quinta-feira, 12 de abril de 2012

O Universo em um botão de tulipa: como o mercado de flores do século 17 explica todas as crises da Terra

Alexandre Versignassi
Esse mercado só se sustentaria se os preços continuassem subindo para sempre. Mas os valores ali já não tinham mais nada a ver com a demanda pelas flores como artigos de luxo. Não havia tantos nobres dispostos a gastar o preço de uma mansão numa florzinha para mostrar aos amigos. A quantidade de gente assim é um recurso finito. Àquela altura, não havia mais um consumidor final para valer. As pessoas só compravam os títulos por valores extorsivos na esperança de que surgisse alguém “mais otário” lá na frente disposto a pagar mais ainda por eles. Mas otários também são um recurso finito. Uma hora começou a faltar compradores.

Para piorar, descobriram um monte de fraudes: floristas estavam vendendo mais contratos do que a quantidade de bulbos que tinham em estoque. Era como imprimir dinheiro falso. Outra: ninguém sabia que o responsável pela existência da Semper Augustus era um vírus (nem fazia ideia do que era um vírus, já que a vida microscópica era desconhecida na época).

Se o vírus não infectasse o bulbo, nascia uma tulipa normal. E o investidor via que tinha comprado gato por lebre. Quando tudo isso veio à tona, a desconfiança reinou. E o mercado minguou. De vez.

Quem tinha vendido casa e carruagem para investir no dinheiro fácil das tulipas se viu com as calças na mão de uma hora para a outra. Os contratos tinham virado “títulos podres”, como dizem os economistas. Não valiam mais nada. O governo precisou intervir, perdoando dívidas de pessoas falidas. E a economia demoraria anos para voltar ao normal.

Para qualquer um que acompanhou o que aconteceu com a economia antes, durante e depois da crise de 2008, tudo isso é familiar. No mundo dos investimentos, os primeiros anos do século 21 foram tão eufóricos como a época da mania das tulipas. Inclusive boa parte das ações subiu tanto quanto as flores de 300 anos atrás. Sem exagero, nos três anos anteriores à crise, as da Vale aumentaram tanto quanto a Semper Augustus nos três anos de pico da bolha holandesa: 200%. As da Gerdau foram no mesmo pique das tulipas Gouda: 1.000%.

E a onda não afetou só quem opera diretamente na bolsa. As 312 mil pessoas que optaram por deixar uma parte de seus fundos de garantia em ações da Petrobras quando o governo criou esse programa, em 2000, viram seu dinheiro dar cria. Quem separou R$ 50 mil do FGTS para investir nisso, por exemplo, chegou a ter mais de R$ 500 mil na conta em 2008 – e fazendo menos esforço do que se tivesse ganhado esse dinheiro no Big Brother; ou na Holanda do século 17.

A diferença é que esse não foi um jogo entre malandros e otários. Os lucros dessas empresas estavam subindo no mesmo ritmo que o preço das ações – às vezes até mais rápido. Isso deixa tudo mais concreto (veja o boxe da página 16).

Se você tem uma ação da Vale, por exemplo, significa que é dono de 0,2 bilionésimo da empresa. Como proprietário de uma parte da mineradora, você tem direito a um pedaço dos lucros dela, os “dividendos”, no jargão. E esse dinheiro pinga na sua conta de tempos em tempos. É para isso que serve uma ação: pagar dividendos.

Se os lucros estão altos, o dinheiro que entra para você também é alto. Ter esses papéis nas mãos é um bom negócio quando a empresa é lucrativa. Tão bom que outras pessoas vão querer comprá-los de você para ficar com o direito de receber um naco dos lucros da companhia. Aí é a lei da oferta e da procura: se muita gente está interessada nelas, o preço sobe. E você pode vender na bolsa por mais do que pagou. Básico.

É para isso também que serve uma ação – lucrar sobre as expectativas dos outros. Quem compra, em tese, é um sujeito interessado em ficar com o papel para que a grana dos dividendos caia na conta dele. Mas, como tem muita gente nesse mercado, na prática o comprador típico é alguém que só espera vender a ação por um preço maior no futuro, igual ao mercado de tulipas.

Os ganhos podem ser tão grandes entre a compra e a venda de uma ação que, na prática, a bolsa gira em torno disso. Quase todo o mundo que compra papéis o faz na esperança de vendê-los por mais dinheiro um dia. E os dividendos acabam vistos como meros adicionais, só um dinheirinho que chega de vez em quando. O que vale mesmo é a expectativa de vender os papéis por um valor duas, três, dez vezes maior. Mas isso é uma inversão de valores que só atrapalha na hora de entender a lógica do mercado acionário.
Para começar, o que faz o preço de uma ação subir? O óbvio: quanto mais pessoas estiverem interessadas no papel, mais caro ele vai ficar no mercado. Normal. Mas o que faz com que muita gente decida comprar ações de alguma empresa em especial, levando o preço dos papéis lá para cima? O potencial de lucros dessa empresa. Quanto mais a companhia faturar, maior será a capacidade de ela pagar dividendos polpudos. Ou seja, os dividendos não são meros extras. Eles formam a essência do mercado financeiro. Se existe a expectativa de que uma empresa vai dar mais lucros, de que ela vai pagar dividendos melhores lá na frente, mais investidores correrão para as ações dela.

E o preço vai subir.

Mas tem um problema aí: expectativa é só expectativa. Ninguém tem como dizer se uma empresa vai dar mais ou menos lucro no futuro. E, se ela começar a viver no prejuízo e acabar falindo, o destino das ações será o mesmo dos títulos de tulipas: não valer mais nada. É por causa dessa incerteza que o mercado financeiro está cheio de analistas pagos para estudar a saúde financeira das empresas. Eles fuçam os balanços e escarafuncham o mercado em busca de quaisquer indícios sobre a capacidade de uma companhia continuar dando lucro.

Mas não é o suficiente. Por exemplo, você compraria ações de uma empresa que aumentou seu faturamento de US$ 13 bilhões para US$ 100 bilhões em cinco anos? Para completar, imagine que essa mesma companhia ainda afirmasse por A mais B que iria dobrar esses US$ 100 bilhões logo ali, no ano seguinte.

Adicione o fato de que ela já era tão grande e aparentemente segura como uma Vale da vida. Não comprar ações de uma empresa dessas seria como rasgar dinheiro. E essa companhia existiu: era a Enron, a maior companhia de energia elétrica dos EUA no fim do século 20.

Depois de quase multiplicar seu faturamento por dez, ela foi para a confortável posição de segunda companhia que mais faturava no mundo, atrás apenas da Exxon Mobil, a maior petroleira da Terra. Não podia haver investimento mais seguro. Era a empresa responsável por iluminar boa parte do território da maior economia do mundo. Para ela deixar de ganhar, só se os americanos abdicassem da eletricidade para viver sob luz de velas.

Por isso mesmo, as companhias de energia elétrica geralmente são garantia de um fluxo constante de dividendos. Um negócio quase sem risco. Tanto que, em épocas de vacas magras muita gente corre para as ações delas – enquanto a Bovespa derretia na crise de 2008, por exemplo, os papéis de várias empresas dessa área ficaram imunes. Mas claro: se fosse só por isso, todo o mundo compraria apenas ações da companhia de energia elétrica. Mas tem outro ponto. Se, por um lado, essas ações garantem dividendos faça chuva ou faça sol na economia, por outro, elas dificilmente sobem grande coisa. O potencial de lucro dessas empresas está restrito ao consumo de energia das pessoas. E isso nunca dá grandes saltos de uma hora para a outra. Então, as expectativas de lucro nunca batem no teto. Ficam sempre ali, numa zona morna. E o preço das ações delas nunca sobe um absurdo do dia para a noite. Se você tem papéis da Petrobras, por exemplo, e ela anuncia que o pré-sal tem o dobro do petróleo que estava previsto, o potencial de lucro dela vai para a estratosfera, e o preço das ações sobe junto. Com uma empresa de energia elétrica é virtualmente impossível acontecer algo assim.

E é isso o que torna o caso da Enron especial. Se uma elétrica das grandes como ela começa a apresentar lucros absurdos, é o mundo perfeito: uma ação com um potencial enorme de subir e que não tem como descer. Era bom demais para ser verdade. Mas era verdade. Aí não deu outra: as ações dispararam. Para variar, exatamente naquele ritmo da Semper Augustus, a rainha das tulipas: 200% em três anos – entre 1999 e 2001, a ação da Enron foi de US$ 30,00 para US$ 90,00. Bom para os investidores que compraram essas ações na bolsa; melhor ainda para os executivos da Enron. Eles ganhavam toneladas desses papéis de graça, como parte de seus bônus anuais. Um prêmio merecido, diga-se, se você levar em conta que a Enron recebeu o Prêmio de Empresa mais Inovadora da América, da revista Fortune, por seis anos consecutivos.

Depois que o preço dos papéis triplicou, alguns executivos fizeram o que qualquer um faria: venderam as centenas de milhares de ações que tinham ganho de bônus, embolsaram o lucro todo e saíram para curtir a vida. Um deles foi Lou Pai, um americano de origem chinesa. Aos 52 anos, ele controlava uma das divisões da Enron e resolveu se aposentar. Lou conseguiu US$ 268 milhões numa tacada só e foi viver tranqüilo numa fazenda de 310 km2 no Colorado – a segunda maior propriedade daquele estado. Também tinha uma menorzinha, no Texas, para abrigar seu haras.

Um fim de carreira mais do que feliz. Só que a história estava longe de acabar. Para quem tinha comprado ações da Enron, ela estava apenas começando. Pouco mais de um ano depois de o valor de cada ação ter chegado a US$ 90,00, a Enron estava falida. E quem tinha apostado suas economias nela também. Perda total. Um investimento que deveria ser à prova de risco − e que já tinha enriquecido muita gente − se mostrava furado.

O que aconteceu?

Um crime. Os executivos da empresa estavam mentindo sobre os lucros. Eles colocavam valores falsos nos balanços para garantir seus próprios lucros, na forma de bônus pelo bom desempenho da companhia. Uma hora, porém, as autoridades que fiscalizam empresas com ações na bolsa acabaram descobrindo as fraudes. Refizeram, então, os balanços e constataram que a Enron estava dando prejuízo. A notícia se espalhou e as ações despencaram para perto de zero. E em questão de meses foram a zero mesmo: a Enron entrou com um pedido de falência. A tulipa estava morta.

Esse foi um caso extremo, em que uma mentira estava por trás da escalada nos preços das ações. E que terminou com a empresa fechando as portas. Mas o mercado vive situações parecidas o tempo todo. Não precisa haver uma fraude para que uma ação suba a um valor muito maior do que deveria. Basta que as expectativas sobre os lucros que ela possa dar no futuro sejam exageradas.

Na maioria das vezes, inclusive, a irracionalidade reina não só em relação a uma única empresa, mas no mercado inteiro. Centenas de companhias diferentes podem ver o preço de suas ações subir ao mesmo tempo por conta de expectativas fora da realidade. Se houver uma esperança muito grande de que a economia vá crescer, por exemplo, isso vai se refletir no mercado acionário. Claro: uma boa economia oferece mais empregos. Mais empregos = mais consumidores. Mais consumidores, mais possibilidades de lucro para as empresas. Aí as ações sobem e...

Opa! Espera um pouco. Primeiro, o que significa exatamente uma “boa economia”? Segundo: um mundo com muito emprego, muito consumo e muito lucro para muita gente é causa ou consequência de “uma boa economia”? A resposta é uma só: “Sim”. Um mundo ok é causa e consequência de uma economia nos trinques. Mas para entender exatamente o que essa resposta quer dizer, você precisa compreender outra coisa: o que é o dinheiro.

Dinheiro, a princípio, é um mecanismo engenhoso: permite que uma manicure compre seis pãezinhos sem ter de fazer as unhas do padeiro. Mas os chimpanzés talvez tenham uma resposta melhor. Vamos ver o que eles têm a dizer.

(Trecho do livro Crash – Uma breve história da economia – da Grécia Antiga ao século XXI, do editor da SUPER Alexandre Versignassi. Leia o início do capítulo em http://migre.me/5xZOt . Compre o livro aqui: http://abr.io/1Kqy.)
Revista Superinteressante

E se...Che tivesse criado a América Latina comunista?

Otávio Cohen
Em outubro de 1967, Che foi executado na Bolívia por militares locais que queriam barrar sua guerrilha. Com ele, morria seu plano de unificar a América Latina em uma nação comunista. Se Che tivesse escapado dessa, teria uma vida dura pela frente. Como seu grupo se escondia e mantinha distância das cidades, faltava adesão das massas à causa. Che precisaria conquistar esse apoio popular gradualmente para construir sua nação.

Países como Brasil, Peru e Paraguai estavam sob regime militar. Não seria inteligente enfrentá-los de cara. Che precisaria conquistar primeiro a Bolívia, contando com o apoio que ganharia por escapar vivo do atentado. A partir daí, o lógico seria investir na conquista de países como o Chile, onde a esquerda ganhava força sob o comando de Salvador Allende. Só assim, aumentando a adesão à causa, ele conseguiria enfrentar os governos mais resistentes. Mas levaria tempo - talvez só lá pelos anos 80 ele formaria, enfim, sua imensa república.

Che seria o governante central, mas passaria a administração regional para companheiros de guerrilha. "Cada país tinha suas particularidades. Até que a América Latina passasse pela revolução, cada território teria seus líderes", diz o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor de dois livros sobre Che. Junto com seus representantes, Che decretaria a coletivização do trabalho e colocaria a economia desse enorme bloco nos moldes comunistas. "O Brasil e toda a nação latino-americana teriam indústrias estatais e campos de produção agrícola. Nos centros urbanos haveria espaço para a iniciativa privada, mas para pequenos comerciantes", afirma Amir Assad, economista da UFMG.
O sonho duraria pouco. Com o fim da União Soviética em 1991, a utopia comunista estaria morta. E a república de Che possivelmente se fragmentaria, como aconteceu com as repúblicas soviéticas. Alguns países resgatariam a autonomia. Pero sin perder la ternura - e algumas cositas compartilhadas com os hermanos.


O Brasil pós-Guevara

Um turista que passasse por aqui encontraria muita salsa no pé e uma língua bem engraçada


Ginga latina

Nem só de samba viveria o Carnaval. Os anos 80 seriam de valorização das culturas de massa na república de Che, de acordo com a cartilha comunista. O intercâmbio de programas de TV, cantores e bandas faria os brasileiros bailarem ao som de danças como mambo, salsa e zouk, expressões artísticas bem populares.

Che de Adidas

Che já teria deixado a América Latina há tempos. Depois de concluir a revolução por aqui, tentaria derrubar outras ditaduras na África e lutaria até pendurar a boina. "Ficar no poder por muito tempo não combinava com ele", conta o cientista político Kleber Chagas. A imagem que teríamos de Che Guevara não seria a do rosto do jovem guerrilheiro, e sim a de um Che envelhecido. Talvez usando Adidas, como Fidel Castro.

O coletivo nos coletivos

A economia da república desaceleraria por causa da coletivização. A população entraria nas décadas seguintes empobrecida. Os brasileiros não teriam vivido a ascensão das classes mais pobres dos anos 90. E até hoje estariam longe de conseguir comprar carro - todo mundo dependeria de ônibus.

Beijo, me liga. No fixo

Che defenderia que as empresas permanecessem sob controle estatal. A falta de concorrência atrasaria a inovação e o desenvolvimento em serviços básicos, como telefonia. Com uma operadora só de celular, fazer uma ligação da rua seria dureza.

Portuñol, língua oficial

No Brasil, Che encontraria 90 milhões de pessoas falando português. O idioma não morreria, mas incorporaríamos gírias e expressões em espanhol, falado por mais de 190 milhões na América. E poderíamos ter assistido a programas como Chaves na língua original.

Fontes Kleber Chagas Cerqueira, historiador e doutor em ciências políticas pela UnB; Luiz Bernardo Pericás, historiador e autor dos livros Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia e Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba; Vitor Izecksohn, professor de história da UFRJ; Osvaldo Coggiola, professor de história da USP; Amir Assad, economista da UFMG; Che Guevara - Uma Biografia; Che Guevara: A vida em Vermelho.
Revista Superinteressante

A propriedade na Cidade Antiga


A propriedade na Cidade Antiga.
Anotações sobre Fustel de Coulanges


I - O AUTOR E A OBRA

Numa-Denis Fustel de Coulanges nasceu em Paris, em 1830, e desde cedo se interessou pelos estudos históricos. Na condição de professor da Universidade de Estrasburgo, em 1862, Fustel ministrava aulas de História e deu início à redação de "La Cité Antigue [01]." A primeira edição foi de apenas 650 cópias, mas poucos anos depois teve várias edições até se tornar um clássico.
O Livro Segundo trata sobre a Família e, estranhamente, o Capítulo VI deste livro é dedicado ao Direito de Propriedade. A propriedade na família? Sim, para Fustel, a história da propriedade faz parte da organização da família e da religião doméstica, conforme veremos.

II - O DIREITO DE PROPRIEDADE
Inicialmente, Fustel no s adverte que sua abordagem não pode ser baseada no Direito de Propriedade de nossos dias, ou seja, da época que a obra foi escrita: 1862/1863. [02]
A pesquisa de Fustel indica que alguns povos antigos jamais estabeleceram a propriedade em suas relações e outras adotaram a propriedade, superando um problema crucial de então: como afirmar "esta terra é minha!"
Segundo Fustel, os Tártaros [03] concebiam o direito de propriedade somente em relação aos seus rebanhos, mas não em relação ao solo. De outro lado, em relação aos germanos [04], a terra não pertencia a ninguém e a cada ano a própria tribo distribuía um lote aos seus membros para o plantio, cuja colheita pertencia ao que laborava a terra, o mesmo acontecendo em relação a uma parte dos povos de raça semítica [05] e alguns povos eslavos [06].
Com relação aos povos da antiga Grécia e Itália, no entanto, "desde a mais remota antiguidade," sempre se conheceu e praticou a propriedade privada e não existem registros históricos de que tivessem utilizado a terra de forma comum ou mesmo em relação à partilha do cultivo. Com os povos gregos, ao contrário, em algumas cidades os lavradores de então eram obrigados a disponibilizar parte de sua colheita à comunidade. Assim, contraditoriamente, tinha a propriedade do solo, mas não podia dispor livremente de seus frutos!

III - RELIGIÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE
Segundo Fustel, este tripé – religião, família e propriedade – teve relação inseparável e fundamentava o Direito de Propriedade entre os povos antigos que estabeleceram de imediato a propriedade privada.
Fala-se aqui, evidentemente, da religião doméstica.
Necessariamente, devemos voltar ao Livro Primeiro, Capítulo III, em busca do entendimento do conceito de "fogo sagrado."
Segundo Fustel, o fogo tinha sentido divino e cada casa, seja de grego ou romano, deveria conter um altar com cinzas e carvões acessos, eternamente, como obrigação sagrada.
"Desventurada a casa onde este fogo apagasse."
Era obrigação do chefe da casa cobrir os carvões de cinza para que não se consumissem totalmente durante a noite e, na manhã seguinte, reavivar os carvões e alimentar o fogo com ramos secos, ou seja, rendia-se verdadeiro culto ao "fogo sagrado" e era este fogo quem mantinha a unidade e perpetuidade do grupo familiar através dessa "religião doméstica."
Assim, juntamente com o culto aos antepassados (cada família possuía seu túmulo), o fogo sagrado era a base da religião doméstica dos antepassados e, como veremos, terá grande influência na definição da propriedade.
Ora, sendo cada fogo exclusivo de cada família, ele se constituía, por assim dizer, na propriedade daquela família e, como deveria ser posto em um altar sobre o solo, terminou por transformar cada "lugar" do solo em sua propriedade e da família que lhe cultuava.
A família, portanto, devendo continuar unida em torno de suas tradições, erguia sua casa, seu altar e ali cultuava seu "fogo sagrado," eternamente. A família está ligada ao fogo e este, de sua vez, ligado ao solo, irremediavelmente.
Sendo tão essencial e sagrado, o fogo necessitava também de um espaço protegido: primeiro apenas um marco, depois um muro de pedra; depois uma cabana, depois uma casa de pedra, etc. Ao seu redor, as gerações se sucediam e agora já existem um grande pátio e altas construções para proteger o fogo sagrado.

IV - O CULTO AOS MORTOS
O culto aos ancestrais também apresentava forte tradição entre os povos antigos. Segundo Fustel, cada família tinha seu próprio túmulo e, da mesma forma que os fogos domésticos não se misturavam, também os túmulos eram exclusivos de cada família. Da mesma forma que não se permita enterrar um morto fora do túmulo da família, também não se permitia enterrar um estanho no mesmo local.
Assim como os muros passaram a proteger as casas que protegiam o fogo sagrado das famílias, também as cercas e os muros passaram a proteger o campo que servia de túmulo para determinada família. O local era inviolável, imprescritível e jamais poderia ser destruído ou transferido.
Seguindo a mesma lógica, o solo passou a pertencer aos mortos, cujas famílias lhes cultuavam e se obrigavam a proteger. Por conseqüência, também aquela terra passou a ser considerada propriedade sagrada da família. Mais tarde, os campos foram delimitados com troncos e pedras e se chamavam "termos." O termo era sagrado e o vizinho não ousava, sequer, aproximar-se demasiadamente dele, sob pena de castigos severos. Diz Fustel, citando Ovídio, que o deus familiar que se sentia ferido pelo arado do vizinho, clamava: "detém-te, este é o meu campo, lá está o teu."
Não como negar, portanto, a importância fundamental da família e da religião doméstica na delimitação da propriedade entre os povos antigas da região da Grécia e Itália. Assim, não foi, conseqüentemente, uma lei que estabeleceu a propriedade e seus limites para aqueles povos, mas os preceitos da religião.
Depois dessa fase, virá a formação das cidades, a fundação de Roma e suas leis. Mas esta é outra história.

Notas
01 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. 2ª ed. São Paulo: Edipro, 1999. 334 p.
02 O Code Civil des Français tinha entrado em vigor em 21 de março de 1804 e, como sabemos, protegia fortemente a propriedade. Tinha a seguinte estrutura original:
Título Preliminar: Da publicação, dos efeitos e da aplicação das leis em geral (artigos 1 a 6);
Livro Primeiro: Das pessoas (artigos 7 a 515);
Livro Segundo: Dos bens e das diferentes modificações da propriedade (artigos 516 a 710) e
Livro Terceiro: Dos diferentes modos de adquirir a propriedade (artigo 711 a 2302).
03 Tártaros: A Tartária é uma região de fronteiras indefinidas na Ásia Central, considerada como o território de origem dos tártaros, um grupo étnico relacionado aos turcos e aos mongóis. Alguns historiadores crêem que a Tartária já constituiu sua própria monarquia, do século XIII ao XVI, embora muitos ainda digam que os tártaros constituíram apenas tribos, que ocupavam o sudeste da atual Rússia. Se existiu mesmo um império tártaro, ele se estendia sobre toda a Rússia central, oriental, partes do Alasca e norte do Japão. (http://pt.wikipedia.org).
04 Germanos: são um grupo histórico de povos falantes de línguas indo-européias, originários da Europa Setentrional e identificados pelo uso comum das línguas germânicas, que se diversificaram a partir do proto-germânico ou germânico comum durante a Idade do Ferro pré-romana. Os povos falantes de línguas germânicas da Idade do ferro romana e do período de migrações dos povos bárbaros revelam uma cultura material uniforme e crenças religiosas comuns, embora pesquisas recentes contestem a existência de um grupo étnico germânico distinto. (http://pt.wikipedia.org).
05 Semíticos: é um adjetivo que se refere aos povos que tradicionalmente falavam línguas semíticas ou a coisas que lhes pertencem. A análise genética sugere que os povos semíticos partilham uma significativa ancestralidade comum, apesar de diferenças importantes e de contribuições de outros grupos. Existe muito debate acerca do âmbito do uso "racial" da palavra no contexto da genética de populações e da história, mas como termo lingüístico está bem definida, referindo-se a uma família de línguas — quer antigas, quer modernas —, originárias na sua maioria do Médio Oriente, que inclui o acádio, o amárico, o árabe, o aramaico, o assírio, o hebraico, o maltês e o tigrigna. (http://pt.wikipedia.org).
06 Eslavos: são um povo indo-europeu que habita a região da Europa central e oriental há cerca de cinco mil anos, cujos descendentes atuais são os russos, bielo-russos, ucranianos (ramo oriental), búlgaros, sérvios, croatas, macedônios, eslovenos (grupo meridional), Tchecos, eslovacos, polacos e lusácios (grupo ocidental). A idéia de que os povos eslavos têm muito em comum quanto às suas origens, a origem de suas línguas e de alguns aspectos culturais são derivados do nacionalismo romântico, do pan-eslavismo e da noção de raça como uma base biológica para as nações, embora muitas semelhanças histórico-genéticas, geo-culturais e fonético-idiomáticas tenham sido comprovadas por muitos estudos sobre os povos proto-indo-europeus ou ários. (http://pt.wikipedia.org).

Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/10600/a-propriedade-na-cidade-antiga#ixzz1rqsdyIPe

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Livro diz que pão ajudou a vencer guerras


No Egito antigo, as etapas de produção dos pães
eram pintadas nos túmulos dos faraós

Laura Lopes
Na obra Seis Mil Anos de Pão, o historiador alemão Heinrich Jacob diz que, em algumas guerras, saiu vitorioso o lado que tinha domínio da panificação, como os russos contra Napoleão Bonaparte.
LAURA LOPES
Ao longo da história, a importância do pão não se restringe ao dia-a-dia da mesa. Em um livro clássico sobre o alimento, Seis Mil Anos de Pão – que será relançado no ano que vem pela Editora Nova Alexandria –, o historiador alemão Heinrich Eduard Jacob (1889-1967) diz que, em algumas guerras, saiu vitorioso o lado que tinha domínio da panificação.

Segundo Jacob, Napoleão fracassou em seu plano de controlar a Europa continental, no início do século XIX, porque seu estoque de trigo acabou no caminho de volta de Moscou para Paris. Ele estava certo de que encontraria mais cereal nos campos russos, mas as tropas inimigas já haviam levado consigo toda a colheita. Em retirada para a Polônia, o Exército francês morreu de frio e fome. Depois de 50 dias sem comer, ao chegarem às aldeias, os soldados se atiravam aos pães deixados para os animais – muitos morriam engasgados, sem ar. Os prussianos estranharam o comportamento e o justificaram como um “flagelo divino”. Segundo eles, os franceses haviam desperdiçado tanto pão que nunca mais poderiam matar sua fome.

Na Guerra de Secessão (1861-1865), escreve o historiador, as tropas legalistas do Norte venceram os confederados do Sul dos Estados Unidos, entre outros motivos, porque seus celeiros estavam cheios. O Exército do Norte recebia os melhores pães, com baixo teor final de água, ingredientes selecionados e cozedura bastante lenta. Quem trabalhava nos campos eram as mulheres dos soldados, além de imigrantes que chegavam da Europa. Eles usavam máquinas de colheita e moagem consideradas modernas, dando início à fase industrial da panificação.

O livro conta também que o pão, embora esteja muito vinculado à imagem de Jesus Cristo, surgiu muito antes, por volta de 4.000 a.C, inventado pelos egípcios. Eles perceberam que a massa de trigo azeda (que depois ganhou o nome de fermento) resultava em um produto diferente daqueles até então conhecidos por outros povos, como papas ou bolos (de cevada, trigo, aveia e milho) que não cresciam no calor do fogo. No entanto, os egípcios não entendiam como o pão crescia e julgavam ser uma espécie de milagre da natureza.
Revista Época

Quando surgiu o pão?

No Egito antigo, as etapas de produção dos pães
eram pintadas nos túmulos dos faraós
http://revistaepoca.globo.com

Esse alimento nasceu com a própria agricultura, há cerca de 12 000 anos, quando começaram a ser cultivadas as plantas com grãos. "Os pães mais antigos provavelmente eram feitos de cevada, o primeiro cereal a ser plantado pelo homem", diz o historiador Emanuel Bouzon, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. "Os primeiros povos sumérios, na Babilônia, já tinham pão." Inicialmente seco e duro, ele passou a ser cozido após a invenção da cerâmica em 3000 a.C. Mais tarde, em 1800 a.C., os egípcios descobriram como torná-lo mais macio e saboroso. Perceberam que, depois de um certo tempo, a massa umedecida liberava gases, tornando o pão mais poroso. Fizeram um teste: misturaram parte dessa massa fermentada com uma outra fresca. Ela também fermentou. Assim, aprenderam a controlar o processo e a fazer o pão levedado ou fermentado, técnica utilizada até hoje.
Revista Mundo Estranho

O que foi a Semana de Arte Moderna de 1922?

Gabi Portilho

Foi um evento de música, dança, poesia e artes plásticas que inaugurou um novo movimento cultural no Brasil: o Modernismo. Há exatos 90 anos, a elite cafeicultora paulista alugou o Teatro Municipal de São Paulo, pelo equivalente a R$ 20 mil, para receber um novo tipo de arte, fortemente influenciada pelas vanguardas europeias e que refletia o progresso e a industrialização que a cidade vivia naquele momento. Até então, o Rio era considerado a capital cultural do país. A elite acabou não entendendo completamente a proposta do evento, mas ele influenciou definitivamente os rumos culturais brasileiros. Mais de 40 anos depois, por exemplo, era possível perceber seus reflexos no Tropicalismo, proposto por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

ARTISTAS CONVIDADOS

Oswald de andrade

Organizador do evento. Sua crítica ao compositor Carlos Gomes (O Guarani) e seu convite para que estudantes expressem sua “opinião” jogando tomates no palco certamente causarão controvérsia.

Anita Malfatti

Cada vez mais popular após as críticas do escritor Monteiro Lobato (que destruiu seus quadros a bengaladas!), ela desfiará todo seu expressionismo em 22 obras. Mário de Andrade é um de seus fãs.

Mário de andrade

Um dos idealizadores do evento, conduzirá a palestra A Escrava que Não É Isaura. Conheça sua proposta 
para o abrasileiramento
 da língua portuguesa
e a volta ao nativismo. Abaixo ao “passadismo”!

Manuel Bandeira

Embora esteja afastado dos palcos por conta de uma crise de tuberculose, seu poema “Os Sapos” será lido por Ronald de Carvalho e promete um soco no estômago dos escritores parnasianos!

Heitor Villa-Lobos

O compositor irá encantar o público com sua música clássica temperada com maxixe, samba e chorinhos. Nas palavras de Anita Malfatti, a mistura vai “abalar as paredes do velho Municipal”!



DESTAQUES DO EVENTO

Interação com o públIco

Fique à vontade para aplaudir ou vaiar. Para expressar sua opinião sobre quadros como Colombina, de Ferrignac, basta colar um bilhete atrás da tela. Haverá obras de arte acadêmica, bem ao gosto da burguesia, mas as novidades das vanguardas europeias desafiarão o consenso

IdeIas arejadas

A intenção é fundir influências do exterior e elementos brasileiros, buscando as raízes da nossa cultura indígena, africana e caipira. Mas, ao contrário dos ufanistas, há também um fascínio pelas máquinas e pela chegada do progresso, como retratado na obra Homens Trabalhando, da artista Zina Aita.

InfluêncIa duradoura

Espera-se que obras como Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, façam com que
a Semana tenha um longo impacto. Por exemplo: Tarsila do Amaral não participará, mas certamente será influenciada – ela e Oswald de Andrade até já estão discutindo um novo movimento, o Pau-Brasil.

PolêmIca no palco

Contemple as cores chocantes de O Homem Amarelo, de Anita Malfatti, e siga nesta vibração para a plateia do teatro. O poeta Menotti Del Picchia vai causar celeuma (e vaias?) com uma palestra sobre novos escritores. Villa-Lobos pretende confundir a plateia ao usar sapato em um pé e chinelo no outro. Nada de afronta: é só um calo inflamado!

Credito Márcia Camargos, historiadora e autora de A Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos
Revista Mundo Estranho

O que foi a Revolução Russa?


O que foi a Revolução Russa?

Victor Bianchin



Foi uma série de conflitos, iniciados em 1917, que derrubou o império russo e levou ao poder o Partido Bolchevique, de Vladimir Lênin. Recém-industrializada e sofrendo com a 1ª Guerra Mundial, a Rússia tinha uma grande massa de operários e camponeses trabalhando muito e ganhando pouco. Além disso, o governo absolutista do czar Nicolau II desagradava o povo, que queria uma liderança menos opressiva e mais democrática. A soma dos fatores levou a manifestações populares que fizeram o monarca renunciar e, no fim do processo, deram origem à União Soviética.

1. Operários da então capital, Petrograd (atual São Petersburgo), começam uma série de greves, que evoluem para passeatas e manifestos, conhecida como Revolução de Fevereiro. Ao voltar de viagem, o czar não tem saída a não ser renunciar, em 15 de março. O parlamento cria um governo provisório

2. Os problemas permanecem
e o povo começa a apoiar o Partido Bolchevique, cuja base é formada por soldados e trabalhadores. O apoio aumenta com o fim do exílio do líder do partido, Vladimir Lênin. Após um protesto em junho, Trotsky (outro bolchevique importante) é preso. Com medo, Lênin foge para a Finlândia.

3. Lênin retorna em outubro, ainda em meio a protestos, e os bolcheviques decidem que “um levante armado é inevitável” e chegam a Petrograd no início de novembro. A tomada do Palácio de Inverno, sede do governo provisório, é pacífica e os bolcheviques passam a governar, com Lênin à frente.

4. Outros opositores do governo provisorio (imperalistas, liberais, etc.) formam o Exército Branco e confrontam o Exército Vermelho, dos bolcheviques, na Guerra Civil Russa, que dura até 1921. As consequências desse conflito (vencido pelo Exército Vermelho) e os efeitos da 1ª Guerra Mundial deixam o país devastado.

5. Em 1922, é fundada a
União Soviética, junção de 15 repúblicas (que hoje correspondem a 15 países), com governo e economia centralizados na Rússia. Lênin morre em 1924 e é sucedido por Joseph Stálin. O novo líder retoma o crescimento e comanda o país,
com sucesso, durante a 2ª Guerra Mundial.

Fontes: BBC, Marxists.org e Enciclopédia Britannica
Revista Mundo Estranho

1922: em busca da cabeça do Brasil moderno


1922: em busca da cabeça do Brasil moderno
Marly Silva da Motta
Intitulado 1922: em busca da cabeça do Brasil moderno, o trabalho que vou apresentar retoma algumas das questões discutidas em minha dissertação de mestrado, defendida nesta casa há exatamente três anos atrás - outubro de 1991- sob a orientação do professor Manoel Salgado.
Dos vários aspectos que têm marcado as novas abordagens dos anos 20, pelo menos três devem ser especialmente destacados. Em primeiro lugar, a percepção da especificidade do período em contraposição a uma tendência na historiografia que via 20 apenas como "antecedente" dos anos 30, numa construção de memória que elevava 1930 a marco divisor na história brasileira. Parece-me, assim, que a década de 20 passou a ocupar hoje um lugar próprio na historiografia, iluminada por suas próprias questões, deixando de lado, em parte, a incômoda posição de ter de explicar porque 30 ocorrera.

Por outro lado, não há como negar a sedução que a inquietação dos anos 20 exerce sobre a intelectualidade de um país sempre às voltas com o dilema de estar entre a catástrofe iminente e a esperança de algo novo. Menos preocupada com influências ou heranças, a historiografia recente sobre os anos 20 compartilha, no entanto, com a "geração de 22" a utopia da inserção do país na modernidade.
Finalmente, é preciso destacar a abertura do leque de temas, para além daqueles que particularmente marcaram o período. Ou seja, além dos eventos tradicionais dos anos 20 - a fundação do PCB, a Semana de Arte Moderna, e a irrupção do movimento tenentista -, cuja lugar na memória e na historiografia nacionais foi cuidadosamente construído ao longo do tempo, verifica-se agora a introdução de temas antes relegados a segundo plano. Refiro-me, por exemplo, à tensa sucessão presidencial de 1922, ou ainda à organização de um centro do pensamento católico, como o Centro Dom Vital, ou então a propostas de reformas educacionais, que, geralmente ocupavam um lugar secundário no quadro de análises que buscavam explicar os nossos anos 20.
No que toca especificamente à comemoração do centenário da independência, em 1922, esta sequer é lembrada, a não ser em citações passageiras em enciclopédias e livros didáticos antigos. Tal omissão pode ser explicada, sem dúvida, pela suspeição que essas comemorações coletivas despertavam na comunidade de historiadores. Tais celebrações, que encarnariam o artificialismo e o elitismo da ideologia dominante, podiam interessar, se tanto, à "história oficial".
O estudo de Mona Ozouf sobre as festas da Revolução Francesa, publicado em 1976, pode ser considerado um importante passo para a quebra de tais preconceitos. Destacando o caráter institucional do evento comemorativo, pela massa de relatórios, discursos, projetos e propostas que lhe foram dedicados, a historiadora francesa enfatiza sobretudo o aspecto pedagógico da comemoração, chamada a tornar-se a "professora da nação". É forte o apelo à reunião, à unificação, à eliminação dos fatores de diversidade, aspecto aliás ressaltado por Raoul Girardet
no seu Mitos e mitologias políticas. É pois no âmbito de uma corrente historiográfica preocupada com o delicado processo de construção das nações que se desenvolveram estudos sobre a constituição do universo nacional, ou seja, símbolos, 2 práticas, comportamentos e valores que ao definirem o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, tornam-se elementos básicos da identidade nacional.
A memória coletiva ocupa um papel fundamental em todo esse processo, como foi bem demonstrado por Eric Hobsbawm em seu trabalho sobre a invenção de tradições na Europa de 1870 a 1914, e principalmente no clássico de Pierre Nora, Les lieux de mémoire, onde é desvendada a relação entre memória e nação. "Datas magnas" - como o 4 de julho nos EUA, o 14 de julho na França, o 7 de setembro, no Brasil - seriam lugares de sacralização da nação e de identificação do nacional.
Uma vasta documentação, especialmente representada por jornais, revistas, livros, congressos, palestras,- e que foi por nós explorada na dissertação de mestrado - indica efetivamente que a comemoração do centenário da independência em 1922 mobilizou a intelectualidade dos dois principais centros urbanos do país, Rio de Janeiro e São Paulo. Ao forçar a busca das origens e a avaliação do papel das figuras históricas, ao julgar o passado colonial e as realizações republicanas, a comemoração do centenário suscitou debates sobre a formação e as perspectivas da sociedade brasileira, recolocando de forma especialmente urgente o dilema da salvação nacional. A década de 20 abriu-se, assim, com um aceso debate sobre a nação brasileira às vésperas de completar cem anos de vida independente, marcada porém pelo atraso.
Em desacordo sobre os reais motivos do descompasso do país com a modernidade, divergindo em torno dos caminhos que deveriam conduzir até ela, a intelectualidade brasileira convergia, no entanto, na compreensão de que o centenário seria o momento-chave em que tais questões deveriam ser discutidas.
Momento de articulação do presente/passado/futuro, de construção de diferentes modelos para a criação de uma nação "brasileira e moderna", o centenário de 1922 não se reduziu à comemoração de uma data memorável, mas ao contrário, envolveu a intelectualidade brasileira na tarefa sempre renovada de criar a nação, traçar a identidade nacional e, mais que tudo, construir um Brasil moderno.

Mas o que significava pensar o Brasil nesse momento? O grande desafio era, sem dúvida, romper com o passado recente, encarnado, por um lado, numa Belle Époque falida após a I Guerra; e, por outro, numa República que se revelou bem distante dos sonhos dos primeiros republicanos. Ou seja, de qualquer maneira era preciso buscar novos parâmetros para definir uma nação moderna, já que o modelo até então consagrado parecia esgotado.
Marcada pela missão de fecundar idéias singulares, - "basta de fecundação artificial", bradava Ronald de Carvalho - nem por isso a "geração de 22" se furtou a buscar a modernidade através de uma integração crítica e seletiva das idéias que circulavam na Europa, e que revelavam o desmoronar dos valores que sustentavam a Belle Epoque, ou seja, o liberalismo, o racionalismo, o otimismo cientificista. Desse modo, o antiintelectualismo, o antiliberalismo e o nacionalismo, foram componentes que alimentaram o chamado pensamento tradicionalista, mas que foram igualmente levantados pelas correntes de vanguarda para demolir todas as "tradições".
Abastecidos nas mesmas fontes, tradição e vanguarda reivindicavam para si o monopólio de portadores da modernidade.
Para os tradicionalistas, nada havia de moderno na realidade urbano-industrial marcada pelo desenraizamento e o artificialismo. Para enfrentar esse mundo que se desmanchava no ar, o homem moderno precisava de raízes firmemente ancoradas na tradição nacional. O retorno ao campo e a valorização do setor agrário eram difundidos como a possibilidade concreta de um mundo harmonioso. A sociedade da máquina, intelectualizada e racionalizada, era entendida como decadente e caótica. Ao se afastar do mundo natural, através da artificialidade do maquinismo e do meio urbano, o homem teria perdido contato com as "reais"
virtudes da civilização.
"Fujamos da natureza", essa era a palavra de ordem da vanguarda, marcando uma opção de enfrentamento da modernidade radicalmente oposta à dos tradicionalistas, que pregavam um retorno à natureza. O Manifesto Futurista, de Marinetti, marcado pela apologia dos "aeroplanos, locomotivas e oficinas", indicava o desejo, marcante na vanguarda européia, de exaltar a vida moderna, corporificada no maquinismo e panorama urbano.
No Brasil, a intelectualidade comprometida com a construção de um Brasil moderno oscilou entre a tradição e a vanguarda. É marcante a diferença entre essas duas elites intelectuais: uma, composta por indivíduos ligados às idéias vanguardistas européias, rompendo com os valores "clássicos" e buscando sintonizar a realidade nacional com o ritmo veloz e febril do novo mundo urbano e industrial; outra, igualmente filiada a correntes internacionais, de caráter conservador, marcada pelo apelo aos valores da natureza e do campo, pelo repúdio ao industrialismo e à modalidade da vida urbana, litoralista, cosmopolita e liberal. Ambas se unem pela oposição às pretensões da razão universal derrotada na guerra, e advogam a originalidade de cada nação. É claro que, como em todas as classificações excessivamente simples, a dicotomia, por vezes, torna-se artificial, uma verdadeira camisa-de-força. Porém como todas as distinções encerram algum grau de verdade, a oposição "tradicionalismo" x "vanguarda" oferece um ponto de partida para a
reflexão.
A adesão aos valores "sólidos" da tradição rural, a filiação às correntes que pregavam um retorno à natureza, a valorização da atividade agrária frente à "ameaça" industrialista, atraíam tanto os intelectuais da reação católica, Jackson de Figueiredo e Tristão de Ataíde, como os "verde-amarelos", Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, ou ainda Oliveira Vianna e Monteiro Lobato, membros de uma elita agrária em crise. Para estes intelectuais, a identidade nacional teria que ser buscada longe dos centros urbanos litorâneos corrompidos pelo "vício da imitação".
Como diz Monteiro Lobato, "é preciso frisar que o Brasil está no interior, nos sertões onde o sertanejo vestido de couro vaqueja(...) sem um escrúpulo de francesismo a lhe aleijar a alma(...). Romper com as idéias importadas significava deixar de ser caranguejo a arranhar o litoral. A descrença nos valores da belle époque , a avaliação crítica dos cem anos de naçào, a crise do pacto republicano, reforçavam a necessidade maior de firmar os "bastiões da nacionalidade" no interior. Era preciso não esquecer a licão de Euclides da Cunha: rumo aos sertões.
Marcado por um certo retomar do pensamento romântico, a corrente tradicionalista tendeu a privilegiar o espaço. O espacial seria o elemento definidor do Brasil e garantidor de sua originalidade na quadro internacional, e a geografia, o instrumento mais adequado para uma reflexão sobre a nacionalidade brasileira. A identificação entre nacionalismo e território era clara. Quem não se lembra do primeiro contato com o Brasil, "fazendo rios com tinta azul e montanhas com lápis marrom, traçando fronteiras com tinta vermelha...", concluía Plínio Salgado. Afinal, se a avaliação dos 100 anos de história parecia nos condenar, a geografia poderia nos redimir.

Além de se constituírem em "cerne da nacionalidade", as populações rurais seriam as maiores fontes produtoras da riqueza nacional. Como diz Alberto Torres, ao trabalho produtivo da lavoura se contrapunham as indústrias das cidades, "parasitas mantidos pelos cofres públicos...". Considerada por grande parte da historiografia como apenas uma "manifestação ideológica dos setores agrários conservadores" frente ao crescente espaço ocupado pelos interesses industriais no panorama político, essa corrente de ideias, que privilegiava o interior, a natureza, o campo, portava um projeto de nação. Só que também em nome de um projeto de nação, outros louvavam a urbanização e a industrialização.
Para um expressivo grupo de intelectuais, especialmente aqueles que dentro do modernismo admiravam os cânones vanguardistas - Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, para citar os principais - era difícil acreditar que o Brasil estava no sertão. Para estes, a cidade impunha-se como o novo centro dinâmico da vida nacional, impunha-se como identidade nova. Como diz Menotti, "queremos luz, ar, aeroplanos, reivindicações obreiras, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade...". A incorporação à ordem moderna, compreendida
como urbana e industrial, precisava se afastar do "nacionalismo carro-de-boi, com Jeca "maginando", canto de cambaxirra e regato sussurrante...". Não era nas matas ou no sertão que se encontraria o tipo representativo de nacionalidade. Como diz Mario, "fujamos da natureza. Só assim a arte não se ressentirá da ridicula fraqueza da fotografia colorida...".

Diante do desafio de comemorar o centenário da independência, a geração intelectual de 1922 produziu novas e variadas explicações do Brasil. Explicações caracterizadas por um desejo dilacerante de compreender o país, de repensá-lo, e, principalmente, de salvá-lo. A própria dinâmica da celebração - o balanço obrigatório dos feitos do passado, a avaliação do presente de realizações frustradas, a perspectiva de um futuro incerto, - estimulava a produção acelerada de
significações do que fora essa nação, do que era àquela altura e do que deveria ser no futuro. Filiada a diferentes concepções de modernidade, devotada à causa da brasilidade, essa geração partilhava a crença de que a construção da sociedade moderna dependia de um projeto de reconstrução da nação brasileira. Essa produção intelectual resultou na configuração de um imaginário nacional - firmado na invenção de novas tradições e na construção de novos marcos simbólicos - que teve uma insuspeitada permanência na mentalidade coletiva. Paradigmaticas, as interpretações que deram para o Brasil inauguraram novos estilos de pensar o país, sua história, seus dilemas do presente e suas perspectivas do futuro.
Institucionalizadas, tais idéias se tornaram referências constantes em programas de governo. Formaram discípulos, seguidores e dissidentes. Detonado um debate que atravessou toda a década de 1920, deixou para os períodos posteriores a sensação de que o país encontrara seu perfil e o seu caminho. Oliveira Viana, Mario de Andrade, Monteiro Lobato, estabeleceram estilos de pensamento, e, principalmente, tornaram-se marcos obrigatórios de reflexão e ação para aqueles que insistiram e ainda insistem em desvendar a questão nacional.

MOTTA, Marly Silva da. 1922: em busca da cabeça do Brasil moderno. Rio de Janeiro, CPDOC,1994. 8f.
Seminário 70 Anos da Coluna Prestes: 1924-94
IFCS/UFRJ - 26 de outubro de 1994

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Pobreza no Brasil Colonial


Pobreza no Brasil Colonial:
representação social e expressões da desigualdade na sociedade brasileira


Maria da Penha Smarzaro Siqueira

Introdução


A reflexão sobre as questões que envolvem entendimentos diversos sobre a pobreza e a desigualdade social, na perspectiva de nossa pesquisa, inscreve-se em um projeto maior, desenvolvido no Programa de Mestrado em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa “Estado e Políticas Públicas”, e tem como foco a questão social na perspectiva histórica da modernidade, abrindo frentes de estudos temáticos voltados, principalmente, à História Regional, priorizando as fontes primárias do valioso acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

Tema de grande expressão no fórum de debates sociais e políticos, a pobreza e suas representações se incluem num complexo universo social, econômico, cultural e político, aliadas às questões teóricas e conceituais. Nesse contexto, identificamos as referências iniciais sobre a pobreza no Brasil colonial, no ideário da construção ideológica cristã que se estruturava na caridade, e na expressão dos princípios da desigualdade social, noções que vão percorrer tempos históricos posteriores.

Inerente à organização da sociedade colonial, desenvolvem-se as atividades das Ordens Mendicantes e da Misericórdia, tendo, como representação maior, a Santa Casa da Misericórdia, que em Vitória (locus da pesquisa) foi de fundamental importância nas funções sociais da cidade.

A modernidade e o ideário do projeto colonizador

Na perspectiva da evolução histórica, a modernidade representa um processo complexo de mudanças direcionadas a distintas dimensões. Inicialmente, o tema nos reporta ao projeto sociocultural europeu nascido em meados do século XVI, que se consolida com o Iluminismo no século XVIII. Tempo marcado pela emergência do capitalismo, enquanto modo de produção dominante nos países europeus, com bases na fase inicial da industrialização. Podemos considerar a trajetória da modernidade europeia, nesta fase inicial, como uma etapa precursora, na qual a modernidade evoluía num ideário filosófico e intelectual, conquistando tanto avanços materiais e políticos quanto uma maior consciência popular. Um movimento que estabelecia a nova “fronteira” entre moderno x antigo, noção que se estende ao século XIX, quando se configura mais precisamente a modernidade.

Para Sousa Santos (1996), o projeto sociocultural da modernidade, por sua complexidade, esteve sujeito a desenvolvimentos contraditórios, num contexto onde a força das dimensões da racionalidade agia como fator de entendimento do mundo. As relações sociais sofreram alterações significativas a partir do momento em que o potencial transformador da racionalidade aprimora as técnicas de produção e da opressão, atingindo fundamentalmente a subjetividade humana. Uma nova lógica de lucro/poder/domínio reorganizava a sociedade, que se desenvolvia com base na força e ampliação da tecnologia, fortalecendo o processo de reificação do trabalho humano. As diferentes dimensões da modernidade promoveram sua expansão de maneira abrangente, tendo, esse ideário, a necessidade de conectar-se com realidades distintas e adquirindo, assim, configurações diferentes.

Tratamos aqui da fase inicial da trajetória da modernidade europeia, que constitui a referência obrigatória para o entendimento do processo e dos princípios do projeto colonizador na América, notadamente no Brasil. O ideário da modernidade europeia, expresso principalmente a partir do século XVI, vai ser determinante para uma nova concepção de mundo, promovendo uma superação da tradicional estrutura de comércio marítimo e alargando os horizontes das relações comerciais em esfera internacional com as grandes navegações.

A concepção moderna, entendida pela razão, destruiu a noção tradicional que o mundo medieval havia construído nos preceitos divinos, em que os fenômenos universais só poderiam ser interpretados a partir de um entendimento teológico. O novo ideário do mundo físico promoverá avanços significativos no campo da ciência, possibilitando descobertas científicas que viabilizem o aperfeiçoamento de novos instrumentos de navegação e de outras instâncias socioeconômicas (Souza Santos, 1996). Ao que parece, essa nova concepção seria o grande divisor de águas para o entendimento da modernidade no século XVI. A razão encaminhará, nos séculos seguintes, os princípios de entendimento do mundo, sendo esses reforçados pelo Iluminismo no século XVIII.

Nesse contexto, grandes transformações econômicas, políticas, sociais e culturais se estabeleciam na Europa ocidental, marcando e expandindo o ideário da modernidade numa perspectiva universal. Nesse ideário, a colonização portuguesa na América representará as relações de poder tanto na esfera econômica quanto na esfera política da nova ordem europeia, ou seja, as bases estruturais do Antigo Regime absolutista, no campo político e do Mercantilismo, no campo econômico.

Do ponto de vista cultural, a consolidação do absolutismo português, aliado a um clero poderoso, até a primeira metade do século XVI, deu continuidade aos contatos entre a intelectualidade portuguesa e o humanismo, incluindo Portugal nos circuitos internacionais do Renascimento. A grande abertura cultural, verificada antes de 1540, sofreu um corte abrupto com o movimento da Contra-Reforma, dando lugar aos processos inquisitórios e à rigidez das propostas da renovação católica, rompendo os vínculos com o humanismo (Wehling & Wehling, 1994).

A ruptura com o movimento humanista foi decisivo no processo colonial brasileiro, uma vez que condicionou os quadros mentais do novo país aos estreitos limites da ortodoxia católica, de acordo com os direcionamentos que estabeleciam a renovação escolástica na Península Ibérica, estendendo-se à Espanha. A importância da Igreja, como pólo político autonômo, permanece com relevante representatividade na sociedade moderna, notadamente na Península Ibérica, que visava uma direção integral da vida pela moral cristã.

[...] De todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o único que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e imediatos [...] de um lado a outro a influência disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. (Espanha, 2000, p. 125)

A integração entre Estado e Igreja tinha, em Portugal, sua expressão maior na aliança entre os direitos do rei (lei) e o direito da igreja (canônico). Assim, as tendências que são postas em prática com a renovação dos princípios filosóficos-teológicos alargam os ideais tradicionais, que reaparecem com força na prática do projeto colonizador. O Brasil recebeu esse ideário, em um contexto no qual a América representava o “novo” na noção do moderno e, ao mesmo tempo, o “locus” da transposição de práticas arcaicas e contraditórias já existentes na sociedade europeia e, em boa medida, herdadas do mundo medieval (Silva, 2007). Duas práticas caminharam juntas nesse processo: a humanista-cristã e a agromercantil-escravista, dando forma à colonização na América. Para atingir os objetivos cristãos, nenhum órgão da Igreja foi tão eficaz quanto a Companhia de Jesus “[...] quanto à economia colonial, teria como eixos a associação orgânica entre a grande propriedade fundiária e monocultura, e o trabalho escravo” (Fragoso & Florentino, 1993, p. 101), que se ampliava no movimento mercantil do tráfico de negros africanos.

Desta forma, a articulação do estado português com a colônia brasileira foi marcada por valores próprios do Antigo Regime, pautado no arcaísmo metropolitano, que concebeu na colônia uma elite mercantil formadora de uma sociedade fundamentada no trabalho escravo e no comércio colonial primário-exportador (Fragoso & Florentino, 1993).

Assim, a representação da modernidade no Brasil, enquanto resultado da colonização lusa, alicerçou um processo de domínio político e exploração comercial, aliado ao escravismo e ao ideário missionário cristão, uma vez que “[...] Portugal, em tempos dos descobrimentos ainda não havia incorporado à lógica da modernidade, gerando um atraso civilizatório na prática colonial” (Holanda,1995, p. 96).

A pobreza, suas representações e os fundamentos da desigualdade social

Ao longo da evolução histórica, o caráter degradante da pobreza, do ponto de vista econômico, social e cultural, afigura-se de modo diferenciado, sendo também diversos os contextos em que se manifesta. É nessa ótica que a formação das ideias e dos valores que permearam a sociedade medieval se firmaram e estabeleceram as representações e a dinâmica social cristã. Representações que constituíram a gênese da construção ideológica da pobreza, ou seja, o elogio à pobreza é uma herança medieval.

Na sociedade medieval cristã, a expressão maior é o Evangelho, e o elogio à pobreza enraíza-se nos programas ideológicos que tomam a Sagrada Escritura como referência. Muitas e diferentes doutrinas nascem em torno da noção de pobreza, mas será sempre a mensagem social do Evangelho a fornecer os elementos (Geremek,1987). A imagem e a expressão social do pobre no mundo medieval “[...] cria um elo de relações sociais determinantes na sociedade; afinal, o ethos da pobreza agrega o elogio à esmola ao elogio a salvação” (Mollat,1989, p. 119).

A modernidade no século XVI vai gerar mutações na reflexão da práxis social, uma vez que vai celebrar, na sociedade pré-industrial, o elogio ao trabalho, agora visto como uma ação transformadora, que passou a refletir profundas mudanças na mentalidade coletiva (Geremek, 1987). O ideário da pobreza, enquanto valor espiritual, enfraquece-se na medida em que novos padrões passam a derrubar essa noção. “[...] O trabalho torna-se ‘o principal direito do homem, que almeja comandar o destino e conquistar riqueza’” (Geremek, 1987, p. 219). Aqui reside a mutação radical no ethos da pobreza, “[...] quando se dá o decisivo aggiornamento das doutrinas religiosas, das atitudes coletivas e da política social face à pobreza” (Geremek, 1987, p. 13).

Na evolução do ethos da pobreza, assiste-se, na modernidade, a novos sinais para um outro modelo de pauperização: a pobreza sócio-industrial, gerando as noções determinantes da desigualdade social do mundo moderno capitalista. No século XVI, a Europa já estava superpovoada: os pobres já constituíam um sinal de problema nas cidades e as massas de miseráveis, para as quais não havia lugar nem no campo nem na cidade, tornam-se um elemento constante da paisagem social da Europa, vivendo de trabalhos ocasionais e esmolas (Geremek,1995).

A situação das massas pobres em Portugal não se diferenciava dos demais países europeus. No século XVI, Portugal vivia um clima de contradições internas, entre as práticas das virtudes de uma nova ordem burguesa e a prática tradicional da Igreja Católica, renovando os princípios católico-feudais. Nesse clima de contradições, no Brasil, a escravidão negra, o latifúndio e a monocultura firmaram-se, aliados a um conjunto de fatores do sistema mercantilista, assentando a economia e as bases sociais da sociedade colonial brasileira.

Entre os dirigentes da colonização, em seus vários setores – o clero, a família patriarcal, a massa trabalhadora escrava e os pobres livres –, legitimava-se a estrutura social da colônia e cumpria-se a obra da colonização, que foi “[...] avultando com o tempo o número dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma” (Prado Junior, 1996, p. 279). Os recursos materiais para os destituído eram muito escassos, o que agravava a situação entre os extremos na escala social, sinalizando a formação das raízes da desigualdade numa sociedade organizada em senhores e escravos, a minoria dos primeiros e a multidão dos últimos.

A matriz colonial, nos seus pilares de sustentação – apoiados no caráter autoritário, patrimonialista e escravocrata –, criou uma herança de dominação excludente e produziu uma sociedade permeada por relações autoritárias de poder, estruturada em uma cultura política que envolveu colonizador e colonizado na reprodução da desigualdade social, dando origem a uma rígida estratificação de classes sociais (Sales, 1994).

A pobreza perpassou toda a sociedade colonial entre a riqueza e a opulência de outras classes sociais, sem distinção entre a economia açucareira, mineradora e outros segmentos econômicos estabelecidos na colônia, marcando o quadro das desigualdades sociais.

Os pobres constituíam uma camada social de impossibilitados e desclassificados, criados na indigência, sem condição suficiente de sobrevivência. Viviam de biscates e esmolas, amparados pela caridade da Misericórdia e da Igreja (Piva, 2005). Essa camada de desclassificados sociais foi se alargando até o século XVIII, predominantemente com negros livres, mestiços, brancos sem trabalho e/ou biscateiros, mendigos, bastardos e oriundos de núcleo familiar dirigido por mulheres sozinhas, que se amesquinhavam na sombra da caridade nas cidades (Souza, 1986).

Até a abolição da escravatura, o Brasil já estava povoado de pobres, caracterizando uma pobreza rural extensiva aos centros urbanos. Numa sociedade marcada por extremos bem definidos – senhorial e escrava –, a população livre e pobre, num processo contínuo de desclassificação social, protagonizou a situação de carência, miséria e exclusão do Brasil colonial.

A Ordem da Misericórdia e a ação da caridade na égide do projeto colonizador

O ideário da doutrina cristã difundiu princípios que sustentavam a dependência social da pobreza e caridade, em uma construção ideológica que vai percorrer a sociedade colonial, independente das novas roupagens do discurso moderno predominante. Para Portugal, a colonização e a montagem de estruturas socioeconômicas hierarquizadas no novo mundo serviam ao claro propósito de preservar a antiga ordem metropolitana. No contexto do projeto colonizador, transferem-se para o Brasil os princípios lusitanos, que ressaltavam a noção de pobreza na concepção da religiosidade, e promoveram a expansão do projeto de assistência pela ação da Ordem da Misericórdia, que promovia auxílio espiritual e material aos necessitados, de acordo com a proposta de assistência social do Estado português.

A criação da Irmandade da Misericórdia na colônia brasileira fundamenta-se nos princípios de reafirmação dos dogmas católicos com o movimento da Contra-Reforma. “[...] a vigência do modelo caritativo impulsionado por instituições como a Irmandade da Misericórdia foi uma das consequências da vitalidade da Igreja Católica em território português”. (Piva, 2005, p. 36)

Em Portugal, já era tradição a prática de dar esmolas, principalmente através de instituições de beneficência mantenedoras caritativas cristãs medievais, dos bodos, que constituía a distribuição de alimentos aos necessitados, e das mercearias, que eram tipos de asilos onde os pobres eram recolhidos, e onde deveriam rezar diariamente pela alma de seus beneficiados (Mesgravis, 1976).

No modelo dessas iniciativas de assistência, também assentadas em hospitais e albergarias, foi criada, no final do século XV, a mais significativa e permanente instituição de assistência portuguesa: a “Irmandade da Misericórdia”, que veio para o Brasil aliada ao projeto colonizador, e retrata uma concepção cristã “[...] era a forma dos mais ricos exercitarem a caridade e ‘ascenderem ao reino do céu’” (Sposati, 1988, p. 83).

Criada com o objetivo de prover assistência aos necessitados, a “Misericórdia”, instituição tipicamente portuguesa de assistência e caridade, atendia os pobres, os doentes, os presos, os alienados, os órfãos desamparados, os inválidos, as viúvas pobres e os mortos sem caixão, predominando a prática de recolher contribuições dos mais afortunados para dar assistência aos pobres e desvalidos, exceto os escravos. A esses, cabia o cuidado dos seus donos (Mesgravis, 1976).

Dentre o amplo universo das instituições de assistência mantidas pela Irmandade, a mais significativa na colônia foi a hospitalar. Foram instituídos hospitais públicos, “Santas Casas”, originando a “Santa Casa da Misericórdia”, assim denominada por fazer parte da Irmandade da Misericórdia (Piva, 2005). Criadas inicialmente com uma função muito mais assistencial do que terapêutica, davam atendimento aos pobres na doença, na vida, no abandono e na morte. Eram abrigados, além dos enfermos, os abandonados e marginalizados (crianças e velhos), criminosos doentes e doentes mentais. Davam assistência aos excluídos do convívio, em uma sociedade em que não se registrava uma preocupação com os problemas sociais. A função médico-hospitalar foi ganhando espaço ao lado da função assistencial. Nas cidades onde foram fundadas, as misericórdias se anteciparam às atividades estatais de assistência social e à saúde (Russel-Wood, 1981).

No Brasil, a atuação desta Ordem da Misericórdia se estabeleceu, inicialmente, pela instituição da esmola, seguida pela ação de assistência institucionalizada, passando posteriormente a assimilar uma noção de filantropia higiênica, uma vez que as epidemias, as doenças contagiosas e a insalubridade das cidades se faziam presentes, atingindo principalmente a população pobre, sem amparo por parte do poder público (Sposati, 1988).

O ideário que gerou as “Misericórdias” tem papel importante na sociedade capixaba. A província do Espírito Santo, com uma precária economia açucareira e vilas muito pobres, alojava uma população livre, desamparada e sem perspectivas de trabalho, tanto no interior quanto na capital. As fontes relacionadas à Irmandade, à Igreja da Misericórdia e à Casa da Caridade atestam atuação dessas instituições na província, mais notadamente em Vitória, durante todo período colonial e tempos posteriores. Além das precárias condições de higiene e de saúde da cidade de Vitória, os surtos de doenças endêmicas e epidêmicas intensificavam a gravidade da precária situação de vida dos pobres, alojados nos espaços mais insalubres da cidade e amparados pela “Misericórdia”, que no inicio atuava na obra de caridade sem comportar um hospital, que veio a ser a maior representação da assistência na cidade de Vitória e demais regiões da Província do Espírito Santo (APE. s: 383.L.19/20).

A Santa Casa da Misericórdia de Vitória foi criada no início do século XIX como uma instituição própria voltada para a caridade e tratamentos de saúde. A construção do hospital se deu pelo viés da ação pública e privada, e a manutenção se dava apoiada na caridade particular. Russel-Wood (1981) esclarece que tradicionalmente em todas as regiões da colônia, eram pessoas abastadas da classe rural, comerciantes urbanos, entre outros segmentos mais afortunados, que compunham o quadro de doadores.

Seguindo as noções higienistas da época, o hospital foi erguido em local de nível elevado aos mangues, visando afastar a população dos riscos de infecção e priorizando também um cemitério no local. Desenvolvia a rede de contribuições direcionada aos pobres e desvalidos, estando, assim, os doadores cumprindo uma função social de beneficência, voltada para a ampla camada da população, constituída em diversas categorias de pobres sem perspectiva de recursos, se não aquele empreendido como produto da caridade, pautado na cultura cristã da bondade e da assistência material e espiritual no ideário universal da Irmandade da Misericórdia.

Considerações finais

Nosso trabalho apresenta reflexões sobre a razão do Estado como premissa ideológica justificadora de ações empreendidas sobre a sociedade, na égide de sistemas estruturados e estruturantes, que cumprem a sua função política de instrumentos de imposição e ou de legitimação da dominação, independente do tempo histórico. Assim, nessa pesquisa, analisamos a lógica da modernidade no ideário do projeto colonizador português, aliado ao inverso deste processo na prática econômica e social do Brasil colonial, situando a pobreza e a caridade numa dimensão estrutural e conjuntural desse projeto, enquanto veículo de dominação política, econômica e ideológica.

Nesse contexto, a “Misericórdia”, enquanto produto da política beneficente implementada pela Coroa Portuguesa no século XV, imprimiu na sua ação toda a manifestação do catolicismo medieval, que pedia a caridade em troca do perdão dos pecados e, consequentemente, a salvação daqueles que ajudavam aos pobres, distanciando-se dos princípios sociais da modernidade. Espalhando-se por todo o Império português, mas sempre atendendo as noções ideológicas e as prerrogativas compromissais da matriz lusitana, com seus paradigmas patriarcais, aristocratas e conservadores, a Irmandade, principalmente através da “Santa Casa da Misericórdia”, buscou adaptar-se às situações locais vividas nas colônias portuguesas. Na Província do Espírito Santo, a Irmandade da Misericórdia marca sua atuação desde o início do tempo colonial, amparando os irmãos confrades e os pobres necessitados de amparo social, e o hospital dessa Irmandade, a “Santa Casa da Misericórdia”, a partir do início do século XIX, passa a ser a maior representação de assistência à pobreza na cidade de Vitória.

A pobreza e a caridade caminharam juntas na organização social da colônia brasileira, num ideário que contemplava a lógica conservadora do projeto colonizar, em que a pobreza cumpria um papel político (fidelidade dos pobres aos doadores afortunados), social (diferenciação das classes abastadas) e religioso (a noção do perdão e salvação dos pecados através da doação aos pobres). Não se registra na história colonial nenhuma indicação que denuncie a vontade e/ou iniciativas por parte do governo e da Irmandade em criar alternativas sociais mais modernas para diminuir a pobreza e o combate à situação de miserabilidade que se espalhava nas províncias. As ações efetuavam-se no sentido da mensagem cristã, que na realidade legitimava a situação dos pobres. Não havia, portanto perspectivas de mudanças, já que o trabalho não era colocado como uma ação transformadora. Historicamente, para a população pobre a caridade tutelada contribuiu para a ausência de um ideário relacionado à noção de cidadania (com direitos e deveres sociais), na constituição da sociedade brasileira.

Fontes manuscritas

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo. Governadoria. Série 383. L.19-20
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Revista Histórica