de Gibraltar" - uma descrição vaga para todas as terras conhecidas no oeste e norte da Europa, situadas às margens do Atlântico e, portanto, alcançáveis por navio. A área do Danúbio superior, entretanto - "de onde o rio vem" - abrange o espaço do atual leste da França, do sudoeste da Alemanha, e do noroeste da Suíça.

Portanto, até os gregos, na época a cultura mais desenvolvida da Europa com seus historiadores, geógrafos, poetas e marinheiros que navegaram até o Atlântico, e que tinham uma ideia aproximada da localização dos rios Ródano, Sena, Reno, Danúbio e Elba, praticamente desconheciam os celtas nos primórdios de sua cultura.

Sabe-se apenas que eles encontram pessoas do sul da França até a costa atlântica e o alto Danúbio a quem chamam de kéltai. Mas o que significa essa palavra? De acordo com uma teoria moderna, kéltai poderia significar "os grandes, superiores".

Mas: será que essas pessoas se autodenominavam assim? No sentido étnico eles pertenciam a um único povo? Ou o termo designa povos diferentes que, do ponto de vista grego tinham coisas importantes em comum? Coisas de que seus povos vizinhos não dispunham? E o que seria isso? Um idioma comum, uma religião comum? Ou aspectos externos, como uma forma uniforme de se vestir, armas, joias?

Tudo isso é possível, mas nada pode ser provado. Por volta do ano 600 a.C., os celtas já deviam parecer um povo amplamente difundido aos olhos dos marinheiros e aventureiros gregos - mas, quando e onde procurar as suas origens, é algo que nem os escritos mais antigos revelam.

Isso é algo que somente os testemunhos silenciosos dos celtas poderiam fazer.
Os celtas construíam túmulos diferenciados, em forma de colinas, para homens e mulheres influentes. Muitas vezes, esses lugares eram delimitados com estacas de madeiras ou pedras e assim marcados como lugares sagrados - como este, perto da fortaleza de Heuneburg. Uma sepultura semelhante foi descoberta às margens do rio Meno (veja o texto), porém não foi conservado


II. O PRIMEIRO PRÍNCIPE
Um rio sinuoso. Água cinzenta, margens pantanosas. Tufos de um denso nevoeiro enroscam nos galhos do salgueiro. Amieiros e choupos se enraizaram no terreno pantanoso. A cerca de mil passos atrás da margem do rio, o solo se eleva, formando uma colina perfeitamente redonda, coberta de grama, e medindo mais de quatro metros de altura e 36 metros de diâmetros. Uma grande estrela de brilho avermelhado (pedra vertical em que os antigos faziam inscrições), do tamanho de um homem e cinzelada rudimentarmente, ergue-se ao pé da colina, imóvel e silenciosa como um guardião.

Este é um lugar sagrado. Um túmulo.

No interior da colina se oculta uma câmara de carvalho. Nela repousa um homem morto, de 50 ou 60 anos, aproximadamente 1,75 metro de altura, grande e musculoso em vida, com uma espada magnífica ao lado além de outros tesouros.

Um lugar mágico, como de uma lenda antiga - que hoje se encontra em uma faixa da periferia urbana, em um pequeno bosque de carvalhos, nas cercanias de Frankfurt, na Alemanha.

Por volta de 700 a.C., quando o defunto foi colocado na câmara, no entanto, a colina funerária dominava toda a bucólica paisagem agreste que o rio Meno havia esculpido entre as florestas e os prados. O homem, cuja paz eterna foi perturbada em 1966 por arqueólogos, é intitulado de "príncipe celta" pelos pesquisadores. Seu túmulo é tão grandioso e as oferendas em sua câmara mortuária tão magníficas, que eles concluíram que o morto devia ter desfrutado de uma posição de destaque.

Ao longo dos anos, muitas colinas funerárias como esta foram pesquisadas, mas nenhuma delas abrigou restos mortais de um período mais antigo do que esse túmulo às margens do Meno.



Por essa razão, aquele homem anônimo e suas oferendas esplêndidas se transformarão em testemunhos de uma reviravolta épica na Europa Central - uma revolução que trouxe os celtas à luz da história.

Isso por que, a partir de cerca de 800 a.C., o mundo da Europa Central e a cultura de seus povos se modificam drasticamente - abrangendo ao mesmo tempo uma região vasta e uniforme - que os arqueólogos dataram o surgimento dos celtas precisamente naquela época.

A partir de 800 a.C., mais ou menos, o clima piora acentuadamente. Esse cataclismo climático (cujas origens são um mistério) provocou, durante décadas, temperaturas mais baixas e chuvas mais fortes e frequentes. Uma das consequências disso foi que assentamentos humanos milenares às margens de rios e lagos literalmente foram consumidos pelas inundações. De repente, populações inteiras se viram obrigadas a procurar novos territórios em áreas mais altas.

Naquelas mesmas décadas, aproximadamente, a Europa Central também deu o salto cultural da idade do bronze para cea idade do ferro. O bronze, uma liga de cobre e estanho, já era conhecido há séculos, sendo utilizado para fabricar armas e ferramentas, utensílios domésticos e até para objetos tão cotidianos como agulhas para prender as vestes. No entanto, esse material era relativamente maleável e pouco rijo - e o cobiçado estanho, raro na Europa, era encontrado principalmente no sul da Inglaterra.
Quando toda uma cultura desapareceu
Por volta do ano 80 a.C., um incêndio destruiu esse muro no monte Vully, uma fortaleza construída acima do lago Murten, na Suíça, mas ele foi reconstruído posteriormente como um memorial. Nessa mesma época, as cidades celtas no sul da Alemanha também decaíram e nas décadas seguintes toda a região se transformou em um ermo praticamente despovoado. Os pesquisadores especulam até hoje por que a civilização celta tão altamente desenvolvida entrou em colapso. Alguns suspeitam que germanos vândalos e saqueadores foram os responsáveis; outros acreditam que epidemias ou secas devastadoras expulsaram os habitantes da região


O ferro, por outro lado, podia ser explorado em muitos lugares. Mais duro do que o bronze, porém, o minério tinha que ser laboriosamente derretido durante horas a fio, a temperaturas superiores a 1.000ºC, em complexos fornos alimentados por pilhas enormes de carvão de madeira. Por volta de 1500 a.C., essa técnica é dominada pela primeira vez na Anatólia; a partir de então esse conhecimento se espalha lentamente rumo ao Mediterrâneo, chegando por fim à Grécia.

Por volta de 800 a.C., o primeiro ferreiro celta deve ter sido instruído nos segredos dessa arte - provavelmente por um mestre do sul. A partir de então, as pessoas ao norte dos Alpes começaram a extrair ferro - de início somente um pouco, porque a produção continuava sendo difícil -, mas progressivamente esse material rijo e durável passou a ser usado para fabricar armas e ferramentas.

Paralelamente, o bronze continuou sendo importante como matéria-prima para produzir utensílios domésticos e joias: ele podia ser derretido por meio da antiga tecnologia e moldado mais facilmente em formas mais complexas e elaboradas. A demanda de cobre e estanho chegou até a aumentar. Nessa época, os gregos avançam pelo Mediterrâneo e fundam colônias no sul da Itália, na Sicília, e por fim na Provença, onde, por volta de 600 a.C., nasce a atual Marselha.

Seus concorrentes são os fenícios, procedentes do Oriente (levante), que também constroem colônias no oeste, entre elas, Cartago. Além disso, no final do século 8, um povo enigmático também consegue dar o salto para uma cultura mais elevada na Itália central. Eles fundam cidades, utilizam a escrita, e comércio de longa distância com matérias-primas e tesouros: os etruscos.

Os fenícios, e mais tarde os cartagineses, se alternam no domínio do mar e por fim bloqueiam o Estreito de Gibraltar ao tráfego de todos os navios estrangeiros. De lá em diante, somente eles comercializam com a Espanha e, através de uma rota marítima no Atlântico, com a Inglaterra rica em estanho.

Por essa razão, os rivais gregos e etruscos não conseguem mais transpor os mares. Em vez disso, em busca de estanho (e outras matérias-primas, como o âmbar do Mar Báltico), eles desenvolvem contatos comerciais com a distante Europa central avançando de Massalia até o Ródano e o Sena. E, passando por diversos desfiladeiros alpinos e pela região do Danúbio, eles finalmente chegam ao Reno e ao Elba.

Os emissários das civilizações mediterrâneas levam tesouros de intercâmbio ao Norte: recipientes de bronze, vinho e cerâmicas preciosas.

Desse modo, o mundo das pessoas que vivem ao norte dos Alpes muda dramaticamente: por meio do clima mais frio e úmido, através do novo metal (ferro) - e devido aos estrangeiros do sul que apresentam maravilhas até então desconhecidas.

Nessa confusão surge uma cultura que os pesquisadores batizaram de "celta" e que agora passará por muitas inovações revolucionárias; entre elas, o aparecimento de novos assentamentos - porque os antigos afundaram ou estão afundando.

Forma-se também uma espécie de protoindústria do ferro: os pesquisadores estimam que só o peso dos montes de escória procedentes dos fornos de derretimento celtas variam de um a dois milhões de toneladas.

Além disso, nasce uma nova cultura funerária: ao contrário de seus antepassados, os poderosos dessa época não se deixam mais cremar, mas enterrar.


A cultura celta surgiu no início da idade do ferro. Um modo de vida semelhante unia as pessoas que habitavam desde o leste da França, passando pelo sul da Alemanha, até a Hungria: elas construíam túmulos em forma de colinas, forjavam armas e ferramentas de ferro e fechavam suas túnicas com fivelas ornamentadas. Os celtas provavelmente foram chamados pela primeira vez de "keltoi" por estudiosos gregos do século 6 a.C.; mas os arqueólogos preferem o termo "Cultura de Hallstatt", em homenagem a um importante sítio arqueológico encontrado na Áustria


Paralelamente desenvolve-se uma nova forma de arte, inspirada por gregos e etruscos: estrelas em forma humana, representações de rostos em bronze, cerâmicas com ornatos geométricos. Acima de todas essas novas conquistas, surge um novo poder: os líderes de clãs e tribos agora conquistam uma grande influência - possivelmente porque são descobertas jazidas significativas de minério de ferro em seu território. Ou porque eles têm ferreiros muito habilidosos em suas fileiras; ou ainda porque eles controlam os lugares mais importantes ao longo das rotas comerciais recém-criadas, como cursos de rios, passos ou as vaus por onde se cruzam os rios.

Além disso, os grupos e as tribos estão vinculados por uma língua comum. Linguistas reconstruíram seu desenvolvimento a partir de idiomas da família céltica utilizados até hoje (como o irlandês e o bretão), de nomes geográficos tradicionais e dos poucos "documentos" celtas antigos, escritos com pouquíssimas letras etruscas, gregas ou latinas (em geral, de lápides funerárias do período que antecedeu o desaparecimento dos celtas). De acordo com os estudos, os linguistas suspeitam que ela já tenha se originado por volta de 1300 a.C. - mas não existem provas cabais para isso.

O idioma celta era uma língua Universal em toda a Europa

Alguns detalhes, porém, indicam que foi no espaço localizado na extremidade norte dos Alpes que se falou celta pela primeira vez: portanto, precisamente naquela região da qual, segundo Heródoto, "provém" o Danúbio, e os celtas têm a sua terra natal.

Por volta de 800 a.C., o idioma celta já é falado do Danúbio até o Meno; da Borgonha até a Boêmia. Mais tarde, essa área linguística deve ter-se estendido até a costa atlântica, a Península Ibérica e a planície húngara. Não está claro, porém, para quantas pessoas dessa gigantesca região o celta é a língua-mãe ou apenas uma língua franca - um idioma comercial compreendido através de várias fronteiras geográficas (como o latim na Idade Média).

Portanto, tudo indica que no turvo período do século 8 a.C. formou-se um povo composto por incontáveis tribos - não necessariamente da mesma etnia - e dispersas pela metade da Europa central. Uma comunidade supranacional, unida por vestimentas semelhantes, ritos religiosos comuns, uma criatividade técnico-artística parecida, joias, armas e acima de tudo, um idioma compreensível para todos.

Nesse povo, parece que o poder é reservado a uns poucos homens de destaque que hoje são chamados de "príncipes" (já que ninguém conhece seus títulos antigos). São nobres que já não se deixam mais cremar após a morte: seus corpos agora descansam embaixo de monumentais colinas funerárias, em cujas cercanias os arqueólogos já descobriram muitos outros túmulos idênticos - evidências de que para muitas gerações foi importante ser enterrado à sombra de seu príncipe.

III. ÀS MARGENS DO DANÚBIO
O mundo dos celtas vivos se evidencia naquela região que Heródoto já chamava de o coração da terra desse povo.

Em um vale de quatro quilômetros de largura, não muito longe das margens do Danúbio superior, perto da cidade de Sigmaringen, no sul da Alemanha, desponta na paisagem uma estrutura triangular, a 60 metros acima do rio. Com 300 metros de comprimento e uma base de 150 metros de largura, aquele seria um lugar ideal para um assentamento humano.

Aqui se bifurcam caminhos que vão longe, pois o Danúbio facilita uma conexão transversal dos rios franceses (a famosa "rota do estanho" que vai do Mediterrâneo até o Atlântico) com os rios alemães (a chamada "rota do âmbar", que se estendia do Adriático ao Báltico).

O povoado poderia ter sido uma espécie de ponto de encontro, a partir do qual os comerciantes viajavam por cima dos passes alpinos até os etruscos, na Itália. Nas décadas após 600 a.C., esse "esporão" na paisagem será palco de um desenvolvimento civilizatório inédito: os habitantes da região construirão uma fortificação (um burgo) aqui - em pouco tempo o pico da colina será cercado por uma muralha de 750 metros de extensão, quatro metros de altura, caiada de branco e guarnecida de um passadiço de madeira, torres e pelo menos dois portões.

Embora muralhas não fossem uma novidade ao norte dos Alpes - construções de madeira, terra e pedras - o que aconteceu em Heuneburg foi algo muito estranho: os construtores do burgo trouxeram imensos blocos de pedra calcária, de centenas de quilos, de uma distância de pelo menos cinco quilômetros. Elas formaram o alicerce da muralha. Em seguida, os operários moldaram - e secaram ao ar livre - quase meio milhão de tijolos rigorosamente padronizados (cerca de 40 x 40 x 10 cm), feitos com uma mistura de lama do Danúbio, palha e pó de pedra, que foram assentados sobre o alicerce.

Nunca antes uma muralha desse gênero havia sido erguida na Europa central.

Até agora, os arqueólogos só desenterraram muralhas de tijolos de barro assentados sobre um alicerce de pedra calcária na região do Mediterrâneo, na Provença, na Sicília e no Levante. Os gregos costumavam cercar suas cidades desse modo e alguns de seus rivais marítimos, como os fenícios provenientes do Líbano. Portanto, a fortificação de Heuneburg se assemelha até os mínimos detalhes às fortalezas do sul - em detalhes técnicos ela é ainda mais parecida com as obras fenícias do que as gregas.

A charada da fortaleza na realidade só pode ser explicada da seguinte maneira: um mestre de obras do sul deve ter concebido essa muralha de tijolos. Nenhum habitante nativo, que o acaso tivesse levado à região do Mediterrâneo e que viu esses paredões por lá e mais tarde voltou para casa, poderia ter construído essa fortaleza sem qualquer experiência em construção - sua execução é perfeita demais, a logística organizada demais para poder ser apenas uma imitação improvisada.

No período tardio da idade do ferro, a cultura celta se estendia até o Atlântico e o Mar Negro - principalmente porque eles pareciam ser superiores a outros povos. Nas Ilhas Britânicas falava-se um dialeto celta, e alguns celtas foram levados à atual Turquia como mercenários e se estabeleceram por lá. Mais tarde, pesquisadores também descobriram inscrições celtas no nordeste da Espanha. Esse povo criou uma arte própria, deu continuidade ao aprimoramento da metalurgia e à fabricação de armas, e as diversas tribos celtas fundaram grandes assentamentos fortificados. Os arqueólogos chamam essa época de cultura ou período de "La Tène", nome de um sítio arqueológico na Suíça
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Revista GEO

Marcha rumo à catástrofe

No dia 22 de junho de 1941, três milhões de soldados alemães invadem a União Soviética. A investida, há 70 anos, durou meses e fez mais vítimas do que qualquer outra, constituindo um ponto de inflexão na História mundial. Após alguns sucessos iniciais, as forças alemãs fracassam , devido à paranoica megalomania de Hitler e à mais abnegada resistência da União Soviética
Por Till Hein e Jonathan Stock

1941 - O ano fatídico (I)
A campanha militar de Hitler na Rússia

A fumaça de uma casa de fazenda em chamas escurece o céu perto de Charkow, no nordeste da Ucrânia. Aparentemente irrefreável, e de início com uma velocidade espantosa, a máquina militar alemã avança rumo ao leste




No dia 22 de junho de 1941, quando tem início o ataque à União Soviética, Fritz Farnbacher, oficial da 4ª Divisão de Panzers (blindados), escreve em seu diário que a maioria de seus camaradas se alegraria "imensamente se finalmente houvesse combates e muito barulho de novo". E que ele está feliz por poder trocar "as atividades muitas vezes enfadonhas do serviço cotidiano" por "uma guerra de verdade".

Nem meio ano depois, ele a chamará de "a mais desgraçada de todas as guerras".

Farnbacher é um dos mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas alemãs, que invadem o maior país do planeta. A ofensiva fará mais vítimas do que qualquer outra da História: cerca de 27 milhões de soviéticos morrem em consequência da invasão de seu território; entre eles, quase 18 milhões de civis, aproximadamente 30% de todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial. E durante esse avanço dos alemães, um número ainda maior de órfãos, viúvas e feridos fica para trás, nas mais de 1.700 cidades destruídas pelos bombardeios e nas 70.000 aldeias queimadas da União Soviética.

Trata-se de uma guerra que difere de todas as outras campanhas militares da Modernidade, pois não consiste apenas em um esforço de conquista, mas também numa incursão destrutiva contra porções enormes da população. Uma guerra planejada para ser exatamente assim.

NO DIA 30 DE MARÇO DE 1941
, Hitler explica durante 2 horas e meia, a cerca de 100 de seus generais mais graduados, na nova Chancelaria do Reich, em Berlim, a "luta entre duas visões de mundo", na qual o "bolchevismo" precisa ser destruído.

A "condução da guerra contra a Rússia" deve ser diferente do esquema adotado até então. Nas campanhas militares até aquele momento a justiça para com todos os "criminosos" nos territórios ocupados teria sido "humana demais".

Não se escuta nenhum protesto do alto comando do Exército. Rotineiramente, as explanações do Führer são traduzidas em ordens; diversos esboços operacionais são elaborados e avaliados de diversos ângulos. E então a direção da Wehrmacht emite duas ordens que custarão a vida a centenas de milhares de pessoas.

A primeira permite "liquidar sem dó" os francoatiradores, em vez de levá-los a um tribunal de guerra, como até então fora feito. No caso de a identificação dos atacantes inimigos se revelar impossível, devem ser tomadas "medidas de violência coletiva" contra cidades e vilarejos. Uma simples suspeita bastará para que sejam destruídas aldeias inteiras. Inversamente, crimes de guerra alemães serão tratados com benevolência, sem punições. Uma única exceção será feita: nos episódios de estupros e de pilhagens descontroladas.

A outra decisão se volta contra os comissários políticos soviéticos, aqueles funcionários comunistas destacados para acompanhar toda a unidade do Exército Vermelho e controlar seus integrantes. De acordo com as instruções para o ataque à União Soviética, eles não deverão ser tratados como prisioneiros de guerra, mas sumariamente fuzilados.

A ordem também rompe com a tradição de respeito pelo inimigo, que manda tratar prisioneiros com justiça. Alguns generais suspeitam que, difundida no campo de batalha, essa orientação aumentará a resistência de soldados inimigos. Mesmo assim, o corpo de oficiais expressa admiração por Hitler. Um tenente-general diz aos seus comandantes: "Na antiga Alemanha, uma ordem dessas teria sido impossível, porque ninguém teria tido a coragem de emiti-la".

As garras do Chanceler se estendem em direção aos celeiros, campos de petróleo e fundições de armas da União Soviética. Esta guerra deverá permitir à Alemanha criar um império que se estenderá do Atlântico aos Montes Urais e, com isso, garantir-lhe supremacia absoluta no mundo.

Somente uma sombra de dúvida, uma fugaz incerteza, acomete o líder do ataque, antes que soe a hora para o avanço das tropas. Em um círculo íntimo, Hitler admite: "Tenho a sensação de estar escancarando uma porta para um lugar escuro, nunca antes visto, sem saber o que se oculta atrás dele".

NO DIA 22 DE JUNHO DE 1941, às 03h15min, começa a ofensiva. A frente se estende por uma linha de quase 1.000km, do Mar Báltico até os Montes Cárpatos (10 dias depois, tropas romenas e alemãs atacarão a União Soviética partindo da Romênia, e assim ampliarão a frente para 1.500km). Nas florestas da Prússia Oriental e da Polônia, centenas de milhares de soldados se esconderam a apenas poucos quilômetros das tropas fronteiriças soviéticas, o plano prevê um ataque surpresa e os guardas da fronteira de fato não desconfiam de nada.


A Wehrmacht quer decidir sua "campanha militar russa" rapidamente, com 3.600 tanques. Mas em muitos lugares o avanço ocorre em estradas de chão batido. A areia penetra nos motores e resulta em mais avarias que acertos contra o adversário. Além disso, faltam mapas; as tropas avançadas são obrigadas a pedir orientações a camponeses, como na foto à direita, parte de um conjunto de coleções particulares descobertas várias décadas após o fim da guerra

Poucas horas antes de o avanço ter início, os alemães retiram a camuflagem de seus veículos, arrastam canhões para fora de seus esconderijos e os posicionam para funcionar. E então, bem mais de 3 milhões de soldados da Wehrmacht cruzam a fronteira, acompanhados por 3.600 Panzers (blindados), 2.700 aviões e mais de 750.000 cavalos atrelados a canhões, veículos de abastecimento e ambulâncias. A maior força militar de ataque que jamais existiu.


ELA ESTÁ ORGANIZADA em três grandes exércitos: o Exército Norte deve atravessar a região do Báltico e avançar sobre Leningrado; o Exército Sul tem por função ocupar a Ucrânia; e o Exército do Meio está encarregado de tomar as cidades de Minsk e Smolensk, para em seguida conquistar Moscou.

Essas três formações estão compostas por 153 Divisões; unidades tão numerosas quanto pequenas cidades, ramificados em uma malha de regimentos, batalhões e companhias, cada qual com seus próprios cavalariços, padeiros, açougueiros e um serviço de correio de campanha.


A 4ª DIVISÃO DE PANZERS de Fritz Farnbacher luta como parte do Exército do Meio; sua tarefa é altamente arriscada. Com seus tanques eles devem romper o mais rápido possível a frente do Exército Vermelho, para cercar o inimigo.

A velocidade é decisiva, insistem seus comandantes incessantemente. Até o final de setembro essa campanha militar tem de ser vencida; para evitar que ela se estenda pelo período das chuvas, que enlameiam as estradas russas durante semanas a fio.

"Não existem paradas; pausas, só para reabastecer", escreve Farnbacher em seu diário. "As refeições são feitas durante a viagem, ou durante os breves intervalos de abastecimento. Só existe uma meta, um destino: Moscou!".

Mil e quarenta quilômetros os separam da capital soviética. Mas 3 semanas depois, serão somente 350km. Já nas primeiras horas do confronto a Wehrmacht conquista quase todas as posições soviéticas nas regiões de fronteira, onde estão estacionados quase 3 milhões de soldados do Exército Vermelho, além de mais de 10.000 tanques e 8.000 aviões de guerra. Mas ninguém alertou as tropas; para elas, o ataque é uma surpresa total, o ditador soviético Josef Stalin havia proibido seus generais de preparar uma defesa eficaz. Ele ignorara os inúmeros indícios de uma movimentação de tropas alemãs, e a possibilidade de um ataque iminente, tomando-os como uma campanha intencional de desinformação.

A metrópole de Brest-Litovsk, localizada diretamente atrás da fronteira soviética, é conquistada em poucos dias. Aqui são principalmente crianças, mães e avós que se rendem às tropas


As fotos coloridas apresentadas nessas páginas foram consideradas perdidas durante muito tempo. Elas se originam dos pertences de três soldados, e documentam o cotidiano da guerra atrás do front

Em visita aos territórios conquistados, o chefe da polícia alemã Heinrich Himmler encontra camponesas locais. Como comandante da SS (sigla de Schutzstaffel, algo como 'Tropa de Proteção') e chefe da polícia, ele é uma das lideranças da guerra contra a guerrilha. É ele também quem se encarrega da germanização dos territórios ocupados, faxina étnica que objetiva o extermínio e a expulsão da população nativa, particularmente dos judeus

Além disso, o Exército Vermelho está muito mal equipado; às vezes, 5 soldados compartilham o mesmo fuzil. Em outras unidades há tão poucas pás que os homens usam seus capacetes de aço para cavar trincheiras.

Seus superiores são também inexperientes. No final da década de 1930, Stalin havia mandado prender ou fuzilar mais de 80% dos oficiais mais graduados como supostos "delatores e inimigos do Estado". Três quartos dos atuais comandantes não estão nem há um ano em seus respectivos cargos.

Acompanhados em terra pelos corpos blindados e pela Infantaria, os bombardeiros Stuka (derivado da palavra alemã Sturzkampfbomber, avião bombardeiro de mergulho) também penetram profundamente em território soviético, realizando ataques a aeroportos, depósitos do exército e entroncamentos ferroviários. Somente nas primeiras horas, bombas alemãs destroem mais de 60 pistas de pouso da Força Aérea soviética. Milhares de aviões explodem em chamas ainda no solo.

As tropas da Wehrmacht são seguidas por quatro grupos de "comandos de operações", cada qual com até 1.000 homens, que vasculham os territórios já conquistados. Esses grupos são constituídos principalmente por unidades da Polícia e membros dos serviços de segurança. Todos estão subordinados à SS, Schutzstaffel (tropa de proteção, em português), a temida organização paramilitar do Partido Nazista de Adolf Hitler. Sua tarefa: "liquidar elementos hostis". Uma terminologia que quer dizer: o assassinato sistemático dos funcionários comunistas e da população judaica.


LABAREDAS ARDEM na noite do dia 27 de junho de 1941 na sinagoga de Bialystok, cidade na Polônia ocupada pelos soviéticos, 300km a oeste de Minsk. Pouco antes, homens do 309º Batalhão da Polícia, que entrara em Bialystok juntamente com uma Divisão de Segurança, haviam trancafiado centenas de judeus no edifício e ateado fogo nele. Em pouco tempo as chamas saltaram para as casas vizinhas na praça do mercado. Mais homens, mulheres e crianças morrem calcinados, sufocam na fumaça ou são mortos a tiros pela polícia durante a fuga. Ao todo, mais de 2.000 pessoas perdem a vida.

No dia seguinte, o tenente-general Johann Pflugbeil, 58 anos, um veterano da 1ª Guerra, originário da Saxônia, elogia todos os participantes do ataque à sinagoga por seu empenho. No diário de guerra, ele justifica a ação alegando que francoatiradores soviéticos tinham se escondido no prédio. Isso é mentira, mas depois do decreto referente a julgamentos criminais de guerra aplicável à campanha na União Soviética, seus homens estão isentos de punições.

A tarefa das divisões de segurança não são os combates no front. Em vez disso, eles devem proteger pontos de apoio de abastecimento, aeroportos e pistas de pouso no interior do país, além de vigiar prisioneiros de guerra e combater os partisans, guerrilheiros do movimento de resistência aos alemães. A maioria dos homens da 221a Divisão de Segurança de Pflugbeil têm mais de 35 anos, e, com essa idade, já não servem mais para o esforço na frente de batalha. A alguns deles foi dito, ainda em casa, que eles estavam sendo convocados "apenas para tarefas de vigilância".

Após a conquista de cidades e vilarejos pela Wehrmacht, os homens de Pflugbeil obrigam os habitantes judeus a usar retalhos amarelos de identificação em suas roupas. Eles os detêm em campos, organizam contingentes de trabalhos forçados ou, simplesmente, os fuzilam como pretensos guerrilheiros (partisans).

A ESTRATÉGIA DOS ataques surpresa na frente Ocidental parece funcionar: no fim de junho, o Exército Central cerca 20 divisões do inimigo. Até o dia 9 de julho as tropas alemãs fazem 325.000 prisioneiros de guerra, e capturam, ou destroem, 3.300 tanques. Em rápidas duas semanas, a liderança alemã já se vê bem próxima da vitória.

No dia 3 de julho, Stalin, que até então havia silenciado, conclama seus cidadãos através de um discurso pelo rádio, para "a grande guerra em defesa da Pátria". Em toda parte, seu povo deve se sublevar, inclusive atrás das linhas alemãs, em uma guerrilha, uma luta de partisans. Os alemães entendem a parte da mensagem dirigida a eles: os cidadãos soviéticos defenderão sua terra natal com todos os meios possíveis, nessas condições, os agressores não podem contar com o respeito aos direitos dos povos. Hitler não se importa: "A guerra de guerrilha", explica ele em uma reunião, "nos oferece a possibilidade de exterminar tudo o que se opuser a nós".
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 Revista GEO

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mitos do Velho Oeste americano - Os brutos também amam


Foi a arte - primeiro, a literatura e, depois, o cinema - que ajudou a criar o folclore sobre o "bandido romântico" que, nas ruas poeirentas dos vilarejos do Oeste, sem lei e ordem, duelava sozinho contra todos
 
 Rose Mercatelli




CENA 1
No saloon semideserto, mocinhas de vida duvidosa com caras de anjo e cachinhos, mortas de tédio, desfilam pelo recinto. Em uma mesa, um sujeito com barba por fazer e jeito de malfeitor desafia o recém-chegado, impecavelmente barbeado e vestido de preto, para um jogo de cartas. De repente, o forasteiro, furioso, chama seu opositor de covarde e desafia-o para um duelo ao perceber que o barbudo pega na manga uma carta escondida.

CENA 2
Na rua deserta, os dois homens se encaram a uma distância de 20 metros. Repentinamente, o trapaceiro leva sua mão ao coldre. Pena que não foi rápido o suficiente. Veloz como um raio, o forasteiro saca seu revólver e, com um só tiro, coloca uma bala na testa do adversário.

CENA 3
Cowboys desocupados, o barbeiro da cidade, o ajudante do xerife, o caixa do banco e todos que pararam de respirar por alguns segundos voltam às suas rotinas, enquanto o bom moço guarda o revólver e despede-se do malandro dizendo: "Esse foi sua última cartada." E entra pela porta de vaivém do saloon como se nada houvesse acontecido.

Cem anos de Hollywood nos fizeram acreditar que na rota rumo ao Oeste americano todo dia acontecia uma sequência de cenas como essas.

"Clint Eastwood e John Wayne transformavam seu Colt em uma metralhadora batendo rapidamente com a mão no cão do revólver. Esqueçam isso! As armas da época eram tão toscas que essa manobra seria impossível"

O PACATO VELHO OESTE
Os professores da Stanford University, EUA, Peter J. Hill e Terry L. Anderson, em seu controvertido livro The Not So Wild, Wild West: Property Rights on the Frontier (sem tradução em português), demonstraram que a vida por aquelas bandas foi pacata e tediosa, ao contrário do que nos mostrou o cinema.

De 1845 a 1860, cerca de 300 mil pessoas viajavam por terra em comboios de carroças para inúmeros lugares da costa Oeste. Só para Sierra Nevada, no Estado da Califórnia, em1845, com a descoberta do ouro, 200 mil americanos e estrangeiros se deslocaram para lá, atrás do sonho de enriquecer rapidamente.

"EU SOU A LEI E ISSO ACABA AQUI." (WYATT EARP)
Por outro lado, se levarmos em conta os antigos filmes de faroeste, o morticínio também deveria ter sido enorme, certo? Ledo engano, afirmam os pesquisadores Hill e Anderson, que estudaram a conquista do Oeste por 30 anos. Ao pesquisar documentos da época, eles descobriram que cinco foi o maior número de homicídios que qualquer cidade do Velho Oeste testemunhou em um ano durante o período de colonização. Em 1881, considerado o mais violento da história de Tombstone, Arizona, foram contabilizados apenas três assassinatos. Na verdade, a média de homicídios na maioria das cidades era de 1,5 homicídios ao ano. E nem todas as mortes eram ocasionadas por tiros. Ou seja, de acordo com Hill e Anderson, a violência do Velho Oeste não passou de um grande mito.

Roubos a bancos, então, eram raridades. Larry Schweikart, historiador da Universidade de Daytona, Ohio, e coautor do livro A Patriot's History of the United States, estima que, durante o período de colonização compreendido entre 1859 a 1900 houve menos do que uma dúzia de assaltos a bancos em todo o Oeste.
Pat Garrett


MIRA INCERTA
Lembram-se como Clint Eastwood e John Wayne transformavam seu Colt em uma metralhadora batendo rapidamente com a mão no cão do revólver? "Esqueçam isso!" - sugerem os historiadores. As armas da época eram tão toscas que essa manobra seria impossível. Segundo os experts, era muito pouco provável que qualquer um, por melhor atirador que fosse, acertasse o adversário no primeiro, no segundo ou mesmo no terceiro disparo.

Da mesma forma que a Trilha de Overland, rota alternativa entre Califórnia e Oregon, não era um lugar de conflitos, nem perseguições às diligências. Rancheiros e criadores de gado também não viviam às turras. Ao contrário! A Lei de Propriedade Rural, (em inglês, Homestead Act), criada pelo presidente Abraham Lincoln, no dia 20 de maio de 1862, para atrair imigrantes na ocupação do Oeste americano, condicionava a posse de uma propriedade a um limite de 160 hectares (aproximadamente 66 alqueires).

O tamanho das terras, relativamente pequeno para a criação, fez com que rancheiros de Estados como Dakota e Nebraska, levassem seu gado para pastarem em campos abertos e desapropriados. Como as viagens eram longas, passavam por terrenos acidentados e por condições meteorológicas extremas, os rancheiros cooperavam entre si, ajudando-se uns aos outros. Muito diferente da versão hollywoodiana sobre o conflito de terras.


Uma das cartas propondo rendição a Billy the kid: ele tinha que depor como testemunha de um recente assassinato em troca de perdão para seus próprios crimes

QUESTÃO DE MARKETING

Então, de onde surgiu a lenda sobre o selvagem e bravio Oeste americano? Segundo vários historiadores, o mito nasceu junto com Billy the Kid, o lendário fora da lei. Na verdade, o responsável pela criação da fábula foi o livro de Pat Garrett, que dedicou alguns anos de sua vida a caçar o baixinho dentuço e franzino que aterrorizou o Oeste.

Quem escreveu o livro de fato foi o jornalista Marshall Ashmun Upson, que na época era auxiliar do xerife. Pesquisadores afirmam que Garrett era analfabeto. Por isso empregou o jornalista como escrivão para cuidar dos registros da delegacia. Hábil contador de histórias desde a Guerra Civil Americana, Upson transformou o livro de Pat Garrett The Authentic Life of Billy the Kid em uma espécie de bíblia para quem quisesse entender como era a vida no Velho Oeste na época de sua conquista.

Entretanto, o marketing do valentão bom de tiro, de copo e de mulher não fazia bem apenas aos "fora da lei" - que viam nessas histórias uma maneira de serem temidos e respeitados, cidades como Deadwood, em Dakota do Sul, gostavam de exagerar sua natureza violenta e sem lei a fim de atrair colonizadores aventureiros. Até hoje, a cidade tem como uma de suas maiores fontes de renda os turistas que vêm à procura de aventura e emoções.

Ainda que a história contada pelos livros de capa amarela (relatos folhetinescos sobre a conquista do Oeste americano) e pelo cinema não seja totalmente verdadeira, sem dúvida, ela é muito mais eletrizante do que a realidade de um oeste ordeiro, como querem provar muitos dos novos historiadores americanos.

"PROCURA-SE VIVO OU MORTO"

De acordo com o livro de Pat Garrett, William H. Bonney nasceu em 23 de novembro de 1859 na cidade de Nova Iorque e perdeu o pai muito cedo. Com quatro anos, Billy começou sua peregrinação, juntamente com a mãe e o padrasto, por várias cidadezinhas rumo ao Oeste até chegar ao Novo México.
Cartaz oferecendo recompensa pela captura de Billy the Kid, "vivo ou morto". Era assinado pelo xerife Pat Garrett que o matou em 1881

Aos oito anos, praticou seu primeiro roubo ao furtar um pote de manteiga de um mercadinho. Aos 12, cometeu seu primeiro assassinato, em uma briga de saloon, ao matar com um canivete um vagabundo que, dias antes, teria insultado sua mãe em público. O fato de nunca mais tê-la visto depois desse dia foi determinante para o garoto começar sua carreira de bandido, conta a versão romântica de seu biógrafo.

Aos 14 anos, considerado baixo demais para o emprego de cauboi, virou especialista em roubo de cavalos. Em 1878, em uma disputa por posses de terras no condado de Lincoln, no Novo México, Billy se uniu a um bando de pistoleiros que espalhavam terror na região executando sumariamente todos os suspeitos de terem matado um rancheiro da família Tunstall, o patrão querido de todos eles, inclusive de Billy. O governo dos EUA, então, ofereceu 500 dólares para quem entregasse o bandido. Os cidadãos das cidades onde ele atuava triplicaram o prêmio.

Em 1878, entrou na vida do fora da lei o xerife Pat Garrett que, como aquele que se tornaria seu maior desafeto, era bom de tiro, gostava de beber, jogar e correr atrás das mexicanas. Por dever de ofício, durante um ano, dedicou-se a perseguir seu ex-amigo, até que, finalmente, o matou em uma emboscada em 13 de julho de 1881.

Um ano depois, Garret iniciaria, com o jornalista Marshall Ashmun Upson, seu livro The Authentic Life of Billy The Kid, que ajudou a imortalizar o bandido e o modo de vida "selvagem" do Velho Oeste americano.

"O tempo que levo para matar é menor do que você leva para beber um uísque", disse o valentão Joe Grant a Billy the Kid, sem imaginar que essa seria sua última frase em vida

JESSE JAMES
Em 1842, vinha ao mundo, em Kearney, no Missouri, Jesse Woodson James, filho de Robert S. James, agricultor, comerciante de cânhamo e pastor da Igreja Batista no Kentucky e próspero dono de seis escravos que o ajudavam na fazenda. Três anos depois de seu nascimento, Jesse perdeu seu pai e sua mãe se casou com Reuben Samuel, que foi morar na fazenda dos James. A vida seguia mansa até o início da Guerra Civil Americana (1861), a qual esfacelaria o Missouri e mudaria a vida de Jesse James.

Com 16 anos, seguindo seu irmão Frank depois de salvar a vida do padrasto que seria enforcado por uma milícia da União, o rapaz entrou para o bando de ex-guerrilheiros e começou a carreira de assaltante de bancos. Até então, Jesse não era famoso, mas virou notícia de jornal quando, em 1869, com Frank, assaltou o Savings Association, em Gallatin, Missouri, e matou um bancário. O roubo deu tanta notoriedade aos James como um dos mais famosos guerrilheiros fora da lei que o governador do Missouri, Thomas T. Crittenden, colocou uma recompensa pela captura dos irmãos que, junto com outros ex-confederados, formaram a Gangue dos James-Younger.

O bando roubou bancos de Iowa ao Texas, do Kansas até Virgínia Ocidental. Nos intervalos, assaltavam escritórios de diligências, feiras agrícolas e trens que dirigiam ao Estado de Iowa, roubando passageiros e, praticamente, tudo o que encontravam nos vagões de carga. A quadrilha continuou roubando e matando gente em quase todos os Estados do Sul até que, no fim de 1879, com a gangue praticamente esfacelada por prisões, mortes e desistências, os irmãos James resolveram voltar para o Missouri com seus homens de confiança: os irmãos 
Robert e Charley Ford.
Da esquerda para a direita, Billy the Kid, Doc Holliday, Jesse James e Charlie Bowdre. Acredita-se que a foto tenha sido feita no Novo México, em 1879


O que Jesse James não sabia é que Bob Ford havia secretamente negociado com Thomas Theodore Crittenden, o governador do Missouri, a quantia de 5 mil dólares por cada um dos irmãos. Em 3 de abril de 1882, Ford, ao pegar Jesse James desarmado enquanto fazia os preparativos para outro roubo e cuidava dos cavalos, matou o amigo com um tiro na cabeça.

BUTCH CASSIDY
Ao lado de Jesse James e Billy the Kid, Butch Cassidy brilhou como um verdadeiro mestre na arte de roubar bancos e trens. Nascido Robert Le Roy Parker, em 1866, em Beaver, Utah, Cassidy se transformou em um exímio pistoleiro e grande cavaleiro, inspirando-se no seu ídolo Mike Cassidy, esperto ladrão de gado com quem aprendeu todos os truques para fazer carreira no crime. No início, fez carreira solo, roubando bancos em Denver e Telluride.

Em 1894, foi preso, mas saiu da cadeia um ano e meio depois, quando se associou a cinco outros bandidos de primeira linha, entre eles Harry Longabaugh, mais conhecido como Sundance Kid. O bando causou muito pânico nos Estados de Wyoming, Nebraska, Nevada e Texas devastando bancos e trens. Foram eles os protagonistas do grande assalto ao First National Bank em Winnemucca (Nevada), em 1901, levando do cofre mais de 30 mil dólares.

Sundance Kid Jesse James, em 1864 Butch Cassidy

Logo em seguida, Cassidy e seu parceiro Sundance Kid, fugindo da polícia, vieram para a América do Sul, chegando a Buenos Aires, na Argentina, em 1901, em companhia da Etta Place, a namorada de Sundance. Depois de se instalarem no melhor hotel da cidade, abrir uma conta na filial do Banco de Londres com 12 mil dólares, fruto da partilha do roubo do First National Bank de Nevada, entre 1902 a 1906, resolveram viver como cavalheiros refinados que pareciam ser. Chegaram até a comprar uma fazenda na província de Chubut, na Patagônia. Mas quando o dinheiro acabou, voltaram a assaltar bancos, primeiro, na Argentina, depois, roubando comboios e minas na Bolívia, Peru e Chile.

A morte de Cassidy ainda gera conflitos entre historiadores. Na versão oficial, em 1908, ele e Sundance teriam sido perseguidos por soldados bolivianos e mortos a tiros de metralhadora. Em outra variante, em 3 de novembro de 1908, depois de roubarem 15 mil pesos bolivianos do transporte de pagamento de mineiros, esconderam-se em uma pensão, mas foram reconhecidos e denunciados a uma unidade do Exército. No dia 6, depois de uma troca de tiros que resultou em um soldado ferido e outro morto, ouviu-se um grito de dor. Minutos depois, um novo tiro silenciou o gemido.

Na manhã seguinte, os dois foram encontrados mortos. A interpretação do fato: Butch Cassidy teria dado o tiro de misericórdia no amigo ferido e depois se suicidado. A polícia boliviana enterrou os dois em um cemitério próximo ao local do incidente.

Por fim, caro leitor, imagine se você fosse um diretor ou roteirista de cinema. Seria mesmo capaz de resistir a uma história dessas?

*Título do filme de 1953, dirigido por George Stevens e estrelado por Alan Ladd no papel de Shane, pistoleiro errante que vem em defesa de uma pacata família, aterrorizada por um rico boiadeiro e seu atirador de aluguel (Jack Palance).
 
Saiba +
ALGUNS DOS MELHORES FILMES DE FAR WEST DE TODOS OS TEMPOS:
Matar ou Morrer(1952) - Gary Cooper
Rastros de Ódio (1956) - Gary Cooper
Onde Começa o Inferno (1959) - John Wayne e Dean Martin
O Homem que Matou o Facínora (1962) - John Wayne, James Stwart e Lee Marvin
Por um Punhado de Dólares (1964) - Clint Eastwood
Era uma Vez no Oeste (1968) - Charles Bronson e Jason Roberts
Butch Cassidy & Sundance Kid (1969) - Paul Newman e Robert Redford
Bravura Indômita (2010) - Jeff Bridges

FONTES
GARRET, Pat. Billy The Kid - A história de um bandido. L&PM Pocket.
HILL, Peter J.; ANDERSON, Terry L. The Not So Wild, Wild West: Property Rights on the Frontier. Stanford University Press, 2004.
Site: www.deadwood.com/splash.cfm
Revista Leituras da História

quarta-feira, 12 de março de 2014

Rússia 'nasceu' em Kiev, no século 9º


Lourival Sant’Anna / Enviado Especial / Kiev - O Estado de S.Paulo


A história e a geografia unem mais do que separam ucranianos e russos. O próprio nome "Rússia" teve origem no século 9.º na região de Kiev, quando um povo viking passou a ser chamado de "rus". Nessa época, a região era uma próspera rota do comércio do Báltico para Bizâncio. Lutas internas entre príncipes e etnias e mudanças nas rotas comerciais deslocaram o poder econômico e político para a região de Moscou.

A partir do século 14, parte do território hoje denominado Ucrânia esteve sob domínio da Lituânia e da Polônia. Os cossacos, identificados como os ucranianos originais, lutaram contra os invasores muçulmanos tártaros e os otomanos, que avançavam da Crimeia, ao sul. A Praça da Independência - e agora o movimento - é chamada pelos moradores de Kiev de "Maidan" ("praça", em turco) como reflexo dessa presença otomana.

No século 18, o lado oeste da Ucrânia caiu sob domínio do Império Austro-Húngaro e o leste, dos czaristas russos. Depois da 1.ª Guerra, o atual território ucraniano foi dividido entre Romênia, Checoslováquia, Polônia e União Soviética. Em 1939, ao ocupar a Polônia, os nazistas tomaram também a parte oeste da Ucrânia, que tinha uma das maiores populações judaicas da Europa.

Depois da Batalha de Stalingrado, em 1943, os soviéticos avançaram contra os nazistas e tomaram o oeste da Ucrânia. Terminada a 2.ª Guerra, o país se tornou uma república soviética, assumindo pela primeira vez o atual território, e ganhando o nome Ucrânia, que significa "à margem", numa referência a sua função geográfica de tampão entre a Rússia e a Europa Central. O país só se tornou independente com o fim da URSS, em 1991.
Jornal O Estado de S. Paulo

Formas de Voltar para Casa


Escritor chileno Alejandro Zambra lembra dos silêncios da ditadura
Autor de 'Bonsai' e 'A Vida Privada das Árvores' lança 'Formas de Voltar para Casa'

Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo

Uma ditadura não é formada apenas por mandantes intransigentes e revoltosos incansáveis – no meio do caminho, há sempre uma população silenciosa, que vive aquele período sem heroísmo, com medo ou indolência. É sobre essas pessoas que o escritor chileno Alejandro Zambra trata em Formas de Voltar para Casa, que a Cosac Naify lança .

Marcos de Paula/Estadão
O autor Alejandro Zambra

Fruto de anotações que o autor tomou durante quatro anos, a narrativa alinha momentos fictícios com reais ao mostrar um homem que relembra sua infância, passada durante a ditadura (1973-1990) de Augusto Pinochet, uma das mais sangrentas da América Latina, promovendo, segundo dados oficiais, 1.200 desaparecimentos, 3 mil execuções e inúmeros casos de tortura.

"Mais que narrar os feitos, interessava-me mostrar como convivemos com o passado, com a necessidade de entendê-lo, de mostrá-lo, de indagar quem somos", comenta Zambra, 38 anos, que conversou por e-mail com o Estado. "O narrador do livro tem muito de mim, mas me parece que o importante é que esse ‘eu’ é também, em certa medida e apesar de tudo, um nós. Creio que um problema dos chilenos da minha geração, nascidos em meados dos anos setenta, é esta hesitação entre o ‘eu’ e o ‘nós’."

Por que uniu real e ficção para transmitir sua mensagem?
Não acredito muito nessas categorias de ‘ficção’ e ‘não ficção’, pois todos os romances são autobiográficos, em certa medida. Gostaria de pensar que isso tem a ver com a poesia, que se relaciona de maneira muito mais problemática e evasiva com a ficção. Formas de Voltar para Casa não é mais autobiográfico do que Bonsai ou Vida Privada das Árvores, mas não aparenta sê-lo, talvez por ser meu primeiro romance escrito em primeira pessoa. Mais que narrar os feitos, interessava-me mostrar como convivemos com o passado, com a necessidade de entendê-lo, de mostrá-lo, de indagar quem somos. O narrador do livro tem muito de mim, mas me parece que o importante é que esse ‘eu’ é também, em certa medida e apesar de tudo, um ‘nós’. Creio que um problema dos chilenos da minha geração, nascidos em meados dos anos 70, é essa hesitação entre o ‘eu’ e o ‘nós’.

Por que a história é narrada a partir do olhar de um menino?
Creio que, em boa medida, esse romance nasceu do desejo de recordar melhor, com mais precisão, essa época quase sempre envolta em sombras, até no presente. Quando lembramos da infância como adultos, tendemos a idealizá-la ou ter dela a pior das imagens, pois é perturbador saber que estivemos ali sem ter consciência daquilo que estava ocorrendo. Mas alegar inocência é tão absurdo quanto se culpar retrospectivamente. Esse é um dos problemas centrais que quis abordar no romance – não para escrevê-lo, e sim por ser um dos problemas centrais da minha vida. E logo cheguei à ideia desse narrador, que não é um menino, e sim um adulto lembrando da infância, mas tentando recordar bem, evitando catalogar de antemão a experiência.

Você usou o romance para poder ir ao fundo de sua história pessoal, de sua relação com seus pais e sua infância?
Claro. Essa é uma maneira de encarar a obra. Quando crescemos, tornamo-nos outras pessoas e, em algum momento, perdemos totalmente o elo com a criança que fomos. Isso é natural, mas também artificial. Este romance é o livro de alguém que quer entender de onde vem, sem fechar o passado – ao contrário, abrindo-o, permitindo a circulação das histórias, por mais anódinas ou tristes que sejam. Meu interesse era falar sobre essa classe média ou média-baixa da qual venho, das pessoas que viveram aqueles anos sem heroísmo, com medo ou indolência, sem participar ativamente, silenciosos e/ou silenciados.

Pretendia escrever um romance no qual ninguém é inocente?
Sim. Sempre quis indagar como a história particular dialoga com a sociedade. Creio que nada é totalmente íntimo. Nada está à margem da história, que afeta e infecta nossas vidas permanentemente.

Qual é a importância dada à perspectiva do narrador? Há um elo entre perspectiva e verdade?
O romance foi escrito em primeira pessoa, mas creio que são dois narradores parecidos, mas não idênticos. Esse deslocamento da perspectiva me importa muito, sendo para mim o núcleo do romance. Não sei o que seria a verdade, a não ser por algo que buscamos e que nunca fixaremos definitivamente. Mas creio que a perspectiva permite um olhar mais pleno. Olhar e ver-se olhando.

Seus personagens lembram do passado de forma distinta. A tentativa de definir uma versão verdadeira do passado tem alguma possibilidade de sucesso?
Não acredito na possibilidade de se chegar a consensos, mas isso não importa; o importante é o diálogo, a busca. Não há versões finais nem verdadeiras, creio que o melhor seja tentar compreender a própria história e a das demais pessoas, e quem sabe destruir as pontes que parecem separá-las, distanciá-las. Distanciar o eu do nós. Creio que a literatura nunca simplifica os processos, mas revela sua complexidade, ou demonstra que as simplificações que os políticos buscam fazer são ilusórias e instrumentais. Tudo é sempre infinitamente mais complexo quando observamos mais de perto.

Os chilenos hoje precisam enfrentar o passado e reconhecer o papel que desempenharam?
Sim. Hoje e sempre. Uma sociedade é mais lúcida se está constantemente formulando seu presente, ou buscando compreender a relação entre passado e presente.

O narrador sente vergonha do fato de não ter perdido ninguém durante a ditadura?
Não, o que ele sente é que essas mortes, das vítimas da ditadura, não pertencem a ele, mas não lhe são alheias. Creio que o narrador sente a amargura de olhar para o passado. Uma sensação de duelo coletivo. A ditadura de Pinochet chegou ao fim muito depois do seu término oficial, pois, durante a década de 90, ele conservou um poder real: foi comandante-chefe das forças armadas e em seguida senador vitalício. A ditadura começou a terminar quando Pinochet foi detido em Londres e terminou definitivamente em 2006, com a morte dele. A sociedade chilena demorou muito para curar as feridas, ainda abertas. Ao lembrar da ditadura, o mais importante continua sendo recordar os mortos, lembrar que muitos parentes ainda não encontraram os restos de seus irmãos, seus pais, seus filhos. Mas aqueles que não sofreram de maneira direta, por sermos crianças e estarmos protegidos, participam agora do duelo coletivo. Formas de Voltar para Casa é um romance sobre a legitimidade da dor. Ninguém pode se colocar no lugar das vítimas, mas é necessário participar do duelo, a partir de um lugar diferente. E creio que a maneira de participar seja não negar a experiência que tivemos desse tempo, por mais anódina que seja, não calá-la, revivê-la, com precisão, com amor, com vontade, com as melhores palavras que encontremos.

FORMAS DE VOLTAR PARA CASA
Autor: Alejandro Zambra
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify (160 págs)
Jornal O Estado de S. Paulo

Dia da Mulher: conheça a 'mãe' do automóvel

Bertha Benz, esposa do fundador da Mercedes, foi a primeira testadora de carros da história

Diego Ortiz



Mercedes/Divulgação
Bertha Benz antes do casamento em 1872

Muitos machistas por aí dizem que carro e mulher não combinam, a não ser que seja no banco do carona. Mal sabem eles que o primeiro piloto de testes da história foi uma mulher e, ainda mais, que se não fosse por ela, a incrível Bertha Benz, o automóvel provavelmente demoraria muito a se popularizar.

Bertha Ringer (nome de solteira) nasceu em 1849 em Pforzheim, na Alemanha. Ela ficou noiva de Karl Benz em 1871 e usava o abundante dinheiro de sua família para investir na oficina de criação dele. Mesmo prontos para se casar, Bertha e Karl postergaram a data do enlace pois, pelas leis da época na Alemanha, uma mulher casada não podia administrar a herança da família ou ter um negócio próprio.



Após algumas invenções de Benz saírem do papel e começarem a engrenar na cidade de Mannheim, os dois se casaram em 20 de julho de 1872. Quatorze anos mais tarde, Benz montou, com a ajuda de Bertha, o primeiro Patent-Motorwagen, sua quinta maior invenção. As quatro primeiras foram Eugen, Richard, Clara e Thilde, os primeiros filhos do casal - Ellen nasceu em 1890.

Em 29 de janeiro daquele mesmo ano, Benz conseguiu a patente de número 37435 e se transformou no pai do modelo que passou a ser considerado o primeiro automóvel feito no mundo. Mesmo com a imensa importância histórica de hoje, o Patent-Motorwagen não se converteu em sucesso quando foi lançado, em 3 de julho de 1886. Faltava um algo a mais, que se materializou dois anos depois, pelas mãos e pés de Bertha.



No dia 5 de agosto de 1888, a esposa de Karl, juntamente com os filhos Richard e Eugen, de 14 e 15 anos, respectivamente, sai acelerando os 0,9 cv a 400 rpm do motor monocilíndrico de quatro tempos do Patent-Motorwagen 3 sem avisar o marido e as autoridades locais em uma intrépida aventura de 104 quilômetros na região de Baden, até a casa de sua mãe.

A ideia de Bertha era mostrar ao mundo a funcionalidade do automóvel. Mas não foi nada fácil. O combustível usado pelo motor era a ligroína, solvente derivado da benzina que Bertha comprou em farmácias, um tipo de loja que pouco comum na época. O tubo de combustível ficou entupido e teve de ser desobstruído com a ajuda de um grampo de cabelo. Já a liga de uma meia foi usada para isolar o curto circuito de um fio.



E a aventura teve mais peripécias. Na metade do caminho, já muito cansada, Bertha entrou para a história novamente ao criar o conceito da lona de freio, após ter um problema de desgaste no sistema de frenagem do carro.

Com base nos relatos da esposa após a volta da viagem de quatro dias, Benz fez melhorias no carro. E a história da aventura da primeira piloto de testes do mundo levou uma multidão à oficina de Karl, dando início a uma revolução que ficou conhecida como indústria automobilística.

Para aqueles que discordam do ditado que prega que "por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher", a história de Bertha Benz é a personificação disso. 
Jornal O Estado de S. Paulo

O desmanche de impérios


Ucrânia e Crimeia demonstram a tendência europeia à autodescolonização

TIMOTHY, GARTON ASH, ESPECIAL - O Estado de S.Paulo

Eis outra maneira de pensar o que está ocorrendo na Ucrânia: o último capítulo da autodescolonização da Europa. Após desmantelar o império soviético, no fim do curto século 20, os europeus recuaram para dar fim ao austro-húngaro e o otomano, incluindo Estados sucessores, como Iugoslávia e Checoslováquia. Agora, é o império russo pré-soviético que está sendo desafiado. Pensem no presidente da Rússia como o czar Vladimir, o Último.

O desmanche de impérios é confuso. Impérios não são feitos de blocos de Lego: desmonte-o e terá um bloco vermelho vivo aqui, um amarelo ali. O que decide qual grupo de pessoas em qual pedaço de terra se tornará um Estado? Os compartilhamentos culturais, linguísticos, étnicos e históricos têm seguramente um papel. Também têm os legados de acordos diplomáticos internacionais há muito esquecidos - e divisões territoriais internas de um império ou Estado sucessor multiétnico.

Vontade política local e liderança são cruciais. O mais importante talvez seja a sorte histórica, a fortuna que Maquiavel chama de "o árbitro de metade das coisas que fazemos". Foi esse tipo de mistura de história, vontade, habilidade e sorte que trouxe a Kosovo sua independência ainda não reconhecida universalmente.

Formei esse pensamento sobre o desmanche de velhos impérios há alguns anos quando visitei o desmantelamento do para-Estado da Transdniéstria, na margem oriental da Moldávia, perto da Ucrânia. Em sua estranha capital retrossoviética, Tiraspol, topei com uma grande estátua equestre de um herói czarista, o marechal de campo Alexander Suvorov. A estatua celebra a fundação, pelo militar, daquela cidade no fim do século 18.

Antes, em Uzhhorod, uma cidade sobre a fronteira ocidental da Ucrânia com a Eslováquia, eu havia tropeçado no autodenominado Governo Provisório do Rus Subcarpático - ou Rutênia. O primeiro-ministro era um professor de medicina que simpaticamente me recebeu num pequeno escritório no hospital local. O chanceler viera dirigindo um carro desde sua casa na Eslováquia. O ministro da Justiça fez o chá. Eu quase os persuadi a cantar seu hino nacional, que começa com "Russanos Subcarpáticos, despertai de seu sono profundo". Ridículo! - alguns poderiam dizer. Opereta!

Ocorre que a fortuna faz girar o caleidoscópio da história e, de repente, surge um país internacionalmente reconhecido chamado, por exemplo, Moldávia ou Montenegro. Seus filhos e filhas, sucumbindo ao poder normativo do fato e enganados pelos manuais de história nacionalista, crescem considerando sua condição de Estado como coisa líquida e certa.

Subversivamente, as fronteiras de velhos impérios, então, ressurgem nos mapas eleitorais das novas democracias, como se traçadas com tinta invisível. Os domínios dos impérios austro-húngaro e alemão, no século 19, brilham em laranja, os dos impérios russo e otomano, em azul. Na Ucrânia, na Romênia, na Polônia, partidos e cores variam, mas o fenômeno é o mesmo.

Os liberais gostam de articular princípios universais para a soberania e a autodeterminação de seres humanos. Eles se metem num atoleiro quando se trata de povos. Por que os kosovares têm o direito a autodeterminação, mas os curdos, não? Se Escócia, por que não Catalunha? Se Catalunha, por que não Padânia? Padânia é o nome proposto pela Liga Norte para uma Itália do norte independente.

Não há nenhuma necessidade histórica nesses resultados, e nenhuma justiça universal, mas duas coisas deveríamos aprender de uma experiência de mais de um século de autodescolonização da Europa.

Primeiramente, quando um povo tem um Estado, tende a não querer abrir mão dele. Não é por acaso que o número de países-membros da ONU continua aumentando e não diminuindo.

Esperando nos bastidores estão os integrantes da Organização das Nações e Povos Não Representados (UNPO, na sigla em inglês). Listados entre eles estão os crimeios tártaros.

Ainda mais crucial é a segunda lição. Violência gera violência. O uso da força sempre traz consequências inesperadas. O czar Vladimir pode abocanhar de volta o domínio da Crimeia, mas suas ações reforçarão a independência da Ucrânia. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É PROFESSOR DE ESTUDOS
EUROPEUS NA UNIVERSIDADE
DE OXFORD 
Jornal O Estado de S. Paulo

Ceará muito fora da lei

Banhos de sangue eram prática cotidiana na capitania, onde sobravam armas e faltavam cadeias e justiça

José Eudes Gomes


O desenho de Ferdinand Denis, do século XIX, mostra o transporte de algodão pelo sertão. Era preciso andar armado para proteger a mercadoria. (Fundação Biblioteca Nacional)
Os nomes dos lugares podem revelar muito sobre a sua história. No Ceará colonial, as marcas da violência estavam explícitas no nome de seus espaços geográficos: Batalha, Emboscada, Almas, Tocaia, Riacho da Cruz, Riacho do Sangue, Riacho dos Defuntos, Lagoa dos Órfãos.

No cotidiano das vilas e dos sertões da capitania, a violência era regra. Ameaças, tocaias, atentados, vinganças, roubos, estupros, agressões e assassinatos eram causados pelas mais diversas motivações: desavenças pessoais, rixas entre famílias, cobrança de dívidas, embriaguez, adultérios, defloramentos, discussões banais e até mesmo fofocas. Disputas por limites de terras e partilhas de heranças também estavam entre as principais causas de agressões e homicídios no Ceará. Envolvendo extensas redes de familiares e agregados, quase sempre os assassinatos e as vinganças não se encerravam em um ato – prolongavam-se por gerações.

Boa parte da população tinha o hábito de andar armada. Facas, punhais, espingardas, bacamartes e pistolas eram objetos utilizados cotidianamente pelos moradores da capitania, apesar das diversas leis decretadas pelo rei português proibindo o uso de armas brancas e de fogo na América portuguesa. Em 1760, o capitão-mor João Baltasar chegou a lamentar a publicação de tais leis proibitivas no Ceará, que teriam provocado “grande consternação” em “todo o povo desta capitania”. Quando o ouvidor Victorino Barbosa tentou aplicar a legislação, os vereadores da vila de Icó escreveram diretamente ao rei afirmando que o uso das armas era uma necessidade no Ceará, segundo eles, infestado por feras, assaltantes e matadores. Abismado com a vulgaridade do uso de armas na capitania, em 1782, o capitão-mor João de Montaury informava indignado que, por ser tão elevado o número de homens fora da lei ocupados em roubar e matar nos sertões de Crateús, nas suas igrejas já assistiam à missa “os homens com espingardas na mão, pistolas e bacamartes na cinta, e as mulheres com facas”.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Quem dança, o tédio espanta

Bailes da nobreza europeia animaram a vida social na capital do Império, dando início à cultura festiva do Rio de Janeiro

Maria Leonor Costa

Quando a corte portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 8 de março de 1808, houve nove dias de comemorações, com muita ovação, música e dança. Mas nada comparável aos anos de animados saraus e bailes que se seguiriam e transformariam os costumes e a vida social da cidade e do país.

O Rio de Janeiro era capital da colônia, mas não lembrava tal status, quer no aspecto arquitetônico e sanitário, quer no aspecto cultural. Enquanto escravos e classes mais baixas se divertiam nas ruas cantando e dançando, as famílias abonadas tinham praticamente como único divertimento a ida a igrejas e a festas religiosas.

A vida social da cidade e então colônia mudou completamente com a chegada da corte portuguesa. Acostumados à agenda mais intensa das cortes europeias, os novos habitantes demandavam outras formas de entretenimento, e não somente procissões, queima de fogos, cavalgadas e touradas.

Duas maneiras mais frequentes de entretenimento da nobreza e das classes abastadas na Europa eram os saraus e os bailes, e aqui não foi diferente. A elite local passou, então, a ter contato com as danças sociais europeias. Mas como estar preparado para não dar vexame no salão? Entra em cena Luís Lacombe, o primeiro professor oficial de danças sociais do Brasil.

Em Portugal, D. João mantinha uma orquestra permanente e uma companhia de balé como forma de entreter a família e a corte. Assim, em 1810, o príncipe regente ordenou a vinda de Pedro Colonna, maestro de dança responsável pelos espetáculos na Capela Real. Para ministrar aulas de música aos filhos e compor para a Capela Real, D. João também mandou vir o maestro Marcos Portugal, que passou a supervisionar e a dirigir os teatros públicos. Com ele veio Luís Lacombe, dançarino e coreógrafo, nomeado Compositor de Danças e Maestro de Danças da Casa Real, tendo sido ele o responsável pela primeira coreografia de balé de que se tem notícia no país, a que integrou a peça teatral de Marcos Portugal, L’oro non compra amore. Luís Lacombe chegou ao Rio em 11 de julho de 1811 e já em 13 de julho fez publicar na Gazeta do Rio de Janeiro o primeiro anúncio de ensino de danças a “qualquer pessoa civilizada da cidade”.

A demanda por aulas de dança aumentava à medida que a vida social ia se intensificando. A partir de 1815, como capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o Rio de Janeiro recebia cada vez mais novos habitantes: comerciantes estrangeiros que vinham aqui prosperar, diplomatas, artistas e famílias da aristocracia rural. Todos desejosos de morar próximo à corte e poder frequentar os eventos da nobreza. Logo Luís Lacombe precisou chamar os irmãos para auxiliá-lo. Entre eles, Lourenço Lacombe, que viria a ser o professor de dança de D. Pedro II.

Uma das danças mais executadas nos salões era o minueto. Originária de festejos populares, ela foi refinada até se tornar uma coreografia complexa, cheia de mesuras e passinhos miúdos (daí a origem do nome). Também apreciada por seu ritmo rápido e alegre, era a quadrilha francesa, executada, como o nome indica, por no mínimo quatro casais em movimentos coreografados sob o comando de um líder. Em comum, essas danças tinham a característica de manter os pares afastados, pois não era de bom-tom o cavalheiro tocar em dama que não fosse sua esposa ou filha.

A restrição à aproximação demasiada dos pares perdurou por algumas décadas no Brasil, apesar de a valsa já ter dominado os salões europeus. No início, essa dança, que permitia ao cavalheiro abraçar a dama e conduzi-la de forma independente pelo salão, era vista como indecente. O “gelo” começou a ser quebrado quando o austríaco Sigismund Neukomm incluiu uma composição de valsa na apresentação que organizou para a nobreza reunida no Congresso de Viena, em 1815. No ano seguinte, Neukomm veio ao Brasil em visita e foi convidado a ministrar aulas de música aos filhos de D. João VI. Para D. Pedro, ele deu aulas de harmonia e composição. O futuro imperador se tornou, assim, o primeiro compositor de valsas brasileiras.

A preponderância da valsa só foi sentida aqui na segunda metade do século XIX. Em 1841, no baile pela coroação de D. Pedro II, para cada três contradanças francesas, executou-se uma valsa. Já no último grande baile registrado no Paço, em agosto de 1852, a valsa firmava seu império: D. Pedro II rodopiou pelo salão com várias damas da corte. A essa altura, diversas danças animavam os bailes – “umas efêmeras, que não pegavam, por esquisitas, outras com fiéis adeptos que nunca as esqueciam – as contradanças, gavotas, lanceiros, a quadrilha diplomática, a schottish com seus requebros, a polca com seus pulinhos, o rill da Virgínia, a redowa, o galope, a mazurca...”, escreve Wanderley Pinho no livro Salões e Damas do Segundo Reinado,referindo-se aos bailes no Casino Fluminense. O Casino era a mais famosa sociedade dançante do Rio, tendo como um de seus patrocinadores o Conde D’Eu.

Entre a coroação de D. Pedro II e o início da Guerra do Paraguai, em 1864, o Rio viveu uma febre de reuniões, bailes, concertos e festas que iam até o raiar do dia. Segundo uma crônica de Francisco Otaviano, em 1853, havia no Rio 365 bailes por ano. Com a guerra, os bailes arrefeceram, para retornarem triunfantes após o fim dos confrontos, em 1870.

Nas noites de baile havia um cerimonial a ser respeitado. “Depois de aberto o baile pelas pessoas para isso convidadas, e se acabarem os minuetes, seguir-se-ão as contradanças, waltz, ril etc., pela ordem estabelecida pelos mestres-salas. Eles convidarão as senhoras para cada uma destas danças, dando-lhes os pares, que serão sempre diversos; qualquer senhora que estiver cansada, ou não quiser figurar na dança proposta, o poderá fazer livremente, sem que se tenha isto por falta de delicadeza. Não serão as danças de longa duração para se evitar a fadiga; e no fim delas não se darão pateadas nem outros aplausos do costume. Assim o pede o decoro da Assembleia e o respeito devido a SS AA RR [Suas Altezas Reais]”, ensinava o impresso “Etiqueta que se há de guardar”, da sociedade recreativa Assembleia Portuguesa.

Outros costumes não se impunham através de manuais, mas eram seguidos e passados adiante. Os pares não podiam se tocar, senão com luvas. Nos carnês de dança, as moças anotavam seus compromissos, solicitados por cavalheiros que obedeciam a um ritual de aproximação. E não era só devido ao calor que as damas portavam leques: através da riqueza de detalhes do objeto era possível distinguir a posição social e as posses de sua proprietária.

Os periódicos e as revistas matavam a curiosidade da plebe sobre os bailes, descrevendo detalhadamente músicas, danças, penteados, joias e vestes das damas. Alguns chegavam a publicar croquis. Em 10 de setembro de 1841, o Jornal do Commercio noticiava um baile na Assembleia Estrangeira, em comemoração à coroação do imperador. Descrevia a entrada do monarca, o cerimonial, as danças executadas pela orquestra dirigida por Milliet – mestre das quadrilhas francesas – e informava o número de convidados (mais de mil), o número de damas (350 senhoras), a hora em que D. Pedro e as irmãs se retiraram (meia-noite) e a hora em que o baile terminou (4 horas da manhã). Em 1876, Machado de Assis registrou em versos a polca, dando pistas sobre as razões do sucesso da dança: “É simples, quatro compassos / E muito saracoteio / cinturas presas nos braços / Gravatas cheirando o seio”.

No caminho aberto por Lacombe, inúmeros professores de dança aqui se estabeleceram e se encarregaram de difundir essa nova cultura fora dos salões aristocráticos. Ora dando aulas em casas e colégios, como anunciava o francês Philipe Caton no Jornal do Comércio, em 12 de abril de 1840, ora em exibições, como a do próprio casal Caton que, ao dançar a polca nos teatros, provocou uma corrida às aulas de dança para aprendê-la – a ponto de se batizar como “polka” a epidemia de dengue daquele ano.

A adaptação da polca, tocada ao piano, aos instrumentos dos músicos de choro (sopro e cordas), somada ao molejo de um povo com tendência aos volteios e requebros de corpo, fez surgir a primeira grande contribuição da cidade à música e à dança brasileiras: o maxixe, que se espalhou pelo país e fez grande sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Cafés, teatros de revistas, agremiações e cabarés floresciam com a demanda dos novos praticantes das danças sociais. Começava a se firmar a fama de boêmio do carioca.



Maria Leonor Costa é editora do jornal Falando de Dança e coautora da coletânea 200 anos de dança de salão no Brasil (AMAragão Edições, 2011).



Cai o regime, fica a dança

É sintomático que o período da nobreza no Brasil tenha se encerrado com um baile. O Baile da Ilha Fiscal, promovido pelo governo em homenagem aos oficiais do navio chileno Almirante Cochrane, jamais será superado em opulência. O dia 9 de novembro de 1889 teve clima de feriado, com a população se aglomerando no cais para observar os convidados a exibirem as últimas modas em penteados, toaletes e joias. Na ilha, D. Pedro II, adoentado, permaneceu apático, dançando apenas uma vez. Já a princesa Isabel e o Conde D’Eu aproveitaram bem as pistas de dança, animadas por orquestras que tocavam predominantemente valsas e polcas. O imperador se retirou à meia-noite, mas o baile continuou animado até o raiar do dia.

Os jornais esgotaram nos dias seguintes, descrevendo pormenores de decoração, cardápio, vestes, danças e gafes cometidas, mas também registrando protestos pelos gastos desmedidos, equivalentes a 10% do orçamento anual da província do Rio de Janeiro. Seis dias mais tarde era proclamada a República. Fim da era dos salões? Não! Tão logo a poeira assentou, os salões reabriram para receber os diplomatas que vinham apresentar credenciais ao novo establishment.

Saiba mais - Bibliografia
ABREU, Martha. O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
D'ORLEANS, François Ferdinand Philippe Louis Marie.Diário de um príncipe no Rio de Janeiro.Tradução de Maria Murray. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.
PARANHOS, Paulo. História do Rio de Janeiro (tempos cariocas). Teresópolis: Editora Zem, 2007.
PERNA Marco Antonio. Samba de Gafieira – a história da dança de salão brasileira.
Rio de Janeiro: Tratus Serviços Gráficos, 2005. Aquisição pelo site http://www.pluhma.com/loja/livros.danca.
Revista de História da Biblioteca Nacional