sábado, 18 de agosto de 2012

Debret







Um passar de olhos sobre as imagens reproduzidas nesta página é suficiente para remeter o leitor aos livros de história do Brasil. São litografias das aquarelas de Jean-Baptiste Debret. Tão difundidas para ilustrar e fundamentar trabalhos dos nossos historiadores, elas acabaram dissociadas dos textos produzidos pelo próprio artista para compor os três volumes de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicados em Paris entre 1834 e 1839. Fiel à sua formação de “pintor de história”, Debret manteve a prática da documentação, complementando as pinturas com textos informativos e interpretativos. Mas dele, que se definia como homem de “pena e pincel”, sobressaíram os pincéis.
“Enquanto a maioria dos viajantes estrangeiros se preocupava apenas em classificar os elementos da natureza e das personagens que compunham seus quadros, Debret tinha o propósito deliberado de criar uma história a partir da sistematização das informações. Em três volumes, ele organiza os trabalhos numa linha progressiva, dos índios até as instituições políticas e religiosas, contextualizando cada aquarela a seu período. Não existe outra obra deste porte aliando textos à força de 150 imagens”, afirma a historiadora Valéria Alves Esteves Lima. 
Formada pela UFRJ, Valéria já tinha o mestrado em história da arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, onde também defendeu sua tese de doutorado sob orientação do professor Robert Wayne Slenes. Inicialmente, ela pretendia dar continuidade à dissertação sobre a Academia Imperial de Belas-Artes, mas viu-se debruçada em Debret – um dos fundadores e professores da escola – e na documentação ilustrativa visando apresentar à Europa a imagem de um Brasil em regeneração com a chegada da Corte Portuguesa, e que inevitavelmente atingiria o nível de civilização dos países do velho continente. 
Debret foi discípulo do primo Jacques-Louis David, líder da escola neoclássica francesa. Acompanhou o primo durante a Revolução Francesa e na corte de Napoleão Bonaparte, como autor de obras celebrizando os feitos do imperador. Mais que o declínio do império napoleônico, o desconsolo com a morte do filho, em 1815, foi o que motivou sua vinda para o Brasil no ano seguinte, integrando uma missão francesa contratada para criar na colônia uma escola de artes plásticas que se transformaria na Academia Imperial. 
Debret desembarcou no Rio de Janeiro em 1816, justamente quando o Brasil era elevado à condição de Reino Unido. Aqui ficou por 16 anos, tempo que lhe rendeu grande conhecimento da realidade brasileira, ainda mais gozando de proximidade com o poder – emprestava sua arte à família real – e na capital que vivia um período de desenvolvimento econômico, urbano e cultural, com inauguração de bibliotecas, teatros e academias literárias e científicas. “Os trabalhos de Debret seriam um testemunho que se contrapõe à imagem de uma monarquia fugida da Europa, despreparada, decadente e caricata. Na visão dele, nem João VI e Pedro I, nem as capacidades do País mereciam desprezo”, afirma a historiadora. 
Para o pintor francês, a família real trouxe tradição e simbolizou o poder constituído, marcando o fim da administração colonial. A bagagem adquirida na corte francesa e nos estudos de história e filosofia permitia que compreendesse bem o momento político e deve ter influído na elaboração de sua obra. “Ele entende a elevação a Reino Unido como o início do processo de regeneração do país, que então pega o trem da civilização. É, então, que se sentem os efeitos da abertura dos portos e a retomada das relações de Portugal com as nações européias, o que promovera a entrada de mais estrangeiros no Brasil. Segundo Debret, esta presença européia era fundamental”, explica Valéria Lima.
Miscigenação – A pesquisadora atenta para as idéias iluministas de Debret, que via na educação e na miscigenação racial e cultural de índios e negros com os europeus, o meio de acesso dessas populações a níveis de civilização inatingíveis caso permanecessem em seu isolamento. Freqüentando o poder e sem perder o contato intenso e prolongado com os habitantes, o artista detinha visão privilegiada do regime, atestando as condições de diálogo para esta mistura racial. “A leitura que ele faz é curiosa, pois não vê nada de diminuidor na proposta. Simplesmente achava que a miscigenação já estava acontecendo, que era preciso reconhecê-la e ter consciência de que dela dependia, também, o progresso que se desejava para o país”, observa Valéria. 
Isto não significa que Debret enaltecesse ou colocasse as outras raças em pé de igualdade com os brancos. Sem contestar as teorias raciais da época, como as especulações sobre o tamanho do crânio, o pintor tinha o negro como indolente e mentalmente limitado, admirando apenas a sua força física. “Seu interesse na miscigenação estava na formação de um tipo biológico capaz de sobreviver ao clima considerad
o insuportável para o branco e que fosse intelectualmente capaz de acompanhar a civilização européia”, acrescenta. Em relação aos nativos, o artista organizou o material a partir dos indígenas mais “primitivos” até os civilizados, a fim de mostrar que se tratava de uma tendência natural. “Ele trata o primitivismo já como parte do passado, algo folclórico. Avalia como inevitável a associação dos índios com os brancos, esperando que os próprios índios civilizados resgatassem os mais avessos para a civilização”.

Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
A Devido ao hábito da observação, natural em um pintor de história, fui levado a extrair espontaneamente os traços característicos dos objetos que me rodeavam; desta forma, meus desenhos feitos no Brasil retratam especialmente as cenas nacionais ou familiares do povo entre o qual passei dezesseis anos. 
(Sobre sua filiação artística, vol. 1)

É no índio selvagem que encontramos o princípio e o germe de tudo aquilo que o espírito humano concebeu como idéias filosóficas, elevadas, admiráveis e mesmo bizarras, aplicadas por ele unicamente através do instinto e da inspiração. 
(Sobre os indígenas, vol. 1)

Minha intenção foi compor uma verdadeira obra histórica brasileira, na qual se desenvolva, progressivamente, uma civilização que já honra seu povo, dotado naturalmente das mais preciosas qualidades, para merecer um paralelo vantajoso com as nações mais destacadas do antigo continente. 
(Sobre a proposta de fazer uma obra histórica, vol.1)

Porém, por um singular contraste, foi a mão de um rei de Portugal que desperta o brasileiro depois de três séculos de apatia quando, fugitivo da Europa, ele vem estabelecer seu trono na sombra destas agradáveis palmeiras, para logo abandonar, é verdade, esta obra de regeneração inspirada pela necessidade. No entanto, a civilização havia germinado e o Brasil, consciente de seu futuro, conserva o primogênito deste inconstante protetor, e faz dele um imperador independente cujo poder soberano anula definitivamente as pretensões do poder português sobre suas antigas possessões na América. Assim emancipada, a terra de Alvarez Cabral governa a si mesma e deve às suas próprias luzes sua prosperidade sempre crescente. 
(Sobre o papel da monarquia portuguesa, vol. 3).
Jornal Unicamp

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