sábado, 6 de agosto de 2011

Duas teorias da mudança


Duas teorias da mudança
Enquanto pensadores do Iluminismo francês teriam se concentrado no poder da razão, os pensadores do Iluminismo britânico teriam enfatizado os limites da mesma

David Brooks - O Estado de S.Paulo
THE NEW YORK TIMES

Na época em que eu estava na faculdade, fiz um curso sobre o Iluminismo. Naquele tempo, quando as pessoas falavam no Iluminismo, em geral elas se referiam ao Iluminismo francês - pensadores como Descartes, Rousseau, Voltaire e Condorcet. Estes foram filósofos que confrontaram um mundo de superstição e feudalismo e tentaram expô-lo à esclarecedora luz da razão.

Inspirados pela revolução científica, eles depositavam grande fé no poder da razão individual para detectar o erro e chegar por meio da lógica à verdade universal.

Seu grande modelo era Descartes. Ele teve como objetivo propor o recomeço da compreensão humana. Abandonou os preconceitos acumulados do passado e construiu a partir do nada, erguendo uma certeza lógica sobre a outra.

Aquilo que Descartes fez pelo conhecimento, outros fizeram pela política: varrer para longe os antigos precedentes e escrever novas constituições com base na razão. Este foi o objetivo da Revolução Francesa. Mas não houve um único Iluminismo, com sede exclusivamente em território francês.

Houve um outro Iluminismo, centrado na Escócia e na Grã-Bretanha e liderado por David Hume, Adam Smith e Edmund Burke.

Como escreveu Gertrude Himmelfarb em seu livro de 2004, The Roads to Modernity (Os Caminhos da Modernidade, em tradução livre), se os pensadores do Iluminismo francês concentraram-se no poder da razão, os pensadores do Iluminismo britânico enfatizaram os limites da mesma.

Eles deram mais ênfase aos nossos sentimentos. As pessoas nascem com o desejo natural de ser admiradas e de ser dignas de admiração.

Nascem com emoções morais, um sentido de justiça e benevolência. Nascem também com paixões mais sombrias, como o amor próprio e o tribalismo, que prejudicam os empreendimentos racionalistas. Somos antes de mais nada criaturas emotivas, e a política não pode se esquecer disso.

Estas duas visões da natureza humana produziram diferentes atitudes diante da mudança política, articuladas brilhantemente por Thomas Paine e Edmund Burke. Suas opiniões são o objeto de uma soberba dissertação de Yuval Levin, da Universidade de Chicago, intitulada The Great Law of Change (A Grande Lei da Mudança, em tradução livre).

Como demonstra Levin, Paine acreditava que as sociedades existem num "eterno agora". O fato de algo existir há eras nada nos diz a respeito do seu valor. O passado está morto, e os vivos devem usar seu poder de análise para varrer para longe os arranjos existentes quando necessário, e refundar o mundo. Ele até sugeriu que as leis perdessem a validade após 30 anos, para que cada geração pudesse recomeçar.

Visões diferentes. Paine enxergava a Revolução Francesa e a Revolução Americana como modelos deste tipo de mudança radical. De acordo com ele, em cada um destes países os revolucionários deduziram certas verdades universais a respeito dos direitos do homem e então projetaram uma sociedade que se enquadrasse nelas.

Burke, que participou do Iluminismo britânico, tinha uma visão diferente acerca da mudança. Ele acreditava que cada geração é um pequeno elo na corrente da história.

Servimos como herdeiros da sabedoria das eras passadas e somos obrigados a transmiti-la adiante, um pouco melhorada, aos nossos descendentes. Esta sabedoria preenche as lacunas em nossa própria razão, pois as instituições antigas implicitamente encerram mais sabedoria do que qualquer indivíduo jamais poderia acumular.

Burke mostrava-se horrorizado diante da ideia de os indivíduos usarem a razão abstrata para varrer arranjos que resistiram ao teste do tempo.

Ele acreditava na reforma contínua, mas reforma não é novidade. Não se pode tentar mudar a essência fundamental de uma instituição. O que fazemos é modificá-la a partir de dentro, mantendo as partes boas e ajustando as partes que não estão funcionando.

Burke argumentava que a tentativa de recriar a sociedade a partir de planos abstratos produz como resultado todo tipo de novas dificuldades, porque o organismo social é mais complicado do que podemos adivinhar. Nunca poderíamos acertar todas as respostas no primeiro ensaio.

Burke também apoiou a Revolução Americana, mas tinha sobre ela uma opinião diferente daquela manifestada por Paine. Ele acreditava que o Parlamento Britânico tinha atropelado de forma irresponsável as liberdades ancestrais que os colonos aprenderam a desfrutar.

Os americanos buscavam preservar aquilo que tinham. Os americanos nunca conseguiram descobrir se são filhos do Iluminismo francês ou do Iluminismo britânico.

A fundação dos Estados Unidos foi uma ruptura radical ou um ato de preservação?

Isto foi objeto de disputa entre Jefferson e Hamilton, e é objeto de debates hoje, tanto entre os partidos quanto dentro de cada um deles.

Atualmente, se olhamos ao redor na política americana, vemos aqueles que se definem como conservadores radicais, que desejam acabar com cem anos de história e devolver o governo ao seu papel pré-industrial.

Vemos confiantes tecnocratas democratas que depositam imensa fé no poder dos funcionários do governo de usar a razão para controlar e reorganizar sistemas complexos.

Vemos polemistas da esquerda e da direita praticando um estilo de política jacobina altamente abstrato e ideológico.

Os filhos do Iluminismo britânico estão recuando. Ainda assim, resiste o teimoso fato da natureza humana. Os escoceses estavam certos, e os franceses, errados. E desta verdade nasce um estilo de mudança, estilo que enfatiza a modéstia, o gradualismo e o equilíbrio. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É AUTOR DE LIVROS SOBRE POLÍTICA AMERICANA E JÁ FOI CORRESPONDENTE NO ORIENTE MÉDIO E EM MOSCOUN
Jornal O Estadão

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