sábado, 18 de agosto de 2012

Por ortografias nunca dantes exploradas



Pesquisadora faz análise inédita de trechos
da Carta de Pero Vaz de Caminha

MARIA ALICE DA CRUZ
A pesquisadora Nazarete de Souza: estudo enriquecido com fatos históricos e breve biografia de Caminha
Datada deste porto seguro davosa jlha da vera cruz oje sesta feira primeiro de mayo de 1500... A escrita parece estranha numa primeira leitura da chamada Certidão de Nascimento do Brasil: a Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da armada de Pedro Álvares Cabral em sua viagem de descobrimento da Terra do Pau-Brasil. Natural a estranheza às palavras, pois as versões apresentadas em sala de aula geralmente são revisadas de acordo com as atuais normas gramaticais, coisa inimaginável quando a frota de Cabral aventurou-se em enfrentar o mar rumo à mata virgem habitada por seres pardos, nus, armados com setas, como descreve fielmente Caminha, nomeado escrivão da armada aos 50 anos de idade.

Se em termos lingüísticos a carta havia sido analisada em aspectos filológicos, semânticos e fonológicos, a pesquisadora Nazarete de Souza faz, ao lado de seu orientador, o professor Luiz Carlos Cagliari, um desafio inédito: “O estudo de alguns aspectos da ortografia da Carta de Pero Vaz de Caminha”. A dissertação de mestrado, realizada no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), foi iniciada na época da comemoração dos 500 anos do descobrimento. Definida pela pesquisadora como uma pequena contribuição para um projeto maior sobre a História da Língua Portuguesa, coordenado pelo professor Cagliari, a pesquisa apresenta uma análise importante para a construção da história da ortografia da língua portuguesa, jamais tratada em estudos da carta. Nazarete e Cagliari analisaram cuidadosa e minuciosamente todos os termos curiosos da carta, comparando-os à tradição ortográfica vigente. 
O texto descritivo de Caminha apresenta construções curiosas de palavras como jlha de Vera cruz, em vez de Ilha de Vera Cruz, a duplicação de consoantes, a separação de termos como tam bem, por tamto, bem como a união de vocábulos como queo, em vez de que o e ocapitam, em vez de o capitão. Se hoje revisores e editores podem discutir o uso de maiúsculas e minúsculas, graças à padronização de estilo e à normatização da gramática, Caminha não tinha a preocupação de iniciar parágrafo com letra maiúscula e tampouco de escrever a palavra toda na mesma linha. O que representaria ao revisor de hoje o trecho amcoragem limpa. aly Jouuemos todaaquela noute. a aaquinta feira pola manhã fezemos vella? 
A pesquisa demonstra que a certidão de nascimento do Brasil, dirigida a rei Manuel, relatando a primeira impressão sobre os indígenas habitantes da Ilha de Vera Cruz, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, definitivamente, Brasil tem muito mais a contar do que as impressões dos portugueses sobre aspectos etnográficos e geográficos. 
Algumas palavras da ortografia de Caminha são facilmente reconhecíveis, mas, na maioria das ocorrências, seria necessária uma preparação antes de tomar conhecimento do original. Redigido em linguagem acessível, o estudo feito por Nazarete pode ser usado como orientação a estudiosos e a estudantes a fim de facilitar o entendimento da Carta de Pero Vaz, afinal, é a primeira vez que um pesquisador se empenha em analisar a ortografia da carta. 
A escolha da carta como objeto de estudo da pesquisa, segundo Nazarete, “justifica-se pelo valor inegável que seu conteúdo tem para a história do Brasil, de Portugal e da América Latina”. A pesquisa é enriquecida com fatos históricos de Portugal de 1500 e uma breve biografia de Pero Vaz de Caminha, nomeado mestre da Balança da Moeda por d. João, quando este ainda era príncipe regente, em pleno campo de batalha. Segundo alguns estudiosos, além das habilidades de escrivão, a carta deixa transparecer o caráter e a dignidade de Caminha. Segundo dados da pesquisa, ele tinha prestígio como homem público. Sua importância social consta em documentos públicos oficiais da Câmara Municipal do Porto. Pesquisadores encontraram sua assinatura em vários documentos, principalmente em atas de sessões da Câmara. 
Durante muito tempo, Caminha foi considerado um escritor ingênuo e sem estilo por críticos do século 20. Atualmente, é visto como um escritor refinado, com domínio de estilo e preocupado com a simplicidade e a objetividade. O exemplo está em um trecho no qual ele apresenta suas impressões sobre a terra descoberta, aqual bem certo crea que por afremosentar nem afear, aja aquy de poer maís caaquilo que vez e me pareçeo. Traduzindo: a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Um dos poucos documentos que se salvaram da armada de Cabral, a Carta ficou inédita por três séculos na Torre do Tombo, em Lisboa, até ser descoberta pelo guarda-mor da torre, José de Seabra, em 1773. Hoje, faz parte do acervo da real Marinha do Rio de Janeiro. O padre Manuel Aires do Casal foi responsável por sua primeira publicação, em 1817. O estudioso Jaime Cortesão a considera uma obra literária do gênero “narrativas de viagem”.
O estilo caligráfico pertence à escrita dos cortesãos, tradicional do século 15, mas a carta tem características da escrita encadeada que viria a ser moda no século 16. O estilo encadeado é aquele em que se escreve sem levantar a pena, gerando palavras ajuntadas, segundo dados da pesquisa (veja reprodução nesta página).
Breve dicionário de Caminha
anoua – a nova
jsto – isto
omonte – o monte
himdo – indo
eos – e os
njnguem – ninguém
demarço – de março
poer – pôr
dagram – da grande
papagayo – papagaio
ahuuas – a umas
nauios – navios
ataa – até a
biij – VIII
asvy – as vi
xiiij – XIV
meteram-se – meteram-se
chuuaçeiros – chuvaceiros
ahuumas – a umas
trouueranlhes – trouxeram-lhes
amrique – Henrique
auamjelho - evangelho
fre/mossa – formosa
bertolomeu - Bartolomeu
loçaynha – louçainha
açerqua – acerca
apreposito – a propósito
comcrudiram – concluíram
detremjnado – determinado
Aleuantarãsse – levantaram-se
simgraduras – singraduras
andauã – andava
Bõõs – bons
Jnorançia – ignorância


Jornal UNICAMP

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