sexta-feira, 29 de julho de 2011

Fascismo à portuguesa


Reproduzido da Folha de S.Paulo, 20/03/2011

João Pereira Coutinho

Salazar – Biografia definitiva, de Filipe Ribeiro de Meneses, traz novos parâmetros para compreender a atuação do ditador português, que forjou seu poder com base na austeridade fiscal, na retidão moral e na mitologia colonialista do país. Enraizado na sociedade, seu ideal de “paz e sossego” engendrou um Estado “tão forte que não precisava ser violento”.

Quem foi Salazar? A pergunta é mais difícil do que parece e, quatro décadas depois da morte, é raro encontrar uma resposta racional entre os lusos. Para uns, Salazar foi o supremo responsável pela “longa noite fascista” em Portugal – uma ditadura iniciada em 1928, reconfirmada e reconfigurada em 1933, e a que só o 25 de abril de 1974 conseguiu pôr cobro. Para outros, Salazar encontra-se no extremo oposto: o homem que resgatou Portugal da falência económica e política da Primeira República (1910-26), relançando o país entre as nações respeitáveis da Europa. Salazar, nessa bondosa visão, era o homem austero, celibatário (um “monge voluntariamente castrado”, como diriam os seus detractores), que viveu modestamente e, mais importante ainda, morreu modestamente. Eis a visão hagiográfica que Franco Nogueira, diplomata português do Estado Novo, deixou para a posteridade na biografia em seis volumes que dedicou ao ditador.

Ambas as visões explicam pouco, ou nada: a recusa em olhar para Salazar com distanciamento e equilíbrio inscreve o ditador português na categoria da maldade absoluta – ou da bondade absoluta. Em qualquer dos casos, eleva-o acima do seu tempo e da particular história de Portugal no século 20.

A fé e as coisas da carne

Felizmente, essas expressões de irracionalismo têm mudado nos últimos anos, graças ao trabalho de uma nova geração de historiadores que, sem complexos ideológicos de esquerda ou direita, trabalham sobre Salazar e o Estado Novo de cabeça limpa. Mas, apesar de tudo, faltava ainda uma obra maior capaz de responder, muito prosaicamente, a duas ou três questões: de onde veio Salazar? Como se manteve no poder? Que herança deixou? Filipe Ribeiro de Meneses, sintomaticamente um “estrangeirado” que construiu a sua carreira na Irlanda, onde as polêmicas ideológicas sobre Salazar não chegam, escreveu uma monumental biografia de Salazar que ficará como um marco nos estudos sobre o homem e o seu regime: Salazar – Biografia Definitva [Leya Brasil, 816 págs., R$ 59,90]. Originalmente escrita e publicada em inglês, chega agora traduzida ao mercado brasileiro.

António de Oliveira Salazar (1889-1970) é um produto tipicamente português. O historiador Paul Johnson, no seu Modern Times, já notara com espanto que Salazar (e Marcelo Caetano, seu sucessor em 1968) constitui caso singular no código genético dos ditadores europeus, para não falar dos latino-americanos. Salazar não era um homem do Exército, nem aí fizera carreira, lealdades e glória. Também não emergira, como Hitler ou Mussolini, do bas-fond da agitação retórica e revolucionária das ruas, pronto para liquidar o liberalismo decadente. Salazar era um académico coimbrão, professor de Finanças Públicas, e até o fim cultivou essa imagem de rigor científico e distanciamento mundano, próprio de um scholar que contempla o mundo sub specie aeternitatis. Ribeiro de Meneses retoma igual observação e ela é mais do que uma simples referência à forma provinciana e reverente como os portugueses olham para os seus “doutores”.

Mas, antes da universidade, é importante esclarecer como esse destino esteve para não o ser. Nascido em 1889, na povoação do Vimieiro, no interior centro de Portugal, Salazar cresceu em família modesta, que cedo percebeu no filho um brilho intelectual distinto. Para o jovem António estava assim reservado o mecanismo tradicional de ascensão social das famílias pobres: o seminário e, logicamente, o sacerdócio. Salazar acabaria por abandonar essa vocação por razões nunca inteiramente explicadas. Para Ribeiro de Meneses, o jovem seminarista teria perdido a fé nas coisas do espírito; ou, em alternativa, teria sucumbido às coisas da carne. A verdade é que a paragem última da sua formação intelectual seria a Universidade de Coimbra, e não o seminário em Viseu.

Ambição crescente

E foi a partir da mais antiga universidade portuguesa que, em 1910, Salazar iniciou um caminho meteórico. O ano era especialmente significativo: a 5 de outubro era implantada a República e, com ela, o seu longo cortejo de instabilidade e violência. A experiência republicana foi marcante para Salazar: influenciado pelas encíclicas de Leão 13 e militando nas organizações académicas cristãs, ele não poderia assistir ao anticlericalismo republicano de forma neutra. Para o estudante, a defesa da Igreja católica não significava defender um retorno à monarquia, como se ambas estivessem umbilicalmente ligadas (eis a “armadilha”, explica Ribeiro de Meneses, em que Salazar nunca caiu). Defender a igreja era defender a sua integridade em face dos ataques da República.

Entender Salazar começa por ser, assim, entender a sua formação católica na construção de uma mundividência política. Mas Salazar é também o resultado do fracasso – político, económico e financeiro – da Primeira República, fracasso que o catapultou para o poder.

Faz parte da hagiografia salazarista pintar o ditador com as cores da relutância. Segundo a lenda, Salazar teria abandonado a contragosto a sua pacata vida universitária e as férias de verão na província para descer até Lisboa, aceitar a pasta das Finanças (duas vezes: em 1926 e 1928) e, finalmente, a condução do governo. O mito não sobrevive à realidade, escreve Ribeiro de Meneses: depois da insurreição do 28 de maio de 1926, que pôs termo à Primeira República pela instauração de uma ditadura militar, a ambição de Salazar foi crescente. A expressão tangível dessa ambição encontra-se no esforço pensado e sistemático para mostrar a incompetência técnica das lideranças militares, incapazes de devolver ao país um mínimo de sanidade financeira.

Mais que um mantra

Com uma mistura de falsa modéstia e pesado sarcasmo, Salazar propunha em artigos de jornal “rectidão fiscal, autonegação e sacrifício”, escreve Ribeiro de Meneses, uma terapêutica austera que era também austeramente cristã: contra o materialismo desenfreado, que apenas corrompia as bolsas e as vidas, seria necessário pregar a “simplicidade na vida pública”. Assim era na teoria, assim seria na prática: ao aceitar a pasta das Finanças em 1928, depois de uma experiência frustrada em 1926 que durara apenas cinco dias, Salazar sabia que o seu momento chegara. E que lhe cabia agora, perante uma casta militar que o olhava como um intruso, mostrar ao regime – e, sobretudo, ao país – a sua imprescindibilidade. Como escreve Ribeiro de Meneses, “a batalha do orçamento” seria o primeiro passo, e o mais importante passo, para construir o Estado Novo.

Nas discussões sobre o Estado Novo, tornou-se questão recorrente saber qual a natureza do regime. Seria o Estado Novo uma forma de “fascismo”? Ou seria uma forma de autoritarismo que não permite uma filiação plena ao fascismo italiano? Filipe Ribeiro de Meneses revisita a questão mas, felizmente, não perde tempo com ela. O Estado Novo não teria sido possível se a “ditadura das finanças”, entre 1928 e 1932, não tivesse apresentado vitórias claras no controlo do défice fiscal e na garantia da solvência do país, dois problemas crónicos da República e que a I Guerra Mundial (1914-18) apenas agravou. A partir de 1930, esse passou a ser o problema premente para o “ditador das finanças”, explica Ribeiro de Meneses: deveria a ditadura militar regredir para a situação anterior a 1926, o que significaria sacrificar os ganhos económicos e financeiros entretanto obtidos? Ou implicava avançar para uma nova ordem onde o Estado e a nação se reconciliassem?

A resposta de Salazar enfrenta os dilemas teóricos sobre a natureza do seu regime. “Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento?” Eis um mantra que é mais do que um mantra. É a autobiografia do Estado no Estado Novo.

Foto de Mussolini

Salazar era um leitor atento, desde a juventude, de Charles Maurras, a figura cimeira da Action Française, movimento contrarrevolucionário que, através de uma publicação com o mesmo nome, defendia em Paris a restauração monárquica. Mas, se partilhava com o teórico francês a mesma disposição iliberal, não poderia subscrever, na teoria ou na prática, a noção de la politique d´abord, a política em primeiro lugar. Como sustenta Ribeiro de Meneses, ao recusar o carácter revolucionário, perfectibilista e violento dos “fascismos” europeus, Salazar relembrava ainda, numa posição marcada pela formação cristã, que existiam limites morais e até espirituais para a acção do Estado. O antissemitismo da Action Française, para não falar das teorias rácicas e genocidas do Terceiro Reich, eram-lhe estranhas.

O regime nunca hesitou em prender e punir severamente os seus opositores, é certo; mas a ideia, tão cara aos totalitarismos nazifascistas, de que a política deveria dominar absolutamente todos os aspectos da existência, afigurava-se para Salazar como uma repetição extremada (e à direita) da desastrosa experiência republicana (de esquerda). Não repetir os erros de 1910-26 passava, assim, por retirar a política das ruas, dos jornais e das preocupações diárias dos indivíduos. O salazarismo, mais do que uma forma ativa de política, era uma forma de negar a política no que ela tinha de potencialmente conflituoso. “Viver habitualmente” era uma garantia de paz no país e de sobrevivência para o regime.

Sobrevivência: o Estado ditatorial que a Constituição de 1933 consagrou e em que Salazar era, finalmente, o primeiro-ministro de um “monarca” absoluto (o “monarca” era uma alusão metafórica ao presidente da República, que em teoria o poderia sempre demitir) passou a considerar a sobrevivência do regime como prioridade indistinguível da sobrevivência da nação. E não deixa de ser irónico que a principal ameaça interna, nos primeiros anos do regime, tenha vindo da direita. O Movimento Nacional-Sindicalista, apesar das suas iniciais juras de fidelidade a Salazar, esperava, no entanto, ver no ditador o tipo de carisma “radical” (leia-se “fascista”) que era possível admirar em Mussolini. Salazar tinha uma fotografia do duce sobre a mesa de trabalho; por que motivo não poderia imitar-lhe o programa e o modo de acção?

“Duplicidade jesuítica”

Ao repto respondia Salazar: “Mussolini, digo eu, é um grande homem, mas não se é impunemente da terra de César e de Maquiavel!” A frase transporta um elogio, mas também uma justificação: Salazar não era um César nem um Maquiavel. E o seu comportamento público denuncia-o: as aparições públicas não abundavam; as grandes multidões não condiziam com o seu temperamento reservado; e, sobre as qualidade oratórias, dizia o sucessor, Marcelo Caetano: tinha “uma voz de velha”.

Aos apelos de radicalização do regime rumo a um verdadeiro fascismo, Salazar respondeu com uma mistura de sedução e violência que liquidou o nacional-sindicalismo dos Camisas Azuis. O ditador soube cooptar os mais moderados para o regime, ao mesmo tempo em que reprimia os recalcitrantes. As ameaças, porém, não eram apenas internas – ameaças que a censura e a polícia política tratavam com os respectivos métodos. Na década de 1930, com uma Europa que caminhava para a guerra total, as ameaças eram também externas e exigiam um esforço diplomático ímpar para garantir a sobrevivência física do país – e do regime.

O primeiro teste viria com a Guerra Civil espanhola (1936-39): seria possível a Portugal evitar a contaminação republicana que provocara em Espanha a sublevação dos nacionalistas? Salazar entendeu que sim, mas apenas se Franco estivesse disponível para ver em Portugal um aliado à altura. Não apenas um aliado diplomático, capaz de serenar o Reino Unido e de convencê-la da importância do caudilho como barreira necessária contra o avanço da “ameaça vermelha” na Europa.

Como escreve Ribeiro de Meneses, “é o tratamento dos refugiados republicanos espanhóis que mais ensombra a reputação de Salazar neste período”. Ou porque eram presos ao cruzar a fronteira portuguesa; ou porque eram devolvidos à procedência, onde um funesto destino os esperava. A Guerra Civil espanhola foi a antecâmara do enfrentamento mundial de 1939-45; e também nesse contexto os objectivos de Salazar permaneceram inalterados: garantir a integridade do país, só possível por uma frágil e engenhosa neutralidade. As páginas de Ribeiro de Meneses sobre a estratégia de Salazar – na qual era imperioso “esconder intenções”, “ocultar ressentimentos”, “a todos parecer amigo”, fosse pela venda de tungstênio às fábricas de armamento alemãs, fosse pela cedência das bases militares dos Açores aos aliados – são bem o exemplo da “duplicidade jesuítica” que, não raras vezes, levava ambas as partes do conflito ao pasmo e à exasperação.

Irremediável declínio

Como teria sido a biografia de Salazar e a avaliação do seu legado se, finda a II Guerra Mundial, o ditador tivesse promovido a abertura política do regime e, quem sabe, o seu voluntário afastamento? A pergunta tornou-se um cliché nos debates sobre o Estado Novo; um cliché que se multiplica em novos clichés: ao afastar-se, em 1945, Salazar talvez seria visto como o homem providencial que endireitou as finanças de Portugal e depois garantiu a sua paz durante o conflito. Acontece que a pergunta tem pouca relevância histórica, excepto para quem alimenta um gosto particular pela “história alternativa”: a neutralidade portuguesa na Guerra e a vitória dos aliados transportava consigo novos desafios para Salazar.

Com a emergência de dois blocos ideológicos na Guerra Fria, Salazar entendia que era sua missão evitar as nefastas influências desses polos antagónicos. Cabia-lhe a ele suster em Portugal a ameaça soviética que descia sobre metade da Europa; mas também garantir que o país não seguiria os apelos das “democracias parlamentares” para que seguisse o ideário de Washington.

Essa relutância antidemocrática de Salazar não sinaliza apenas a incapacidade do ditador para entender as profundas mudanças por que passava o Ocidente. Ela marca o princípio do seu fim e, como o próprio diria, nada resume tão bem essa fatalidade como uma única palavra: África. Como foi possível a um pequeno país travar uma guerra em três cenários longínquos e distintos (Angola, Guiné-Bissau, Moçambique), estando “orgulhosamente só” no concerto das nações? A resposta mais breve seria: não foi e não era. Mas as guerras africanas, que tiveram início em Angola em 1961, respondiam a uma visão idealizada de Salazar sobre o papel de Portugal no mundo: as colónias eram a expressão material da missão civilizadora da pátria; sem colónias, Portugal (e a Europa) estaria condenado a um irremediável declínio.

“Um certo cansaço”

O fracasso de Salazar foi duplo: incapaz de entender que a manutenção das colónias seria inviável – e que caberia, portanto, uma transição possível e ordeira para uma autonomia negociada –, sua obstinação não se traduziu numa defesa eficaz das colónias quando as populações brancas se viam rodeadas pela violência e a agressão dos rebeldes.

São notáveis as páginas que Ribeiro de Meneses dedica a esse trágico paradoxo: o de um velho ditador condenado a defender as colónias, mas incapaz, ou indisponível para as defender efectivamente. “A guerra não se sobrepôs a uma regra básica da vida portuguesa desde 1928”, escreve o historiador: “um orçamento equilibrado era a pedra angular da política pública”. É difícil ler essa frase de estômago intacto e pensar nos milhares de mortos e feridos que a guerra provocou entre 1961 e 1974.

Salazar morreu em 1970. Mas, politicamente falando, a morte veio dois anos antes, quando sofreu um acidente vascular cerebral do qual nunca se recuperou. Ou talvez tenha vindo em 1961, com a perda de Goa, Damão e Diu para a União Indiana; com o início das guerras coloniais africanas; e com episódios mais domésticos, como a frustrada tentativa de golpe perpetrada pelo seu próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz.

O ano de 1961 não foi apenas um annus horribilis para Salazar, a que nem sequer faltou o mediático assalto ao transatlântico Santa Maria por Henrique Galvão, um velho inimigo do regime. Naquele ano, conta Ribeiro de Meneses que o ditador teria recebido uma lista, provavelmente elaborada pela polícia política, onde se arrolavam os principais queixumes dos portugueses face ao regime. Um deles consistia no seguinte: “Um certo cansaço da paz e do sossego gozados há tantos anos.”

Paz e sossego. Como nos cemitérios. As virtudes que Salazar perseguira com ditatorial intransigência eram as mesmas que o acabariam por enterrar.

João Pereira Coutinho é jornalista, escritor e doutor em História pela Universidade de Coimbra

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A EXPANSÃO DO LATIM COMO LÍNGUA IMPERIAL


A EXPANSÃO DO LATIM COMO LÍNGUA IMPERIAL

Adalto Guesser
Doutoramento em poscolonialismos e cidadania global do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Mestre em sociologia política pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: adalto@adaltoguesser.net

A primeira língua imperial de que temos registros no Ocidente é o latim, que deve ter surgido por volta do século VII a.C., na região denominada Lácio, correspondente ao Vetus Latinum, pequena fração do que hoje é a Itália. O latim se espalhou pelo mundo de maneira progressiva e vertiginosa. A sua expansão se deve exatamente pelo fato de o Império Romano utilizá-la como língua oficial. Com o aumento da influência militar e política de Roma, o latim foi crescentemente difundindo-se tanto nas cidades como nas zonas rurais, mesmo que com características dialetais próprias (Dessales, 2006). Lentamente, o latim foi dando origem a grande número de línguas européias, denominadas românicas, ou neolatinas, como o português, o espanhol, o francês, o italiano, o romeno, o galego, o occitano, o rético, o catalão e o dalmático (já extinto).

Existe uma série de datas históricas que podem servir de marcos para o expansionismo do latim, todas elas, porém, estão vinculadas com a expansão de Roma*. O uso do latim teve grande influência em todo o mundo, sendo utilizado como a língua de comunicação oficial do Império Romano. Outro fator que contribuiu muito para a vulgarização do latim foi ele ter sido decretado língua oficial da Igreja Católica do Ocidente, após o grande cisma, no início do século XI**. A igreja do Ocidente passou a chamar-se Igreja Católica Romana, por ter sua sede em Roma, na figura do papa, e aos poucos deixou de utilizar o grego, que era a sua língua oficial, para utilizar o latim, de uso corrente no Império. Este fato tornou o latim obrigatório em todos os cultos oficiais até meados do século XX. Entretanto, a época áurea do latim no Ocidente deu-se a partir do século XV, com seu redescobrimento pelos eruditos do Renascimento. O seu valor como meio de transmissão de conhecimentos e tradições é incalculável para a história da humanidade, mas o seu uso na atualidade está cada vez mais residual e, embora ainda seja considerada a língua oficial do Vaticano, é utilizado apenas para ritos religiosos e comunicações escritas muito específicas. No próprio Vaticano, a língua corrente no quotidiano é hoje o italiano.

* Em 241 a.C. a Sicília se torna província romana; em 238 a.C. também a Sardenha e a Córsega; em 197 a.C. a Espanha; em 146 a.C. A África; em 167 a.C. a Ilíria; em 120 a.C. a Gália Meridional; em 50 a.C. a Gália Setentrional; em 15 a.C. a Retia e por último, em 107 d.C. sob Trajano, a Dácia. Dados obtidos na Wikipédia, em 14/06/2006, verbete: Latim, disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Latim.
** O Cisma Ocidente-Oriente, Cisma do Oriente ou simplesmente Grande Cisma foi a cisão entre a igreja Oriental Bizantina (Ortodoxa) e a Ocidental (Romana), que se tornou definitivo em 1054. As tensões entre as duas igrejas datam no mínimo da divisão do Império Romano em Oriental e Ocidental, e a transferência da capital da cidade de Roma para Constantinopla, no século IV (SANTIAGO et alli, 1990).

No início do desenvolvimento científico do Ocidente, como as universidades e em geral a educação formal estavam diretamente ligadas à Igreja, o latim também desempenhou neste campo forte influência. A língua do conhecimento era a língua da religião*, ou seja, o latim. É por isso que o latim vulgar continuou a ser usado por grandes eruditos até o século XVII, como, por exemplo, Isaac Newton. O declínio na área da ciência começou a se intensificar a partir da segunda metade do século XVIII, com o desenvolvimento do Iluminismo europeu.

O latim é uma brilhante demonstração de poder que uma língua possui quando inserida em um contexto imperial. Entretanto, como já foi dito, o tempo áureo do latim também foi o período em que este esteve vinculado ao Império Romano, ou ao seu braço mais forte, a Igreja Católica. Cabe ressaltar o papel que a Igreja desempenhou neste campo, perpetuado mesmo depois do final do imperialismo político de Roma. Isso reforça a tese de Hardt e Negri (2001), que, ao conceituar o Império, estabelecem-no como uma rede de elementos capazes de garantir um dado controle e uma dada hegemonia, sem delimitar-se a um estado específico ou a determinado território. Neste sentido, podemos pensar que o poder que a Igreja Católica Romana desempenhou no Ocidente até o século XVIII foi imperial. Um imperialismo religioso. É possível perceber, também, neste caso específico, que as relações de dominação e controle imperial não terminam com o final do período imperialista de uma dada hegemonia. As zonas de contato e de permanência das relações moldadas pelo império perduram por muito tempo, até serem substituídas por novas formas em um regime subseqüente, pois os elementos que compõem determinado império são muito mais que políticos, são também ideológicos, culturais e epistemológicos.

* Este fato tem a ver com a cosmologia que se tinha, na época, de “conhecimento”. Fundada em preceitos judaico-cristãos, existia a idéia difusa de que todo conhecimento e toda forma de conhecer só poderiam advir de Deus, criador de todas as coisas.
Parte integrante do artigo A diversidade lingüística da Internet como reação contra-hegemônica das tendências de centralização do império
http://revista.ibict.br

terça-feira, 26 de julho de 2011

A LÍNGUA-DE-SANTO


Yeda Pessoa de Castro
A INFLUÊNCIA DE LÍNGUAS A F R I C A N A S NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Subjacente a esse processo, é notável o desempenho sociolingüístico de uma geração de lideranças afro-religiosas que sobreviveu a toda sorte de perseguições e é detentora de uma linguagem litúrgica de base africana, cujo conhecimento é veículo de integração e ascensão na hierarquia sócio-religiosa do grupo, porque nela se acha guardada a noção maior de segredo dos cultos.
Essa língua-de-santo é a fonte atual dos aportes lexicais africanos no português do Brasil, e a música popular brasileira é, hoje, o seu principal meio de divulgação, em razão de muitos dos seus compositores serem membros de comunidades afro-religiosas, como o foi Vinicius de Moraes e, atualmente, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros de igual grandeza, entre os quais os compositores de blocos afros e afoxés da Bahia. Exemplo relevante é a palavra axé (de étimo fon/iorubá), os fundamentos sagrados de cada terreiro, sua força mágica, usada como termo votivo equivalente a “assim seja”, da liturgia cristã ou então “boa-sorte”, que terminou incorporada ao português do Brasil para denominar um estilo de música de sucesso internacional, tipo “world-music”, produzida na Bahia e conhecida por todos como “axé-music”.

A LÍNGUA-DE-SANTO


Yeda Pessoa de Castro
A INFLUÊNCIA DE LÍNGUAS A F R I C A N A S NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Subjacente a esse processo, é notável o desempenho sociolingüístico de uma geração de lideranças afro-religiosas que sobreviveu a toda sorte de perseguições e é detentora de uma linguagem litúrgica de base africana, cujo conhecimento é veículo de integração e ascensão na hierarquia sócio-religiosa do grupo, porque nela se acha guardada a noção maior de segredo dos cultos.
Essa língua-de-santo é a fonte atual dos aportes lexicais africanos no português do Brasil, e a música popular brasileira é, hoje, o seu principal meio de divulgação, em razão de muitos dos seus compositores serem membros de comunidades afro-religiosas, como o foi Vinicius de Moraes e, atualmente, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros de igual grandeza, entre os quais os compositores de blocos afros e afoxés da Bahia. Exemplo relevante é a palavra axé (de étimo fon/iorubá), os fundamentos sagrados de cada terreiro, sua força mágica, usada como termo votivo equivalente a “assim seja”, da liturgia cristã ou então “boa-sorte”, que terminou incorporada ao português do Brasil para denominar um estilo de música de sucesso internacional, tipo “world-music”, produzida na Bahia e conhecida por todos como “axé-music”.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Nova fase História Viva

Estamos de volta...

Textos inéditos
Imagens na história
Semana Histórica
Indicações de leitura
Blogs da semana

Eduardo Marculino

AS MÁSCARAS AFRICANAS E SUAS MÚLTIPLAS FACES


AS MÁSCARAS AFRICANAS E SUAS MÚLTIPLAS FACES

Luzia Gomes Ferreira
ayeomi@hotmail.com
Universidade Federal da Bahia


Em lugar de negar-lhes a história faríamos melhor se ouvíssemos as histórias que têm para contar. E quando o fizermos é possível que suas artes venham a ser, não as 'artes dos povos sem história’, mas sim as 'artes dos povos com outras histórias'.
Sally Price

INTRODUÇÃO

Os diversos povos africanos, através das suas manifestações artísticas, possibilitaram aos ocidentais uma nova concepção de arte e do belo. Por ser a arte africana muito ampla, a obra de arte a ser priorizada nesse trabalho serão as Máscaras Africanas, especificamente as Máscaras Geledés.
Esse trabalho pretende, a priori, fazer uma abordagem sobre as características da arte africana, e identificar de que forma essa arte está apresentada nos livros de História da Arte. No segundo momento irá se analisar as Máscaras Geledés evidenciando a importância da mulher na sociedade yorubana, de que forma as máscaras são usadas nos rituais da Sociedade Geledé e qual a sua função. Também será realizada uma análise sobre o processo de releituras das máscaras africanas, na Bahia através do Folguedo Zambiapunga e o Candomblé dos Egunguns.

ARTE AFRICANA
A África desempenhou um importante papel na História da Humanidade, uma vez que, neste continente foram encontrados os primeiros vestígios do ser humano na terra. Através desta constatação fica evidente que as produções artísticas dos diversos povos africanos, é uma das mais antigas do mundo. Há estudos que comprovam a existência de pinturas rupestres na Namíbia que datam vinte mil anos; e que no norte da Nigéria, no primeiro milênio a.C, já se produziam esculturas de terracota. 1
A arte africana possui características que lhes são peculiares. A obra aparece como um bem coletivo útil e sagrado, no qual está inserido no cotidiano das pessoas que a produz; o “belo” deve ser apreciado por todos; e não por um grupo seleto, como acontece na sociedade ocidental.
A arte ocidental é uma criação individual, em que o artista tem que expressar toda sua individualidade para se destacar dos demais.
As características tão singulares da arte africana fizeram com que durante muito tempo ela fosse vista pelo ocidente como uma "arte inferior". Não se considerou o fato de que a arte por ser produção humana, é diversa. Os ocidentais analisavam a obra de arte africana dentro dos seus próprios parâmetros, dentro da sua concepção do "belo universal". Mas, como afirma o professor Sodré: "A arte africana é uma outra forma de manifestação da sensibilidade humana, tão variável quanto à diversidade cultural do nosso planeta”.2 ·
Ou segundo Salum:

'Étnica', religiosa – toda arte ameaçada pela anulação dos seus autores é codificada de simbólica. Porém, a arte de origem, da África, e a arte negra do aqui-agora constituem uma criação ontológica, e não social propriamente. É uma arte em que a figura humana é plena e revestida de totalidade. Ideológica ou não, sua genuidade está na reflexão-do-homemsobre-o-homem-pelo-homem, dentro de um ideário cultural, sim, o que não quer dizer que não haja diferenças na arte negra, tradicional ou moderna – nem da África, nem do Brasil.
Isso explica o problema da individualidade na arte africana e na arte negra, sempre considerada em seu caráter 'coletivo' sociológico, e por isso diminuída em seu valor estético-artístico na concepção branca-colonial-européia.3

No tocante, a História da Arte pode-se perceber que geralmente a arte negra africana não aparece nos livros de História da Arte, e, quando aparece não é contextualizada lhe são atribuídos adjetivos como; “fetichista, primitiva, exótica”, exceto a arte egípcia, que apesar do Egito ser um país do continente africano, os ocidentais durante muito tempo o trataram como “não-África” e, quando começaram a tratá-lo como um país africano, tentou induzir a um pensamento de que os povos egípcios eram “superiores” aos demais povos africanos.
No século XIX, irá se intensificar a difusão de teorias como a do filósofo Hegel, em que ele afirmava que a "África não tem história". Outros teóricos afirmavam que as manifestações artísticas como as construções arquitetônicas dos grandes reinos africanos, por exemplo, foram feitas por outros povos que não africanos.4
Muitas dessas teorias criadas no século XIX, ainda permeiam o pensamento ocidental na atualidade. Muitos historiadores da arte, ainda se deixam influenciar por essas concepções de “inferioridade da arte africana”:

O venerável pai da História da Arte em nossos dias, Ernest Gombrich, expressa também algo parecido a um assombro quando chega o momento de falar dessas 'outras' classes de arte. No primeiro capítulo de The Story of Art, outro texto muito usado nos cursos introdutórios das universidades, as classifica de 'estranhos começos' e as compara com a infância de complexos artísticos mais 'maduros'. Os adjetivos que utiliza para descrevê-las são 'estranho', 'raro', 'contra-natural', 'absurdo', 'curioso', 'irracional'; os povos que as
produzem são 'crianças', suas atividades são 'teatro' e seu estado mental é de um 'conto de fadas' ou de um 'mundo de sonho'. Aqui, portanto, a colocação cronológica está clara: se cremos em Gombrich, se trata da expressão criadora no nível mais infantil da humanidade.5

Outro ponto importante, é que devido ao fato da arte africana e a religiosidade estarem intimamente interligados, criou-se segundo Price: “... a difundida idéia no ocidente de que os povos das chamadas sociedades tribais não têm consciência de sua própria história da arte, nem conversam especificamente sobre ela”.6
Pode-se notar que a arte africana durante muito tempo ficou excluída do cenário da arte ocidental; e no momento em que ela começou a fazer parte desse cenário, foi de forma estigmatizada. Os grandes artistas considerados “mestres da arte universal” como o Picasso, Cézanne e o Mondiglianni, criaram obras em que são perceptível nitidamente traços da arte africana, como é caso da Mademoiselles D’Avignon, obra do Picasso considerada o ícone do Cubismo, que possui características estéticas das Máscaras Africanas. Ainda assim; ao invés de
levar em consideração que esses artistas tenham se deixado influenciar por uma arte que traz uma outra releitura do belo, uma forma diferente de interpretar o mundo, e que eles foram privilegiados por ter essa sensibilidade, coloca-se esse fato como uma espécie de “apoio” para a arte africana. Mas vale evidenciar o que Sodré afirmou sobre essa questão: "Vale ressaltar que, apesar da sensibilidade do mestre Picasso vislumbrar na produção estética africana um potencial inovador, a arte africana já era arte por suas características contextuais e parâmetros artísticos”.

MÁSCARAS GELEDÉS

Antes de se fazer à abordagem específica sobre as Máscaras Geledés, falar-se-á, das Máscaras Africanas de uma forma generalizada.
As Máscaras nas comunidades africanas, geralmente estão ligadas a rituais religiosos, de guerra, de fertilidade da terra e até mesmo de entretenimento, elas são criadas para serem vistas em movimento. Diferentemente das máscaras da sociedade ocidental, para as comunidades africanas toda a indumentária que cobre o corpo do mascarado é considerada máscara; e geralmente são os homens quem dançam mascarados.
Quando esculpidas, as máscaras africanas não representam fielmente rostos humanos como em outras sociedades; e sim, nas suas representações elas vão transcender o plano terreno, elas são produzidas de forma que se perceba a sua ligação com o sobrenatural, com o divino. Mas, para as máscaras alcançarem o seu significado aqui na terra, elas precisarão do corpo humano, é o corpo desse ser que irá intermediar essa relação entre o mundo físico e o não físico. Essa concepção fica explícita na citação abaixo:

A máscara africana não representa, presentifica, Lucien Stephan define a presentificação como ‘a ação ou operação por meio da qual uma identidade pertencente ao mundo invisível se faz presente no mundo visível dos seres humanos.’ A máscara e o corpo do dançante não simulam ser, são: ancestral masculino e feminino, caos e força da energia cósmica controlada no espaço ritual, bruxa ou espírito benéfico [...] o outro sobrenatural se incorpora, mística do corpo e do rosto mascarado.

As máscaras africanas geralmente são esculpidas em madeira, a sua confecção passa por rituais desde a escolha de quem vai confeccioná-la até o ritual de purificação pelo qual o escultor irá passar, para que possa a partir daí, nascer uma nova máscara em substituição de outra.
Quando essas máscaras estão expostas em algum museu, toda essa sacralidade não é visível aos olhos do público, as pessoas só podem observá-las enquanto escultura, mas, a estética dessa escultura tem algo de diferente como explica Luz:


As esculturas africanas em geral se caracterizam basicamente por expressarem
esteticamente um conceito, uma idéia, uma essência, para além da aparência 'realista', referem-se um repertório de signos que muitas vezes se expressam em formas abstratas geométricas e exploram um espaço multidimensional. As esculturas representam e invocam uma visão do mundo, materializam forças invisíveis, representando-as . É a 'escultura dos signos', como se referiu Ola Balogun. 9

Dentre os vários rituais em que são usadas as Máscaras Africanas, está o ritual da Sociedade Geledé, sociedade esta, composta e presidida apenas por mulheres a partir dos quarenta anos. Os rituais dessa sociedade acontecem na região que atualmente se encontra a Nigéria, que é uma região yorubá:

A Sociedade Geledé é composta por mulheres acima da idade da menopausa. Elas são
consideradas Iya-mi, nossas mães. Como tal são temidas como aje (feiticeiras). As pragas duma mãe são as mais temidas nas sociedades Yorubá.O poder das mulheres mais velhas na Sociedade Yorubá é essencialmente ligado a menopausa. A menstruação é concebida como o poder generativo da mulher.
Nessa concepção, o sangue da menstruação leva todas as impurezas perigosas para fora da mulher. Quando a menstruação pára, esse sangue é guardado dentro da mulher formando um reservatório de poder antigerativo e anti-conceptivo, ou seja, o poder de destruir, jogar pragas e fazer feitiços.
A Sociedade Geledé é mais forte na região Ketu que estende para os dois lados dafronteira entre o Benin e a Nigéria.10

No relato acima, quando o autor se refere à região "Benin-Nigéria", ele está falando do atual Benin. Sobre a Sociedade Geledé há vários contos, como o narrado pelo Maucler e Moniot:

A sociedade Guelede deve apaziguar as 'Mães'. Entre as mulheres há feiticeiras que envenenam as crianças, e tornam as outras mulheres estéreis. As mães, por outro lado, são também a força benéfica feminina, generosa e progentitora. Esta força é o aspecto duplo do poder espiritual das mulheres, a que o culto guelede se devota, embora os intervenientes actuantes sejam as orações. A 'Mãe Grande', aparece mascarada de mulher barbuda ou de pássaro. E principalmente Efé, um ser mascarado vindo do além, aparece e canta acompanhado por um trio de tocadores de tambores e membros da sociedade, o qual tem o poder de neutralizar os malefícios dos feiticeiros. No dia seguinte, na fase diurna, os mascarados Guelede saem e dançam em grande número. Desta vez é o divertimento dos espectadores que conta e a atmosfera é de descontração.
A fecundidade e a maternidade inspiram muitas destas máscaras, e também uma galeria de retratos típicos, com expressões fisionómicas relistas: o jovem, a rapariga galante, o sedutor, o comerciante, o iniciado no culto do deus Xangu [...] As sociedades Gueledes mantêm assim uma produção importante e sempre renovada de máscaras em madeira.11

Veja-se a análise da Ribeiro sobre a Sociedade Geledé:

De acordo com a autora, a sociedade das Geledés, simboliza aspectos coletivos do poder ancestral feminino é dirigida 'pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta.' 12

Através das citações acima, nota-se que os autores fazem referência ao poder feminino ancestral e ao fato das Geledés serem temidas na comunidade Yorubá. Diferentemente da sociedade ocidental, também se percebe que a Mulher na sociedade africana tem papel de destaque, pois para essas comunidades, a mulher é o ser que gera a vida como afirma Lopes:

Sem o poder feminino que tem a mulher, sem o princípio de criação não brotam plantas, os animais não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem a mulher não existe vida, devendo por isso a mulher ser reverenciada e neste culto Gélèdes temos representada a relação com a reverência que os homens têm para com as mulheres, já que somente elas criam, transformam, modificam, as coisas.1

Devido ao temor, prestígio e respeito que as mulheres da Sociedade Geledé possuem nas comunidades yorubanas, nos rituais em que são utilizadas as máscaras, quem dançará mascarado serão os homens:

Os mortos do sexo feminino recebem o nome de Ì yámi Agba (minha mãe anciã), mas, não são cultuados individualmente. Sua energia como ancestral é aglutinada de forma coletiva e representada por Ì yámi Oxorongá chamada também de Ì yá Nia, a grande mãe. esta imensa massa energética que representa o poder da ancestralidade coletiva feminina é cultuada pelas 'Sociedades Gëlèdé', compostas exclusivamente por mulheres, e somente elas detêm e manipulam este perigoso poder. O medo da ira de Ì yámi nas comunidades é tão grande que, nos festivais anuais na Nigéria em louvor ao poder feminino ancestral, os homens se vestem de mulher e usam máscaras 14

É evidente que no continente africano são diversos os rituais em que as Máscaras são utilizadas, nesse trabalho falou-se apenas das Máscaras que são usadas nos rituais da Sociedade Guelede. Um dos fatos mais importante que já foi mencionado nesse trabalho, mas que será retomado novamente nesse parágrafo; é que através da estrutura política e dos rituais dos mascarados na Sociedade Gueledé, fica explicito a importância da mulher para as comunidades yorubás na África. Trazendo esse aspecto para ao contexto brasileiro, em que se instituiu uma sociedade patriarcal e cristã que por sua vez, se tornou uma sociedade machista, fazendo com que em pleno século XXI o machismo ainda impere na sociedade brasileira, percebe-se que nas Comunidades de Santo ainda se preserva o respeito e a admiração pela Mulher. São as mulheres que quase sempre presidem esses Terreiros, ainda são elas as responsáveis pelos saberes e ensinamentos ancestrais; e a relação que elas estabelecem com os homens não é uma relação de superioridade, mas, sim, de complementaridade entre os dois gêneros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório o quanto de belo há na arte africana, mesmo que nesse trabalho apenas se tenha estudado uma das suas várias formas de produção e manifestação artística. As máscaras africanas enquanto obras de arte possuem uma função eminentemente social.
Quando os africanos de diversas partes da África chegam ao Brasil na condição de escravos, eles trazem consigo toda uma ancestralidade que será expressa nas variadas manifestações culturais e religiosas que eles recriam em território brasileiro. Segundo Oliveira, "na Diáspora africana o que vem para o Brasil não é a estrutura física-espacial das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-africanos”.15
Ele também afirma que: "São aspectos civilizatórios característicos da cultura negra, reconstruída no contexto brasileiro, preservando, entretanto, sua matriz africana”. 16
No Brasil não irá se encontrar rituais com máscaras idênticos aos do continente africano, mas pode-se perceber que há algumas releituras desses rituais, especialmente na Bahia com o Folguedo Zambiapunga da cidade de Nilo Peçanha e o Candomblé dos Egunguns na Ilha de Itaparica. Mesmo considerando que os povos que deram origem a essas duas manifestações cultural e religiosa são de lugares diferentes da África, há semelhanças entre ambas. As duas fazem rituais em homenagens aos seus antepassados e as pessoas que compõem os rituais estão mascaradas. Fica explicito que essas manifestações brasileiras, cada uma, com as suas peculiaridades, estão muito próximas dos rituais africanos em que são usadas as máscaras.

Notas
1 Ver Cátalogo da exposição MAMAFRICA, realizada no museu de Arte Moderna da Bahia em 1997.
2 SODRÉ. Jaime. Arte Africana. - Uma brevissíma abordagem. Correio da Bahia. 06 de janeiro de 2001.
3 SALUM. Marta Heloísa Leuba. “Imaginários Negros”, Negritude e Africanidade na arte plástica brasileira. In:História do Negro no Brasil. O Negro na Sociedade Brasileira: Resistência, Participação, Contribuição. Kabengele
Munanga (org.). 2004 (p. 346).
4 Ver OLIVEIRA. Eduardo David. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente.
Fortaleza: LCR. 2003. (p.24 -25)
5 PRICE, Sally. A arte dos povos sem história. In: Afro-Ásia, Salvador: UFBA, 1996. no 18 (p.207).
6 Ibid, 05. 1996. (p.222).
7 Ibid, 02. 2001.
8 VILLARTA. José. Arte Negro, Figuración De La Alteridad. In: Catálogo África El Legado Eterno. Sala de
Exposiciones. Estácion Marítima. La Coruna. 2001. (p. 26-27). Tradução feita pelo Doutorando Brian Brazeal e revisada pela Profa Dra Joseania Freitas.
9 LUZ. Marco Aurélio. Estética Negra e Artes Plásticas. In: Cultura Negra e Ideologia de recalque. Edições Achiamé Ltda. Rio de Janeiro. 1983. (p. 76).
10
BRAZEAL. Brian. Unpublished manuscript. Songs of Derision and Invocation. Universidade de Chicago – EUA.
2002. Tradução feita pelo próprio autor. Segundo o autor o título do trabalho em Português quer dizer: “Músicas Yorubás para Insultar e Invocar”.
11 MAUCLER. Christian. /MONIOT. Henri. As Máscaras Guelede. In: A história dos Homens: As civilizações da África. 1987. ( p. 71)
12 Ibid, 04 2003. (p.63-64)
13 LOPES. Helena Theodoro.Artigo: Mulher negra, mitos e sexualidade. Grupo de Trabalho 6. Universidade Gama Filho. Disponível em : http//www.mulheresnegras.org/santos3
14 BARRETTI FILHO. Aulo. O culto dos egunguns no candomblé. Revista Planeta. 1986. (p 01)
15 Ibid, 04. 2003. (p.83)
16 Ibid, 04. 2003. (p.83)

Nova fase História Viva

Estamos de volta...

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Eduardo Marculino

Hiroshima - relato de um sobrevivente


Quando a bomba veio vi um clarão amarelo e fiquei rodeada pela escuridão. Um edifício de madeira com dois andares que era a minha casa com oito quartos ficou feito em pedaços e cobriu-me.
Quando vim a mim estava tudo negro como breu à minha volta. Tentei levantar-me mas tinha uma perna partida. Tentei falar mas vi que tinha partido seis dentes. Quando reparei que tinha a cara e as costas queimadas, que tinha um corte que ia do ombro até à cintura, rastejei até à margem do rio e quando lá cheguei vi centenas de corpos a boiar. Foi aí que percebi, chocada, que tinham atingido toda a cidade de Hiroshima.
Encontrei uma fila infindável de refugiados todos sem qualquer peça de roupa no corpo e a pele da cara, dos braços e do peito fora arrancada e estava pendurada e, contudo, eles não tinham qualquer expressão. Fugiam em silêncio profundo. Achei que era uma procissão de fantasmas.
Relatos de sobreviventes
Paul Tibbets
Hiroshima, 6 de agosto de 1945 - 08:15
http://obviousmag.org
Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2005/08/hiroshima_6_de.html#ixzz1S0lektV8

segunda-feira, 18 de julho de 2011

QUANDO HITLER ENCONTRA BIN LADEN



QUANDO HITLER ENCONTRA BIN LADEN - A vida louca dos cadáveres indesejados

O líder da Al Qaeda foi lançado ao mar pelos americanos. Surpreendente? Nem um pouco. Desaparecer com o corpo de um inimigo que pode criar problemas depois de morto, como o führer, é comum desde a Roma antiga
VINÍCIUS CHEROBINO

O cemitério de Père Lachaise fica no fim da avenue de la République e é atração turística em Paris. Ali repousam os corpos de celebridades, como Balzac, Oscar Wilde, Chopin, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec... Mas é o túmulo de Jim Morrison, da banda The Doors, o que assusta as autoridades parisienses. Morto em 1971, aos 27 anos, Morrison se tornou uma espécie de mártir de sua geração - teria sido mesmo uma overdose ou foi uma conspiração da CIA para eliminar agitadores como ele, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Brian Jones?
Sua tumba virou ponto de peregrinação, culto e vandalismo. No início de maio, quando os americanos lançaram o corpo de Osama bin Laden no mar, cortaram pela raiz a chance de seus seguidores também terem um local para pranteá-lo, para transformar em destino de peregrinação e para manter como foco de propagação de suas ideias. Se a cova de um roqueiro tinha esse poder, do que seria capaz o túmulo de um líder terrorista?
Em geral, quando não se teme mais o inimigo derrotado, os vencedores costumam exibir seu corpo como troféu. Aquiles fez isso na Guerra de Troia, ao arrastar o corpo de Heitor - uma reação natural quando você derrota alguém que o combate há muito tempo. "Provavelmente, muitos nos Estados Unidos gostariam que Barack Obama tivesse preso o abatido Bin Laden a um carro e o arrastasse pelo empoeirado Afeganistão", afirmou o articulista Jacinto Antón, no jornal espanhol El País. "Desonrar e mutilar o líder inimigo caído, converter seu crânio em taça, cortar uma mão ou o cabelo tem sido habitual na história." O problema é quando o inimigo continua perigoso mesmo depois de morto. Nesse caso, a melhor estratégia é sumir com o corpo o quanto antes - foi assim que Roma agiu quando eliminou o general cartaginês Aníbal e Cleópatra.
No século 20, não haveria corpo mais perigoso que o de Adolf Hitler. Ele não ofereceu a oportunidade de ser preso pelos soviéticos (não queria virar troféu dos Aliados). Depois de almoçar, às 15h30 do dia 30 de abril de 1945, seguiu para seu quarto e encontrou a amante Eva Braun (com quem se casara na véspera). Ouviu-se um tiro. Sentado no sofá, Hitler estava ao lado de Eva - ela teria tomado cianureto.
Funcionários leais ao ditador seguiram sua recomendação escrita e tentaram cremar os cadáveres com petróleo numa cratera ao lado do bunker. A história foi confirmada por Traudl Junge, secretária de Hitler, e Rochus Misch, seu guarda-costas. O Exército Vermelho interrogou os sobreviventes e partiu em busca do corpo do führer. Dois dias depois, encontrou o que sobrou da cremação de Hitler e Eva.
Os vencedores, diferentemente do que Hitler temia, não o queriam como troféu - sabiam de seu poder mesmo depois de morto. Por isso, o material foi recolhido e enterrado na cidade de Maddeburg, na antiga Alemanha Oriental, em local conhecido por poucas autoridades. Josef Stálin, em pessoa, deu ordem para que tudo que dissesse respeito aos restos de Hitler fosse transformado em segredo de Estado. O bunker foi destruído em 1947. Ao longo dos anos, temendo que o segredo vazasse e atraísse nazistas em peregrinação, os soviéticos mudaram a tumba várias vezes, até 1970.
O general Vasily Khristoforov, arquivista-chefe do Serviço de Segurança Federal da Rússia, órgão que sucedeu a KGB depois do fim do comunismo, disse recentemente à agência Interfax que documentos da KGB comprovam a ordem de autoridades soviéticas para que os corpos encontrados no bunker fossem destruídos. Agentes teriam feito uma fogueira com o material e só pararam quando tudo virou cinzas, jogadas no rio Shoenebeck. Guardaram-se apenas uma parte de um crânio com um buraco de bala, que acreditava-se ser de Hitler, e um pedaço de mandíbula.
Assistentes do dentista do führer, presos pelos soviéticos, teriam confirmado que a arcada dentária era mesmo do nazista. Aqui o mistério aumenta. O pronunciamento de Khristoforov aconteceu meses depois de cientistas americanos descobrirem que o tal crânio furado pertencia a uma mulher anônima de menos de 40 anos. Análises de DNA, feitas na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, confirmaram que a única evidência física do suicídio de Hitler não pertencia ao ditador. "Hitler se tornou paradigma quando se fala em algoz. Nesse contexto, ele e Bin Laden se tornam dignos de comparação", diz Ana Maria Dietrich, professora da Universidade Federal do ABC, em São Paulo.
Outro inimigo dos Estados Unidos, Che Guevara (veja ao lado), que prometia criar "um, dois, três, muitos Vietnãs", foi morto em 1967 na Bolívia e teve as mãos decepadas - para identificação por peritos forenses e para esconder sua identidade depois de enterrado. O jornalista americano Jon Lee Anderson, da revista The New Yorker, descobriu o local da cova coletiva onde estaria o corpo de Che, perto de um campo de aviação, ao entrevistar um militar boliviano reformado, em 1995. Os restos mortais foram levados para Havana e atraem milhares de cubanos e turistas estrangeiros ao seu mausoléu. "Com o enterro no mar de Bin Laden, os Estados Unidos supostamente trataram de evitar uma longa e interminável saga de 'onde ele está enterrado?'", escreveu Anderson.

Corpos anônimos

A POLÍTICA DE SUMIR COM O ADVERSÁRIO
CHE GUEVARA
Che Guevara, um dos líderes da revolução cubana, foi morto por militares na Bolívia em 1967, diante de um agente da CIA. As mãos foram cortadas e enviadas para os EUA e ele acabou numa vala comum. Em 1997, depois que se descobriu o paradeiro do corpo, foi repatriado para Cuba, onde ocorreu uma grande celebração. Seu túmulo é ponto de visitação, mas não há a certeza absoluta de que o corpo seja mesmo do argentino.

OLIVER CROMWELL
O militar que derrubou o rei Carlos I e instaurou uma república na Grã-Bretanha, entre 1653 e 1658, morreu de malária - ou foi envenenado. A partir de 1660, com a restauração da monarquia inglesa, Cromwell foi desenterrado para ser "executado postumamente". Uma corrente de historiadores defende que o corpo foi jogado antes no Tâmisa por seus partidários (para não ser vilipendiado).

BENITO MUSSOLINI
O ditador fascista foi fuzilado ao lado da amante por integrantes da resistência nas cercanias do lago. Como, em 1945, quando tentava fugir do país. Seu corpo ficou pendurado de cabeça para baixo por vários dias em Milão e só foi devolvido à família em 1957 (que o enterrou em Predappio, no norte da Itália). Antes, porém, foi roubado por fascistas de uma cova anônima. Sem saber o que fazer com o cadáver, o entregaram a um padre depois de alguns dias.

COMANDANTES NAZISTAS
Os nazistas condenados à morte pelo Tribunal de Nuremberg, ao fim da Segunda Guerra, tiveram os corpos incinerados e jogados no rio Issar. O corpo de Adolf Eichmann, preso por um comando judeu na Argentina e julgado em Israel, foi lançado ao mar. Rudolf Hess, um dos últimos líderes nazistas a morrer (em 1987), teve o corpo devolvido à família sob a condição de que fosse enterrado em segredo.

Saiba Mais
LIVRO
Martyrdom in Islam, David Cook, Cambridge University Press, 2007
Revista Aventuras na História

Fordlândia: A derrapada do Ford

O hidrante típico de cidade norte-americana não consegue esconder o abandono dos galpões industriais de Fordlândia, no Pará
Um dos relógios que marcavam o começo e o fim da jornada de trabalho dos habitantes de Fordlânida, submetidos a um rígido controle laboral, criado pelo messias da sociedade de consumo, o norte-americano Henry Ford

Vítimas de um terrível surto de malária

Por volta de 1928, a seleção dos candidatos a trabalhar nos seringais norte-americanos.

A Vila Americana, reservada aos estrangeiros, era o "bairro" nobre de Fordlândia.

O norte-americano Henry Ford

O americano Henry Ford popularizou o automóvel e criou a linha de montagem. Mas se deu mal ao inventar uma cidade na Amazônia para tentar produzir borracha.
Maria Fernanda Ziegler

Em 1927, o americano Henry Ford era “o” cara. Sua empresa, a Ford Motors Company, inaugurara um método inovador para produzir veículos. Os funcionários, especializados, ficavam em fila e cada um repetia a mesma tarefa o dia inteiro em diferentes automóveis, que se locomoviam até eles em esteiras. A linha de produção passou a ser chamada de “fordismo” e foi o marco de uma nova era na indústria: os produtos saíam em grande quantidade, de forma mais veloz e por preço mais baixo.
Por isso, o Ford T, criado em 1908, vendia uma beleza. Foram 15007033 automóveis em 19 anos de vida, marca só superada mais tarde pelo Fusca, fabricado entre 1938 e 2003 (que vendeu 307 unidades a mais). Em 1921, mais da metade dos carros que entravam em circulação no mundo era da marca Ford.
Os carros da linha de produção do gênio, claro, exigiam pneus e diversas outras peças feitas de borracha. Só entre 1920 e 1922, a quantidade de matéria-prima necessária para fabricação de pneus saltou de 19400 para 67100 toneladas, segundo o livro Grande Capital e Agricultura na Amazônia – A Experiência Ford no Tapajós, de Francisco de Assis Costa. A borracha, obtida do látex extraído de seringueiras plantadas na Ásia, era monopólio inglês. E Ford tentou driblá-lo. Aproveitou um estudo feito havia quatro anos pelo governo americano sobre a possibilidade de obter látex no Brasil, chamado American Rubber Mission, e resolveu criar um braço amazônico para sua companhia. A idéia megalomaníaca incluiu a construção de duas cidades à beira do rio Tapajós, no Pará. Mas foi marcada por uma sucessão de erros que culminaram em 18 anos de trabalho jogados fora e um prejuízo de 9 milhões de dólares da época (ou mais de 130 milhões de reais atuais).
O fracasso começou na largada, já na obtenção do terreno. Sabendo do interesse americano por terras amazônicas, o cafeicultor Jorge Dumont Villares ganhou do governo do Pará áreas em sete pontos diferentes. Ao recepcionar a comitiva de funcionários da Ford enviados ao estado, mostrou apenas seus próprios terrenos ao longo do rio Tapajós. A concessão de 1 milhão de hectares (equivalente ao tamanho da cidade de Goiânia) poderia ter sido obtida gratuitamente direto com o governo, assim como Villares havia conseguido. Mas Henry Ford pagou 125 mil dólares ao cafeicultor. A Fordlândia nascia, dessa forma, de um golpe dado pelo brasileiro no americano em cima de um terreno montanhoso – e ainda por cima impróprio para seringueiras.
Uma cidade foi erguida no meio da floresta amazônica. Os navios Lake Ormoc e Lake Farge trouxeram dos Estados Unidos os materiais necessários para a construção do povoado, como madeira, telhas e as próprias mudas das seringueiras. Uma das embarcações foi preparada para suprir temporariamente a aldeia de energia e servir de hospital. A floresta começou a ser derrubada em 1928, as casas foram construídas e as árvores, plantadas. Grande parte da terra foi ocupada pelos seringais, divididos milimetricamente, segundo Elaine Lourenço, professora de História no Centro Universitário Nove de Julho e autora da tese Americanos e Caboclos: Encontros e Desencontros em Fordlândia e Belterra/PA.
Gente de toda parte foi procurar emprego em Fordlândia. O alvoroço repercutia no Rio de Janeiro, e o jornal O País registrou: “Todos são admitidos nas fábricas, exceto os dementes e loucos”. A verdade era que o recrutamento de novos trabalhadores já sofria de um problema que perseguiu a empresa nos 18 anos seguintes: a falta de mão-de-obra. Os anúncios nos jornais chamavam gente interessada, fosse especializada ou não, mas o exame médico barrava metade dos que ali apareciam por não terem boas condições de saúde.
Mesmo assim, o negócio foi tomando forma. A cidade tinha um dos melhores hospitais da região e a Vila Americana, composta pelas casas dos administradores vindos dos Estados Unidos, era de alto nível: possuía gramados para golfe, quadras de tênis, piscina, campos de futebol, clube e cinema. Os funcionários ficavam em vilas bem mais modestas. O salário não era de se reclamar: bem maior que o de outras cidades da região, era pago a cada 15 dias e em dinheiro, prática pouco comum por aquelas bandas. Se por um lado o bolso estava cheio, por outro a paciência deles se esgotava. A cidade americana seguia regras americanas. Havia relógios de ponto por toda parte. Uma sirene dividia o dia em turnos e marcava os horários de descanso. Os caboclos, acostumados a acompanhar o tempo conforme o ciclo do sol, estranharam. Para completar, a Fordlândia proibia bebida alcoólica em seus limites.
A rigidez de costumes fazia com que a cidade deixasse de ser um lugar interessante para morar. A rotatividade entre os trabalhadores era, assim, muito grande. Mas, para os que lá ficavam, havia formas de diversão às escondidas, como a cachaça contrabandeada (vinha dentro de melancias pelo rio) e as festinhas animadas na chamada “ilha dos inocentes”, do outro lado do Tapajós – que de ilha e de inocente não tinha nada. Lá, bebida e prazer eram liberados. Para isso, prostitutas chegavam de Santarém e de Belém.

Eu quero é farinha
E foi ali, no coração da Amazônia e por causa das diferenças culturais, que ocorreu talvez o único motim antiespinafre da História. Em 1930, explodiu no refeitório da Companhia Ford Industrial do Brasil uma rebelião, conhecida como “quebra-panelas”. Os caboclos se revoltaram contra a obrigatoriedade de comer espinafre quase que diariamente – queriam peixe, feijão e farinha. Em meio a gritos de “abaixo o espinafre”, colocaram os americanos para correr e prometeram fazer greve. “Em uma noite, os dirigentes da Ford Motor Company aprenderam mais sociologia que em anos de universidade”, afirma o escritor e advogado Clodoaldo Vianna Moog em Bandeirantes e Pioneiros: Paralelo entre Duas Culturas.
Na mesma época, a plantação de seringueiras foi atacada pelo mal-das-folhas, fungo que reduzia a produção de látex e acabava até por matar a árvore. Estudos anteriores à implantação de Fordlândia indicavam que a floresta era capaz de proteger a árvore dessa praga. Isso porque a distância entre uma seringueira e outra diminuía a intensidade do ataque. Mas isso não acontecia no local. “Eles plantaram as árvores como se fossem eucaliptos, bem diferente da estrutura de uma floresta”, afirma Marinho Andrade, produtor do documentário Fordlândia, ainda sem data de estréia no cinema.
O ritmo da implantação dos seringais também era baixo. Em 1929, havia 400 hectares de plantação. Em 1931, o volume cresceu apenas para 900. Muito inferior ao planejamento inicial: 200 mil hectares de seringueiras e rendimento médio de 1500 quilos de borracha por hectare. Só em 1932, depois do fracasso da baixa produtividade, a companhia decidiu contratar um especialista no cultivo de borracha. Chegou por lá o botânico James R. Weir, que havia trabalhado na American Rubber Mission.
Weir sugeriu, em 1936, a troca da área de Fordlândia por outra em Belterra, a 48 quilômetros de Santarém. Lá, o terreno era mais bem drenado, com mais vento e menos umidade – condições desfavoráveis à propagação do mal-das-folhas. Um outro núcleo urbano foi construído e alguns erros, reparados. O traçado das plantações ainda era retilíneo, mas as mudas não eram locais, e sim trazidas do antigo Ceilão (atual Sri Lanka). O projeto ganhou novo fôlego. Mesmo assim, a produção era baixa, os trabalhadores reclamavam da alimentação e da falta de liberdade. Uma vila vizinha a Belterra fazia as vezes da “ilha dos inocentes”, e a falta de mão-de-obra permaneceu.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, muita coisa havia mudado. O principal – e determinante – fator para o fim do sonho de Ford no Brasil foi o surgimento da borracha sintética, que passou a ser largamente produzida em países como Japão, Alemanha e Rússia e que tornou a borracha natural menos interessante. Além disso, a idéia de terceirização surgia e já não era mais necessário se preocupar com o todo da produção de um automóvel. Em 1945, Henry Ford, sem nunca ter pisado em suas terras brasileiras, resolveu deixar de lado a Amazônia e vendeu por 250 mil dólares as cidades ao governo brasileiro, com tudo o que restava nelas. Hoje, Fordlândia está praticamente abandonada, tomada pelo mato. Belterra, pela proximidade com Santarém, tornou-se um município um tanto maior, com cerca de 17 mil habitantes.

Um verdadeiro campeão
Ford T: há um século, um carro mudava o mundo
O Ford Modelo T chegou ao mercado há um século, em outubro de 1908. Custava inicialmente 850 dólares. Mas seu preço foi caindo e ele chegou a valer, em 1922, 300 dólares. Era a popularização do automóvel no mundo. Tudo por causa de sistema de produção de Ford, que aposentou o modo artesanal de fabricação de um carro e o deixou oito vezes mais rápido. No Brasil, o modelo começou a ser fabricado em 1919, em São Paulo. Com fama de carro resistente, era ideal para os tempos em que asfalto era coisa rara.
Motor sem arranque
A função do motor de arranque era executada pela manivela na frente do carro. Primeiro girava-se a chave lá dentro, para que a corrente elétrica passasse para o sistema de ignição. Na frente do automóvel, rodava-se a manivela para acionar o motor. Depois, lá dentro, era só acelerar.
Ao contrário
O pedal da direita era o freio. O da esquerda, o câmbio. Para engatar a primeira marcha, bastava pisar até o fim. Para a segunda, o pedal ficava solto com a alavanca do freio liberada. A ré era acionada pelo pedal central.
Ford Bigode
O simpático carro ganhou o apelido de Ford Bigode por causa de duas alavancas que existiam atrás do volante. A da esquerda acertava o ponto de ignição. A da direita era o acelerador manual.

Saiba mais
LIVROS
A Luta pela Borracha no Brasil – Um Estudo de História Ecológica, Warren Dean, Nobel, 1989
Vários anos de pesquisa in loco remontam à saga da borracha em seus dias de glória e desespero.
Grande Capital e Agricultura na Amazônia – A Experiência Ford no Tapajós, Francisco de Assis Costa, UFPA, 1993
Reconta a trajetória da Ford Motors Company no Pará, com destaque para os dados econômicos da época.

Revista Aventuras na História

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Sete pecados - Catarina Come-Gente


No fim do sec. XIX, Porto Alegre assustava-se com Catarina Come-Gente

Raquel Czarneski

Catarina Come-Gente, Maria Degolada, Crioula Fausta - o Pássaro Negro do Beco do Poço - o que teriam em comum estas personagens pitorescas, além dos nomes como que saídos de alguma história macabra? Estas e mais quatro mulheres compõem o rol de personagens desvendados por Sandra Jatahy Pesavento em seu livro “Os Sete Pecados da Capital” que têm a cidade de Porto Alegre em fins do século XIX como cenário para sete crimes que chocaram a opinião pública e destacaram-se pela participação de misteriosas mulheres.

Os crimes perpetrados na “capital dos pecados” marcaram época e ainda permanecem como que submersos nas profundezas da memória popular porto-alegrense, prestes a serem chamados à superfície em momentos estratégicos. As histórias, objetos de investigação da historiadora Sandra Pesavento compõem a memória urbana da cidade e, por isto mesmo, revelam aspectos da urbe um tanto sombrios, ainda desconhecidos.

Quem diria que na pacata e provinciana Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, em pleno ano de 1864, um casal de origens obscuras, residente no então bairro popular da Cidade Baixa, na chamada Rua do Arvoredo, fosse o responsável por exterminar friamente membros de sua vizinhança, para com suas carnes fazer linguiças e comercializá-las impunemente para a população local?

A autora evoca em seu livro a memória da cidade de Porto Alegre e reconstitui a trajetória dessas histórias sinistras, buscando entender como elas se configuraram através dos tempos no imaginário da cidade e adquiriram ares de ficção nas narrativas da população. Em Os Sete Pecados da Capital, Porto Alegre à primeira vista uma pequena e calma cidade, é desnudada em sua face mais horripilante e assustadora em uma narrativa digna de um conto policial!

Raquel Czarneski Borges é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
Revista de História da Biblioteca Nacional

África: cultura material, filosofia e religião - parte 3



Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)

Texto do guia temático para professores África: culturas e sociedades, da série Formas de Humanidade, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.Escrito em janeiro de 1999 e revisto e adaptado em julho de 2005

3ª. Parte - África: cultura material, filosofia e religião

Antes de mais nada, devemos lembrar que a dissociação entre Religião e outras esferas da Cultura existente no Ocidente, e na Modernidade, não faz parte da natureza da Humanidade. E, como vimos, as sociedades da África pertencem a complexos culturais muito antigos, reciclando valores arraigados pela Tradição, caracterizando-se por uma maneira de produzir bens espirituais e materiais de acordo com sua história e com o meio ambiente onde se formaram.

Para compreendermos os sistemas de pensamento e de crenças das sociedades africanas, devemos ter sempre em mente a dinâmica tradição-modernidade, e, como fizemos com respeito à arte, relativizar o que pertenceu ao passado e o que, e sob que forma, permanece no presente.

Cada cultura africana tinha, antes da ruptura social, sua forma de conceber o mundo, de explicar suas origens e de formular o que lhes convêm, conforme mostram os mitos e lendas, bem como o discurso das pessoas mais antigas, que viveram antes ou durante a situação colonial. Isso demonstra a grande diversidade cultural no continente, correspondente à diversidade de formas e estilos na arte tradicional.

Apesar disso, no plano filosófico, podemos assinalar um aspecto que dá unidade aos povos da África tradicional: o indivíduo é considerado vivo porque tem um ascendente (é filho, neto de alguém), e quem vai lhe garantir a finalidade e memória de sua vida e existência é a perspectiva de seu descendente (seu futuro filho e neto). Portanto a noção de morte está concretamente ligada à de vida : morrer significa não procriar. Sem filhos, a linhagem familiar se extingue - vida e morte não são apenas biológicas, mas sociais principalmente. A existência do indivíduo se traduz através do seu ser-estar (o que implica em tempo e espaço ou lugar) no mundo, através do cotidiano, no trabalho ou no lazer, sempre conectado ao universo social, cósmico, natural e sobrenatural ao mesmo tempo, sendo impossível separar o que é concreto e espiritual, ou determinar o que é sagrado ou profano, na vida desses povos.

Nesse contexto, o exercício da existência volta-se para questões que vão além do poder econômico, o que não exclui a preocupação social e individual com o status (disputado e atribuído a indivíduos de prestígio como sábios e dirigentes), já que ele é uma das chaves para que o grupo tenha uma estrutura para permanecer unido e forte visando ao advento de futuras gerações.

Daí, a profusão de imagens antropomórficas esculpidas a que se chama de "ancestrais", já que normalmente, mas nem sempre como se divulga através de publicações, eram relacionadas, e usadas, no culto de antepassados. Os chamados "fetiches", aí colocados em oposição aos "ancestrais", são objetos, esculpidos ou não, constituídos de vários materiais agregados. O conceito de fetiche é discutível, pois, significando "coisa feita", é relacionado sempre à magia e a feitiçaria num sentido distorcido.


FIGURA 8: Estatueta "buti", do tipo chamada de "fetiche", arte teke, Republica Democrática do Congo, acervo MAE-USP.

Na verdade, os materiais dos "fetiches" entre os quais são também classificadas estatuetas dos Bateke (FIG 8, acima) - simbolizam partes dos mundos animal, vegetal e mineral, aludindo uma idéia de totalidade construída pelos africanos, baseada em seu conhecimento sobre as forças da Natureza (muitas vezes relacionados à cura medicinal) e do Cosmo. Isso explica porque muitas das estatuetas chamadas de "fetiches", em contrapartida, tinham relações diretas com o culto de antepassados, fundado na idéia de acúmulo de forças através de gerações sucessivas e da apropriação do território.

Outras duas características nos sistemas filosófico e de crenças das sociedades africanas tradicionais é a consciência de periodicidade e infinitude, isto é, a idéia de que o descendente vem do ascendente e a idéia, que vem em decorrência disso, de que o passado está intimamente ligado ao futuro, passando pelo presente.

Um indivíduo vivendo em sociedade em um determinado período histórico supõe a existência de outro ou outros indivíduos (filho, neto, bisneto, etc) em períodos subsequentes, graças à existência daqueles que vieram antes dele, e criaram regras para que seus contemporâneos e conterrâneos pudessem seguir vivendo, articulando-se conforme as condições de sobrevivência. Há um provérbio de origem africana em que podemos constatar essa característica de infinitude, de que a vida é infinita: "uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim deles?".

Esse tipo de pensamento comporta uma perspectiva dinâmica que não corresponde à idéia de que esses povos não teriam história antes dos europeus chegarem, e que eles viviam sempre do mesmo modo que seus avós e bisavós. Outro provérbio africano nos permite constatar essa característica de periodicidade, de que a vida é periódica - e histórica: "as coisas de amanhã estão na conversação das pessoas de amanhã".

Vemos aqui uma preocupação em regrar o que acontece no presente, o que é uma responsabilidade dos que vivem para garantir a existência do futuro, e que não há nada de estático nisso, ao contrário, há uma previsão de mudança, uma consciência de que há um dinamismo na vida, na existência, não apenas por modificações ambientais naturais, mas também modificações técnicas e filosóficas determinadas pela sucessão de gerações.

Desse modo, os africanos preservavam regras de sua Cultura, modificando-as quando necessário, sem precisar de outras normas vindas de fora, coisa que os Europeus não podiam entender, pois eles se consideravam superiores a todos os povos não-europeus.

Esse sentimento de superioridade vem da constatação da diferença. Na visão judaico-cristã, por exemplo, os africanos foram tidos como povos animistas, isto é, aqueles que atribuem vida às coisas e seres inanimados, e acreditando que plantas e animais são dotados de "alma", sendo portanto capazes de agir como seres humanos. Isso não é verdade e deturpa as formas autênticas de concepção do mundo dos africanos, colocando-os como inferiores, ou "primitivos".

O que ocorre, na verdade, é que na África tradicional a concepção de mundo é uma concepção de relação de forças naturais, sobrenaturais, humanas e cósmicas. Tudo que está presente para o Homem tem uma força relativa à força humana, que é o princípio da "força vital", ou do axé - expressão ioruba usada no Brasil. As árvores, as pedras, as montanhas, os astros e planetas, exercem influência sobre a Terra e a vida dos humanos, e vice-versa. Enquanto os europeus queriam dominar as coisas indiscriminadamente, os africanos davam importância a elas, pois tinham consciência de que elas faziam parte de um ecossistema necessário à sua própria sobrevivência. As preces e orações feitas a uma árvore, antes dela ser derrubada, era uma atitude simbólica de respeito à existência daquela árvore, e não a manifestação de uma crença de que ela tinha um espírito como dos humanos. Ainda que se diga de um "espírito da árvore", trata-se de uma força da Natureza, própria dos vegetais, e mais especificamente das árvores. Assim, os humanos e os animais, os vegetais e os minerais enquadravam-se dentro de uma hierarquia de forças, necessária à Vida, passíveis de serem manipuladas apenas pelo Homem. Isso, aliás, contrasta com a idéia de que os povos africanos mantinham-se sujeitos às forças naturais, e, portanto, sem cultura. Os povos da África tradicional admitem a existência de forças desconhecidas, que os europeus chamaram de mágicas, num sentido pejorativo. Mas a "mágica", entre os africanos, era, na verdade, uma forma inteligente - de conhecimento - de se lidar com as forças da Natureza e do Cosmo, integrando parte de suas ciências e sobretudo sua Medicina.

Esses elementos filosóficos podem ser vistos expressados graficamente nas decorações de superfície de esculturas, na tecelagem e no trançado, e na própria arquitetura, através de figuras geométricas (zigue-zagues, linhas onduladas, espirais - contínuas e infinitas), de figuras zoomorfas (cobras, lagartos, tartarugas - que, além de sua forma, estão associadas à idéia de vitalidade e longevidade).

Trata-se de uma linguagem gráfica simbólica, equivalente a da figura antropomórfica em estátuas e estatuetas, onde se ressaltam cabeça, mãos e pés, seios, ventre, orgãos sexuais (todos considerados, de um modo geral, centros de força vitais). Elas expressam, do mesmo modo que os grafismos, aspectos relacionados ao tema da reprodução humana e à capacidade de produção do conhecimento necessário à perpetuação da espécie humana, mesmo que individualmente, venham a desempenhar funções e a expressar significados específicas(FIG 9).


FIGURA 9: Estatueta "akua-ba", arte ashanti, Gana, acervo MAE-USP

Temas como a fertilidade da mulher e fecundidade dos campos são freqüentes e quase que indissociáveis na expressão artística, estabelecendo a relação entre a abundância de alimento e a multiplicação da prole, um fator concreto em sociedades agrárias. O tema do duplo remete à relação de fatores complementares ou antagônicos (dia-noite, homem-mulher). Todas essas formas gráficas e representativas são um recurso para apresentar, sob forma material, um conjunto de idéias sobre a existência concebida visando ao equilíbrio e à perpetuação biológica e espiritual do grupo social.

Dizem que os africanos não tinham Deus, ou que tinham vários deuses, o que não parece ser muito preciso. Em quase todas as populações da África foram registrados depoimentos da criação do mundo, em que existe apenas um único "Deus". Trata-se de uma força primordial, um Criador que criou o Mundo e os Homens, colocou-os na Terra, e deixou-os ao seu Destino (FIG 10).


FIGURA 10: Topo de máscara, arte senufo, Costa do Marfim, acervo MAE-USP.

Essas histórias de origem podem ser chamadas de mitos porque se trata de seres não conhecidos em vida (que estão na memória coletiva), sendo por isso míticos, sem que se caia no erro de desconsiderá-los, como fizeram os ocidentais, como idéias sem valor científico e histórico. Tais mitos de origem comportam freqüentemente o relato de pares primordiais, de gêmeos ou duplas, que vieram para cultivar e povoar o mundo, e, muitas vezes, seres zoo-antropomorfos que, dotados da tecnologia (instrumentos agrários ou de caça), vieram para ensinar os Homens a produzir e obter alimento, para se multiplicarem, zelando, eles - os Homens -, pela sua própria permanência em vida.

Uma das diferenças dessas idéias com relação às idéias de mundo cristãs é a consciência de que cada ser que está presente no mundo tem seu papel, e que a força dos Homens é humana, e não divina. Daí a necessidade de uma relação constante com os antepassados, visando às futuras gerações. Esse pode ser apontado como um significado substantivo das várias formas de culto de ancestrais.

É por isso que a vida dos povos africanos é tida como muito mais ritualizada que no mundo cristão. O mundo material e o espiritual são concebidos juntos, quase que inseparáveis, o que implica em modelos de culto e religião completamente diferentes do que se adotou no Ocidente, que por sua vez serviu de modelo para outros povos formados na modernidade, como é o caso brasileiro.

Os Candomblés (são várias as formas como essa religião brasileira de origem africana se apresenta) conservam formas de culto muito próximas às de cultos tradicionais da África ocidental (sobretudo dos Fon e dos Ioruba), adotando emblemas, nomes e outras características de suas divindades (e, às vezes, das divindades dos povos de línguas bantu, ou dos chamados Bantos, da África central), bem como a hierarquia de poder iniciático (FIG 11 a 13).


FIGURA 11: Colar de babalaô, arte nagô, República Popular do Benim, acervo MAE-USP


FIGURA 12: Estátua de Iemanjá, arte afro-brasileira, Salvador/Brasil, acervo MAE-USP

FIGURA 13: Opaxorô, arte afro-brasileira, Salvador/Brasil, acervo MAE-USP.

Mas, numa aproximação ainda que a grosso modo, eles teriam uma estrutura de panteão, como a das religiões grega e cristã. Isso quer dizer que existe um Criador e uma porção de outras divindades articuladas em camadas subalternas. Os cultos tradicionais da África, por sua vez, voltavam-se, em linhas gerais, aos antepassados ou a divindades da Natureza. Neste último caso, poderia ser enquadrado o Culto de Orixás - apelação dada às divindades de origem ioruba ou nagô (os voduns, inquices e caboclos são divindades de povos africanos de outras origens) -, em que se baseiam a maioria dos candomblés, muito embora muitas dessas divindades celebram chefes políticos sacralizados, com uma qualidade divina, de uma localidade (ou reino) determinado, onde são considerados como antepassados.

Para concluir, grande parte da escultura antropomórfica seja da África ocidental, seja da central, é uma "presentificação" desses personagens míticos ou mesmo conhecidos em vida - antepassados fundadores de territórios, chefes de linhagem ou chefes eleitos renomados por feitos realizados durante seus governos. Em peças desse tipo transparece a grande relação entre política e religião, motivo pelo qual estátuas, bustos e cabeças, tendo uma força acumulada de vários níveis, não podiam ser vistas por todas as pessoas, se não os altos iniciados nos cultos, ou seja, aqueles que tinham status social e religioso, sendo que em muitas sociedades, o chefe político era também o sacerdote supremo.

E, neste final, resta a contradição: grande parte da arte africana, que tanto nos mobiliza o olhar pelo impacto estético, era feita, antes de ser tirada de seu contexto, para não ser vista, a menos que houvesse uma ocasião precisa para isso. Está aí está a demonstração da grandeza e do poder de uma cultura material, depositária não de segredos, mas de fundamentos, a serviço da história e cultura dos povos africanos, que dentro e fora de seu território original, continuam sua existência, formando novos valores, como acontece entre nós, no Brasil.

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