Lorenzo Mammì
O Outono da Idade Média é um livro de escrita tão fluente e evocativa, que é fácil esquecer sua pregnância polêmica. Em parte, a responsabilidade é do próprio Huizinga. Formado em filologia indo-europeia, pertencente a uma geração moldada pelas poéticas simbolistas, chegou à história medieval por vias transversas, mais por gosto e oportunidade do que por formação sistemática. Um tom intuitivo e rapsódico permeia o livro. Não obstante, ou talvez justamente por isso, a obra prima de Huizinga é um texto de referência fundamental, não apenas para entender o período que aborda, mas também como testemunha do clima cultural em que foi escrita.
Saiu em 1919, intervindo numa questão candente da historiografia da época: a noção de Renascimento. A esse respeito, Jacob Burckhardt (A Cultura do Renascimento na Itália, 1860) estabelecera um paradigma que começava a ser questionado: para ele, a sociedade italiana dos séculos 14 e 15 produzira os primeiros "homens modernos", caracterizado por individualismo, relação desencantada com a natureza, independência em relação à religião, sentido da história, etc. Parecia uma descrição sólida. Mas, ao descer nos detalhes, embaçava. Todos os traços que Burckhardt indicara como típicos do homem renascentista podiam ser encontrados também em épocas anteriores. Outros aspectos marcantes, como a superstição e o gosto por complicadas alegorias, pareciam traços ainda medievais. O Renascimento seria realmente um fenômeno italiano? Como situar a extraordinária floração artística franco-flamenga, que é do mesmo período?
O ponto de partida da obra de Huizinga é justamente essa última interrogação. No ensaio incluído na edição brasileira, Anton van der Lam liga a origem do livro a uma grande exposição de primitivos flamengos, organizada em Bruges em 1902. É por volta dessa data que se começa a discutir a existência de um Renascimento nórdico, autônomo e concorrente em relação ao italiano. Huizinga escolhe o caminho oposto, mais ousado. A questão não seria incluir a cultura franco-flamenga na Renascença, mas mostrar como a Renascença permanecia, no fundo, medieval.
A primeira vista, sua posição não é conflitante, e sim complementar à de Burckhardt. O suíço foca sua atenção nas cidades-estados italianas; Huizinga escolhe o Ducado de Borgonha, última floração do feudalismo. Burckhardt acompanha a ascensão de uma nova classe dirigente que é fundamentalmente burguesa, mesmo quando se ornamenta de títulos nobiliários; Huizinga descreve uma aristocracia feudal se fechando paulatinamente em rituais e princípios que perderam sua função originária, e sobrevivem apenas como "jogos" magníficos. O conceito central de Burckhardt é "humanismo"; de Huizinga, "cortesia". Mas a separação não é tão fácil. Visto pela perspectiva de Huizinga, até o humanismo se torna um jogo cortês. O próprio conceito de "estado como obra de arte", central em Burckhardt, adquire outra coloração em Huizinga. Para o primeiro, era vontade de reconstruir a sociedade inteira, esquecendo o passado recente; em Huizinga passa a indicar uma estetização da vida, que encobrisse, sem modificá-la, a feiura do real. E nesse sentido, é claro, encontra-se também na cavalaria medieval.
A discussão teve outros protagonistas e reviravoltas. Pode-se dizer que se encerrou, ou ao menos foi colocada em novo patamar, apenas em 1957, com a publicação de Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, de Erwin Panofsky. Mas há outro aspecto do livro de Huizinga que destaca sua relevância histórica e sua atualidade: a valorização dos períodos de decadência como momentos em que as convenções culturais, se descolando de sua funcionalidade sócio-econômica, adquirem a forma de um jogo, válido apenas pelas regras arbitrárias que os participantes compartilham. É nesses momentos que os traços característicos de uma cultura mostrariam com mais clareza seu funcionamento. O gesto de Carlos o Temerário, último duque de Borgonha, que encontrou a morte numa guerra contra os Suíços que nada acrescentaria à riqueza de seu reino, era incompreensível para os italianos da época, dizia Burckhardt. Mas é justamente o ponto de vista de Carlos que Huizinga descreve.
Evidentemente, na base desse interesse está uma crise de confiança na racionalidade da história. Atrás do outono da Idade Média, entrevê-se o outono da belle époque. O próprio Huizinga, aliás, se encarregou de estabelecer a ligação (mesmo fingindo que não), numa conferência proferida em plena Guerra Mundial, sobre a importância de modelos semi-míticos nas decisões políticas. Não possui a potência sintética de Burckhardt, nem a precisão cirúrgica de Panofsky. É um historiador-esteta, de extraordinária sensibilidade. Mas toda a historiografia posterior, da arte e da cultura, lhe deve algo. Não é possível ler O outono da Idade Média sem reconhecer, por exemplo, na divisão dos temas e na própria estrutura do texto, uma antevisão do que será, mais tarde, a história das mentalidades da escola dos Annales.
LORENZO MAMMÌ É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA USP E CRÍTICO DE ARTE E DE MÚSICA
Jornal O Estadão
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