Ditaduras, ocupações e, agora, até um terremoto no Haiti fizeram da América Central a região mais instável e miserável do lado de cá do Atlântico. Entenda o que uma longilínea fruta tem a ver com isso
Karin Hueck e Mauricio Horta
Um transatlântico de 300 metros se aproxima de uma praia tropical. Seus 3 400 passageiros estão há 5 dias viajando e dispõem de dezenas de atrações a bordo, de campos de minigolfe e paredes de escalada a shows de cabaré. Ainda assim, boa parte dos turistas resolve sair do navio e conhecer a praia de areia branca. Junto com eles, descem garçons e funcionários para abastecê-los com drinques e petiscos durante o banho de sol. Seria uma cena normal, apenas mais um passeio turístico no Caribe, se a praia paradisíaca não fosse Lavadee, o país onde ela se encontra o Haiti, e a data do passeio 17 de janeiro de 2010 - 5 dias depois de um terremoto matar 200 mil pessoas e devastar boa parte da pequena nação. No tremor de 7 graus, 250 mil casas foram destruídas, assim como quase todos os prédios do governo e os dois únicos postos de bombeiros do país. Durante semanas, o mundo se entristeceu com a situação precária do Haiti. Mas a notícia realmente triste é que o país não é uma aberração - é apenas o ponto mais baixo de uma região inteira problemática, a América Central. Ocupações externas, golpes de Estado, ditaduras: quase todos os países da região passaram por isso. E o que pouca gente sabe é que todo esse caos pode ter começado com uma inofensiva frutinha...
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A primeira vez que os americanos viram uma banana foi em 1876, na Exposição Centenária da Filadélfia. Na ocasião, a fruta não chamou muita atenção - até porque estava exposta ao lado do telefone de Graham Bell. Mas, 15 anos depois, a banana já tinha conquistado o coração dos americanos e era servida em restaurantes de Nova York. Fazia muito sucesso porque era prática: sua casca é uma embalagem natural que dispensa lavagem. Tinha o potencial de virar o Big Mac das frutas. E, de fato, logo virou: na década de 1930, a banana já era a fruta mais barata e consumida nos EUA. Mas como um produto tropical extremamente perecível podia ser abundante nos EUA? Graças a uma das primeiras multinacionais do mundo: a United Fruit Company, que, além de inventar um método de distribuição de frutas em larga escala, contribuiu para bagunçar a América Central.
Damn it! We have bananas
Nascida na véspera do século 20, a UFC controlou a produção, o transporte e o marketing da banana, com eficiência de relógio e agressividade para eliminar qualquer rival. O lugar escolhido para plantar a fruta foi a desabitada América Central, que oferecia o pacote completo: governos frágeis e terrenos tropicais disponíveis para latifúndios. Foi lá que a UFC deitou e rolou nos 35 anos seguintes. Nesse período, os EUA fizeram 28 operações militares na região, inclusive no Haiti. "O maior objetivo dessas incursões foi tornar a América Central segura para as bananas", escreve Dan Koeppel, escritor americano, autor de Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World.
O método que a UFC usava para dominar a região era simples. Com o intuito de modernizar os países, a empresa construía ferrovias e portos, e criava empregos locais. Aí vinha o pulo do gato: muitas vezes os governos não tinham dinheiro para pagar pelas regalias. Em troca, acabavam cedendo imensas extensões de terras férteis para a United Fruit Company plantar bananas, quase livre de impostos. Para que acidentes naturais ou greves não interrompessem o fluxo contínuo de frutas para os EUA, o jeito foi expandir o sistema para vários países ao mesmo tempo. Assim, a UFC exportou o modelo "ferrovias-em-troca-de-terra", inaugurado na Costa Rica, para Panamá, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Para os governos, o toma lá dá cá não soava como o fim da soberania, mas como a grande chance de modernização.
Banana pra dar e vender
O problema só ficou óbvio quando a UFC ficou maior do que os países onde atuava. "Não é bom para um país depender da exportação de um só produto", diz Marcelo Bucheli, professor de história da Universidade de Illinois, EUA. "E os países centro-americanos não só exportavam um ou dois produtos mas também eram controlados por uma ou duas companhias e exportavam para um ou dois países." Em 1930, a UFC era o maior empregador da região. Subornando governos, ditava leis trabalhistas, sonegava impostos e não permitia que pequenos produtores surgissem. Assim, a UFC pariu as "Repúblicas da Banana".
O Haiti recebeu indiretamente os tentáculos da UFC, por meio de uma de suas afiliadas, a Standard Fruit and Steamship Company, que se instalou por lá. Mas o que realmente atrasou a vida da nação foram as migrações em massa atraídas pela agricultura. O Haiti não oferecia infraestrutura e nem postos de trabalho para a população (aliás, nunca ofereceu) e 300 mil haitianos deixaram o país para trabalhar nas plantações vizinhas. Para piorar, na mesma época, uma intervenção americana ocupava o país e definia como deveria ser governado. Os líderes locais, em vez de elaborar um projeto para desenvolver a nação, lutavam entre si pelo poder - preferiam intervenções externas à possibilidade de ficar longe do governo.
A coisa desandou de vez quando, ao fim da 2ª Guerra Mundial, o mundo entrou na Guerra Fria. Em 1954, a CIA e a UFC derrubaram um governo eleito da Guatemala e instauraram uma ditadura. Começaram assim 4 décadas de guerrilhas de esquerda e ditaduras de direita na região, que mataram centenas de milhares de pessoas - 200 mil só de guatemaltecos. No Haiti, a instabilidade chegou ao seu auge: em dois anos, 5 presidentes se revezaram no poder. Para assegurar a influência capitalista na região, os EUA apoiaram o golpe político da família Duvalier (o maléfico Papa Doc e seu filho). Sessenta mil pessoas foram assassinadas durante sua ditadura. O pequeno país caribenho continuou sem perspectivas de governo sério - e assim permaneceu até os dias de hoje.
Mas o que a caótica América Central de hoje tem a ver com a UFC do começo do século? Os presidentes podem não ser mais (todos) ditadores malucos, mas o modelo econômico continua. "Os países centro-americanos enfatizaram a exportação agrícola mesmo depois da democracia. O Estado não criou novas indústrias nem se diversificou", diz Steve Striffler, professor de antropologia da Universidade de Nova Orleans, nos EUA. Claro que há exceções, como a Costa Rica, que, mesmo depois de ocupada pela UFC, hoje tem o IDH mais alto do que o do Brasil. Ainda assim, a América Latina é responsável por 80% da produção mundial de banana.
O Haiti vive a pior situação do continente. O país continua plantando bananas, mas, apesar de ser um país essencialmente agrário, 50% dos alimentos para a população têm de ser importados. Isso porque o Haiti perde anualmente 36 mil toneladas de solo fértil devido à erosão. "A cada dia, o país acorda com um pedaço a menos", diz Lúcia Skromov, do Comitê pró-Haiti. 96% da vegetação original foi devastada durante os períodos de instabilidade política e exploração da agricultura. E é por isso que o país estava tão fragilizado quando o terremoto sacudiu Porto Príncipe: falta madeira para a construção, a maior parte era feita de barro ou de galhos. Ou seja, além do caos político e econômico, o Haiti caminha lentamente para virar uma espécie de ilha de Páscoa - que, de tão devastada por seus habitantes, acabou matando todos eles de fome. Se isso acontecer, nada mais vai nascer por lá. Nem mesmo as malditas bananas.
Uma história de fracasso
Entre tantos golpes e revoluções, o Haiti não parou para se desenvolver
1804
Uma revolta de escravos liberta o Haiti da colonização. Em troca, a França pede uma indenização que consome 80% do orçamento haitiano por quase 100 anos. Ou seja, o país já nasce endividado.
1915
Empresas americanas dominam a América Central para plantar bananas. Os EUA ocupam o Haiti e garantem a hegemonia dos mares para que ninguém domine o canal do Panamá na 1ª Guerra Mundial.
1957
Entre 1956 e 1957, 5 presidentes se revezam no governo do Haiti. O resultado é o golpe de François Duvalier, o Papa Doc, ditador que ficou 14 anos no poder e mandou matar 60 mil inimigos.
1990
As primeiras eleições democráticas são organizadas. O vencedor é Jean-Bertrand Aristide, que, já em 1991, é deposto por um golpe. Em 1994, EUA e ONU ocupam novamente o Haiti.
2004
O Brasil resolve liderar a missão da ONU no Haiti. Altruísmo? Não exatamente. O governo brasileiro quer provar que está pronto para assumir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.
2010
No dia 12 de janeiro, um terremoto destrói a capital, Porto Príncipe. A sede do governo, ministérios e 200 mil vidas vão parar debaixo dos escombros. O Haiti terá de se reerguer das ruínas e no meio de uma crise ambiental.
A maldição da banana
As plantações deixaram um rastro de pobreza nos países que as acolheram. Veja a porcentagem da população abaixo da linha da pobreza na América Central.
NICARÁGUA - 48%
GUATEMALA - 56%
HAITI - 80%
EL SALVADOR - 30,6%
HONDURAS - 50,7%
Para saber mais
Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World
Dan Koeppel, Hudson Street Press, 2007.
The History of Haiti
Steeve Coupeau, Greenwood, 2007.
Karin Hueck e Mauricio Horta
Um transatlântico de 300 metros se aproxima de uma praia tropical. Seus 3 400 passageiros estão há 5 dias viajando e dispõem de dezenas de atrações a bordo, de campos de minigolfe e paredes de escalada a shows de cabaré. Ainda assim, boa parte dos turistas resolve sair do navio e conhecer a praia de areia branca. Junto com eles, descem garçons e funcionários para abastecê-los com drinques e petiscos durante o banho de sol. Seria uma cena normal, apenas mais um passeio turístico no Caribe, se a praia paradisíaca não fosse Lavadee, o país onde ela se encontra o Haiti, e a data do passeio 17 de janeiro de 2010 - 5 dias depois de um terremoto matar 200 mil pessoas e devastar boa parte da pequena nação. No tremor de 7 graus, 250 mil casas foram destruídas, assim como quase todos os prédios do governo e os dois únicos postos de bombeiros do país. Durante semanas, o mundo se entristeceu com a situação precária do Haiti. Mas a notícia realmente triste é que o país não é uma aberração - é apenas o ponto mais baixo de uma região inteira problemática, a América Central. Ocupações externas, golpes de Estado, ditaduras: quase todos os países da região passaram por isso. E o que pouca gente sabe é que todo esse caos pode ter começado com uma inofensiva frutinha...
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A primeira vez que os americanos viram uma banana foi em 1876, na Exposição Centenária da Filadélfia. Na ocasião, a fruta não chamou muita atenção - até porque estava exposta ao lado do telefone de Graham Bell. Mas, 15 anos depois, a banana já tinha conquistado o coração dos americanos e era servida em restaurantes de Nova York. Fazia muito sucesso porque era prática: sua casca é uma embalagem natural que dispensa lavagem. Tinha o potencial de virar o Big Mac das frutas. E, de fato, logo virou: na década de 1930, a banana já era a fruta mais barata e consumida nos EUA. Mas como um produto tropical extremamente perecível podia ser abundante nos EUA? Graças a uma das primeiras multinacionais do mundo: a United Fruit Company, que, além de inventar um método de distribuição de frutas em larga escala, contribuiu para bagunçar a América Central.
Damn it! We have bananas
Nascida na véspera do século 20, a UFC controlou a produção, o transporte e o marketing da banana, com eficiência de relógio e agressividade para eliminar qualquer rival. O lugar escolhido para plantar a fruta foi a desabitada América Central, que oferecia o pacote completo: governos frágeis e terrenos tropicais disponíveis para latifúndios. Foi lá que a UFC deitou e rolou nos 35 anos seguintes. Nesse período, os EUA fizeram 28 operações militares na região, inclusive no Haiti. "O maior objetivo dessas incursões foi tornar a América Central segura para as bananas", escreve Dan Koeppel, escritor americano, autor de Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World.
O método que a UFC usava para dominar a região era simples. Com o intuito de modernizar os países, a empresa construía ferrovias e portos, e criava empregos locais. Aí vinha o pulo do gato: muitas vezes os governos não tinham dinheiro para pagar pelas regalias. Em troca, acabavam cedendo imensas extensões de terras férteis para a United Fruit Company plantar bananas, quase livre de impostos. Para que acidentes naturais ou greves não interrompessem o fluxo contínuo de frutas para os EUA, o jeito foi expandir o sistema para vários países ao mesmo tempo. Assim, a UFC exportou o modelo "ferrovias-em-troca-de-terra", inaugurado na Costa Rica, para Panamá, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Para os governos, o toma lá dá cá não soava como o fim da soberania, mas como a grande chance de modernização.
Banana pra dar e vender
O problema só ficou óbvio quando a UFC ficou maior do que os países onde atuava. "Não é bom para um país depender da exportação de um só produto", diz Marcelo Bucheli, professor de história da Universidade de Illinois, EUA. "E os países centro-americanos não só exportavam um ou dois produtos mas também eram controlados por uma ou duas companhias e exportavam para um ou dois países." Em 1930, a UFC era o maior empregador da região. Subornando governos, ditava leis trabalhistas, sonegava impostos e não permitia que pequenos produtores surgissem. Assim, a UFC pariu as "Repúblicas da Banana".
O Haiti recebeu indiretamente os tentáculos da UFC, por meio de uma de suas afiliadas, a Standard Fruit and Steamship Company, que se instalou por lá. Mas o que realmente atrasou a vida da nação foram as migrações em massa atraídas pela agricultura. O Haiti não oferecia infraestrutura e nem postos de trabalho para a população (aliás, nunca ofereceu) e 300 mil haitianos deixaram o país para trabalhar nas plantações vizinhas. Para piorar, na mesma época, uma intervenção americana ocupava o país e definia como deveria ser governado. Os líderes locais, em vez de elaborar um projeto para desenvolver a nação, lutavam entre si pelo poder - preferiam intervenções externas à possibilidade de ficar longe do governo.
A coisa desandou de vez quando, ao fim da 2ª Guerra Mundial, o mundo entrou na Guerra Fria. Em 1954, a CIA e a UFC derrubaram um governo eleito da Guatemala e instauraram uma ditadura. Começaram assim 4 décadas de guerrilhas de esquerda e ditaduras de direita na região, que mataram centenas de milhares de pessoas - 200 mil só de guatemaltecos. No Haiti, a instabilidade chegou ao seu auge: em dois anos, 5 presidentes se revezaram no poder. Para assegurar a influência capitalista na região, os EUA apoiaram o golpe político da família Duvalier (o maléfico Papa Doc e seu filho). Sessenta mil pessoas foram assassinadas durante sua ditadura. O pequeno país caribenho continuou sem perspectivas de governo sério - e assim permaneceu até os dias de hoje.
Mas o que a caótica América Central de hoje tem a ver com a UFC do começo do século? Os presidentes podem não ser mais (todos) ditadores malucos, mas o modelo econômico continua. "Os países centro-americanos enfatizaram a exportação agrícola mesmo depois da democracia. O Estado não criou novas indústrias nem se diversificou", diz Steve Striffler, professor de antropologia da Universidade de Nova Orleans, nos EUA. Claro que há exceções, como a Costa Rica, que, mesmo depois de ocupada pela UFC, hoje tem o IDH mais alto do que o do Brasil. Ainda assim, a América Latina é responsável por 80% da produção mundial de banana.
O Haiti vive a pior situação do continente. O país continua plantando bananas, mas, apesar de ser um país essencialmente agrário, 50% dos alimentos para a população têm de ser importados. Isso porque o Haiti perde anualmente 36 mil toneladas de solo fértil devido à erosão. "A cada dia, o país acorda com um pedaço a menos", diz Lúcia Skromov, do Comitê pró-Haiti. 96% da vegetação original foi devastada durante os períodos de instabilidade política e exploração da agricultura. E é por isso que o país estava tão fragilizado quando o terremoto sacudiu Porto Príncipe: falta madeira para a construção, a maior parte era feita de barro ou de galhos. Ou seja, além do caos político e econômico, o Haiti caminha lentamente para virar uma espécie de ilha de Páscoa - que, de tão devastada por seus habitantes, acabou matando todos eles de fome. Se isso acontecer, nada mais vai nascer por lá. Nem mesmo as malditas bananas.
Uma história de fracasso
Entre tantos golpes e revoluções, o Haiti não parou para se desenvolver
1804
Uma revolta de escravos liberta o Haiti da colonização. Em troca, a França pede uma indenização que consome 80% do orçamento haitiano por quase 100 anos. Ou seja, o país já nasce endividado.
1915
Empresas americanas dominam a América Central para plantar bananas. Os EUA ocupam o Haiti e garantem a hegemonia dos mares para que ninguém domine o canal do Panamá na 1ª Guerra Mundial.
1957
Entre 1956 e 1957, 5 presidentes se revezam no governo do Haiti. O resultado é o golpe de François Duvalier, o Papa Doc, ditador que ficou 14 anos no poder e mandou matar 60 mil inimigos.
1990
As primeiras eleições democráticas são organizadas. O vencedor é Jean-Bertrand Aristide, que, já em 1991, é deposto por um golpe. Em 1994, EUA e ONU ocupam novamente o Haiti.
2004
O Brasil resolve liderar a missão da ONU no Haiti. Altruísmo? Não exatamente. O governo brasileiro quer provar que está pronto para assumir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.
2010
No dia 12 de janeiro, um terremoto destrói a capital, Porto Príncipe. A sede do governo, ministérios e 200 mil vidas vão parar debaixo dos escombros. O Haiti terá de se reerguer das ruínas e no meio de uma crise ambiental.
A maldição da banana
As plantações deixaram um rastro de pobreza nos países que as acolheram. Veja a porcentagem da população abaixo da linha da pobreza na América Central.
NICARÁGUA - 48%
GUATEMALA - 56%
HAITI - 80%
EL SALVADOR - 30,6%
HONDURAS - 50,7%
Para saber mais
Banana: The Fate of the Fruit That Changed the World
Dan Koeppel, Hudson Street Press, 2007.
The History of Haiti
Steeve Coupeau, Greenwood, 2007.
Revista Superinteressante
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