quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Mercenários - Cães de Guerra, ofício milenar

Mercenários, eles saem pelo mundo em eterna luta, sem nenhum ideal.
por Christophe Courau

Batalha de Sluys, durante a Guerra dos Cem Anos (1340), conflagração em que os ingleses decretam que os soldados devem receber salário e surge a necessidade de contratação de mercenários

Eficazes no plano militar, esses soldados de ofício, reunidos provisoriamente sob a liderança de um chefe forte, lutam por um soldo e pelo butim, mas não totalmente indiferentes ao país de origem, à honra e a legalidade. A ambição dos primeiros mercenários se restrinmge a ganhar dinheiro e a conquistar um ou dois castelos, mas, conforme os êxitos, a ambição aumenta.

O avião da companhia particular francesa Aero Services Executive decola, em junho de 2002, do aeroporto parisiense de Bourget em direção a Madagascar, onde Marc Ravalomanana, o novo presidente eleito, luta pelo poder com Didier Ratsiraka, seu predecessor.

A bordo do aparelho estão 12 mercenários franceses, entre 30 e 61 anos. Marc Garibaldi, conhecido por suas atividades na República Democrática do Congo, é um deles. Por intervenção do governo francês, o avião aterrissa em Dar es-Salaam, na Tanzânia, onde é reabastecido.

Logo depois retorna ao ponto de origem. Ao mesmo tempo, na África do Sul, três ucranianos - todos com cerca de 40 anos de idade - são interrogados. Incapazes de informar, com exatidão, o lugar onde devem permanecer em Madagascar, declaram simplesmente que "devemos encontrar certas pessoas no aeroporto".

Os dois acontecimentos levam Bernard Valéro, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, a "lembrar que a França condena vigorosamente esse tipo de ação". Assim como a tentativa, em dezembro de 2001, de desembarque de mercenários franceses no arquipélago de Comores, a operação em Madagascar é um verdadeiro fiasco, interrompendo uma série de intervenções bem-sucedidas entre os anos 1970-1980.

"Os atuais soldados de aluguel não têm muitas semelhanças com os \\'desprezíveis\\' dos anos 60, proscritos e homens fora da lei", comentam Philippe Chapelau e François Misser em seu livro Mercenários AS (Desclée de Brouwer, 1998).

Mercenários contemporâneos
Repulsivos, mas também fascinantes, os mercenários de hoje, de acordo com esses autores, se aproveitam da "explosão da demanda proveniente de governantes em apuros, mas também de outros agentes, desejosos de operar em zonas de elevada insegurança: empresas, organizações internacionais ou humanitárias". Mas, se de alguma forma ainda se assemelham a aventureiros do fim do século XX, como Bob Denard, os novos mercenários são de fato herdeiros de uma longa tradição.

O antigo Egito já utilizava mercenários líbios para guardar suas fronteiras. Da mesma forma, na Grécia ancestral inúmeros combatentes estrangeiros se engajavam nos exércitos das cidades, enquanto os próprios gregos prestavam serviços ao império persa.

Cartago testemunhou uma terrível revolta de seus mercenários, que serviu de trama para o romance de Flaubert, Salambô. Iniciada em 241 a.C., essa guerra terminou em 238, quando o general Amílcar Barca cercou os revoltosos no desfiladeiro de Scie, onde 40 mil homens foram massacrados.

Tão antigo quanto o mundo, o mercenário é, segundo a definição do dicionário Larousse, "um soldado que serve, por dinheiro, a um governo estrangeiro". Esta acepção se aplica, porém, tanto à Legião Estrangeira francesa como à Guarda Suíça do Vaticano. Assim, preferimos outra, mais precisa: "Soldado que, mediante pagamento em dinheiro, luta por uma causa que não lhe concerne", proposta por Anthony Mockler em sua História dos Mercenários (Stock, 1969).

O autor acrescenta outra definição: "Bando de soldados de ofício que se reúnem provisoriamente sob a liderança de um chefe de personalidade forte e que lutam pelo soldo e pelo butim, não totalmente indiferentes à honra, à legalidade e aos interesses de seu país de origem, mas acima de tudo eficazes no plano militar." A Organização da Unidade Africana, em 1977, e a ONU, em 1989, ofereceram também suas próprias definições de mercenário.

Ao longo da história, a questão do pagamento adquire diversas nuanças. Na Idade Média, durante a Guerra dos Cem Anos, os ingleses decretam que todo cavaleiro e soldado do exército real deve "receber um salário do rei", com autorização para conservar o que vierem a ganhar na guerra, seja em bens ou prisioneiros.

Esse exército já não tem mais muita coisa em comum com uma tropa feudal, em que senhor e cavaleiros combatem juntos. O exército francês assume uma posição análoga. O rei da França, Felipe VI, promete um bom pagamento e generosas recompensas aos mercenários alemães e genoveses que combaterem sob sua bandeira.

Mas, em Crécy, os soldados genoveses são dizimados pelos arqueiros ingleses. Fugindo em debandada, os genoveses sofrem o destino reservado aos derrotados: os sobreviventes são exterminados pelos franceses.
Dez anos mais tarde, o Tratado de Brétigny, de 1360, marca o fim do primeiro período do conflito, mas deixa sem recursos os grupos de cavaleiros e soldados de ofício que, assim, reúnem-se em companhias livres.

Seus chefes se chamam Regnault de Cervoles (apelidado de o Arcipreste), sir Robert Knollys, Perrot le Béarnais, Geoffroy Tête-Noir, sir John Hawkwood, Bertrand de La Salle, ou Bertrand Du Guesclin, futuro condestável da França.

As companhias livres, alugadas e comandadas por senhores e príncipes, decidirão a sorte de todas as batalhas posteriores. Na batalha de Brignais (1362), elas se unem para enfrentar o exército feudal que o rei da França arregimentara para liquidá-las. Vencem de forma avassaladora. Jacques, conde da província de Marche e condestável da França, é morto e, graças aos resgates, os mercenários acumulam considerável riqueza.

Algumas companhias apoderam-se até mesmo de castelos nas duas margens do rio Ródano. O memorialista Froissart narra em suas Crônicas a história do Arcipreste que, com seu bando, invade a Provença e aterroriza de tal forma o papa Inocêncio VI que é, várias vezes, convidado a cear no castelo de Avignon, como se fosse o "filho do rei da França": não só os seus pecados são perdoados como ele recebe 40 mil moedas de ouro para distribuir entre seus companheiros.

Armaduras como espelhos
Enquanto combatem para um príncipe que tem o direito de fazer a guerra, o modo de existência dos mercenários pode ser justificado. Mas quando chega um período de paz, este modo de vida se transforma. Sem recursos e sem o direito de pilhar ou extorquir seus contemporâneos, os mercenários se tornam meros bandidos.

Para se livrar deles, os franceses decidem enviá-los para longe. A grande companhia catalã é enviada para Constantinopla, onde cria um ducado autônomo em torno de Atenas que durará 63 anos. Outro destino é a Itália, Eldorado da época, dividida em vários principados rivais e cujos cidadãos preferem negociar a guerrear.

"Entre 1300 e 1375, quatro grandes ondas de companhias mercenárias invadem a Itália", informa Anthony Mockler. Os húngaros fundam uma tão grande "que se torna uma cidade-estado móvel, com uma administração interna meticulosa e que troca embaixadores em pé de igualdade com as repúblicas da Itália central.

Ela só devia fidelidade ao seu chefe, Fra Moriale, e recebia mais dinheiro para se afastar das cidades das quais se aproximava do que para lhes prestar serviços. Durante dois anos, os seus deslocamentos, reais ou presumidos, dominam a diplomacia e os assuntos políticos da Itália". Após a morte de Fra Moriale, é superada pelas companhias livres que o papa, instalado em Avignon, enviara para o outro lado dos Alpes.

Na mais importante delas, a companhia branca, cada guerreiro pesadamente armado dispõe de um ou dois assistentes cujo trabalho consiste, segundo os cronistas da época, "em polir a armadura de tal forma que, quando os cavaleiros surgirem no campo de batalha, suas armas e couraças brilhem como espelhos, tornando-os mais temíveis". Mas o brilho das companhias começa a empalidecer.

Em 1379, "um marco divisório na história dos mercenários na Itália", segundo o historiador inglês, um antigo integrante da companhia branca, Alberico da Bardiano, que acaba de organizar a sua própria tropa inteiramente italiana, derrota os mercenários bretões do papa Clemente VII. Os condottieri italianos vão progressivamente substituir os comandantes estrangeiros e aperfeiçoar o ofício de mercenário.

O condottiere - o mercenário - assina, na presença de uma notário, uma condotta, isto é, um contrato escrito, com um príncipe ou uma cidade. Em Florença há três tipos de contrato: a condotta a solda disteso, pela qual o soldado deve obedecer às ordens do general local; a condotta a mezzo solda, segundo a qual o condottiere é livre para invadir, quando e como desejar, os territórios do inimigo; e, por fim, a condotta in aspetto (espera), que corresponde aos tempos de paz. Habitualmente, o condottiere compromete-se também a não guerrear contra o seu último empregador.

A ambição dos primeiros mercenários se restringe a ganhar dinheiro, ocupar um ou dois castelos e impor seus serviços a um senhor, mas no final do século XV tudo muda. O apetite aumenta conforme os êxitos: os condottieri aspiram agora a formar principados independentes. Alguns se fazem duques, enquanto duques se tornam condottieri.

Entre esses grandes chefes podemos mencionar Muzio Attendolo, chamado de Sforza (1369-1424), camponês da Romagna cujo filho se tornará duque de Milão, e Braccio da Montone, que será senhor de Perúgia.

Cada um deles organiza a sua própria escola de guerra. Os Bracceschi são conhecidos pela impetuosidade de seus ataques; os Sforzeschi, pela habilidade tática e pela rapidez das manobras. "A guerra na Itália torna-se cada vez mais refinada. No final de sua vida, Carmagnola trava uma grande batalha em que captura 5 mil cavaleiros e 5 mil soldados de infantaria: não houve mortos, embora o massacre dos cavalos tenha assumido proporções assombrosas", assinala o historiador britânico Anthony Mockler.

O primeiro exército
Na França, o Tratado de Arras, em 1435, marca o fim da Guerra dos Cem Anos e a expulsão definitiva dos ingleses. Assim como o de Brétigny, o de Arras deixa no país numerosos soldados sem batalha. Carlos VII resolve o problema de maneira original. Ele remunera os bandos e forma assim o primeiro exército permanente e regular da Europa.

Entretanto, como esclarece Michel Pene em um artigo no Cahiers de Mars (1998), "a França continua a recorrer a contingentes suíços: Francisco I recruta cerca de 160 mil, que são depois organizados por Carlos IX em guardas suíças. (...) Somente no final do século XVII, as exigências da política levarão, quase em toda parte, à constituição de exércitos nacionais. A partir de então, os suíços especialmente passam a formar uma guarda particular a serviço dos reis da França e não tanto uma tropa de combate".

Mas os soldados estrangeiros ainda constituem, freqüentemente, a maior parte dos exércitos "nacionais". A Inglaterra recorre a milhares de holandeses, austríacos e prussianos para conduzir as guerras de sucessão na Espanha e, depois, a Guerra dos Sete Anos e a guerra na América. Ainda que, como lembra Penne, "Kant condene o ofício de mercenário e Goethe reprove os mercenários derrotados por George Washington em 1776", somente com o advento do estado-nação o ofício se torna vergonhoso.

Com a Revolução, 1 milhão de franceses passa a empunhar armas. Em 1798, o general Jourdan institui o alistamento geral, prática desconhecida na Europa desde o declínio do feudalismo. O estado-nação torna-se a nação armada.

O massacre nas Tulherias é o "sinal do desaparecimento do mercenário profissional que vendia seus bons e leais serviços aos empregadores tradicionais", sugere Mockler. E acrescenta: "Após a Revolução Francesa considera-se que cada um deve lutar por sua pátria e que é desonroso servir a outro país." O século XIX testemunha o gradual desaparecimento dos soldados de aluguel na Europa.

A guerra de 1870 é assim o primeiro conflito controlado inteiramente pelos estados-nações. Somente na segunda metade do século XX, e após o fim dos impérios coloniais na África, os mercenários reaparecerão nos campos de batalha. O best-seller de Jean Lartéguy, Les Chimères Noires, é baseado na história do coronel Trinquier em Kananga, no Zaire.

Mercenários da “empresa de segurança” norte-americana Black-wate

O mercenário torna-se um aventureiro dos tempos modernos. É a época em que um certo Bob Denard, liderando os seus "desprezíveis", começa a se fazer conhecido. Nos anos 90, "a intensificação das atividades mercenárias em todos os continentes é, em parte, um efeito do aumento da mão-de-obra disponível produzido pelo fim da Guerra Fria e do apartheid", explicam Chapleau e Misser em Mercenários AS. Trata-se de uma reconversão para os ex-soldados do Pacto de Varsóvia e da África do Sul que, hoje, vendem os seus serviços para as multinacionais.

Christophe Courau é historiador e jornalista

Revista Historia Viva

Selo leitor indispensável


Regra única deste selo:
- Oferecer aos leitores indispensáveis em seu BLOG.


Obrigado por fazer parte desta família de leitores:

Casamento, uma invenção cristã

A união indissolúvel, celebrada por um sacramento, substituiu antigos costumes de poligamia, provocando grande mudança nos hábitos europeus.
por Michel Rouche

Casamento de Felipe da Macedônia com Olimpia. Miniatura do séc. XV

Em 392, o cristianismo foi proclamado religião oficial. Entre 965 e 1008 eram batizados os reis da Dinamarca, Polônia, Hungria, Rússia, Noruega e Suécia.

Desses dois fatos resultou o formato do casamento, em princípios do ano 1000, com uma face totalmente nova. Durante o Sacro Império Romano Germânico - que sucedeu ao desaparecido Império Romano -, dirigido por Oto III de 998 a 1002, houve uma fabulosa transformação das sociedades urbanas romanas e das sociedades rurais germânicas e eslavas. As uniões entre homens e mulheres eram, então, o resultado complexo de renitências pagãs, de interesses políticos e de uma poderosa evangelização.

"Amor: desejo que tudo tenta monopolizar; caridade: terna unidade; ódio: desprezo pelas vaidades deste mundo." Esse breve exercício escolar, escrito no dorso de um manuscrito do início do século XI, exprime bem o conflito entre as concepções pagã e cristã do casamento. Para os pagãos, fossem eles germânicos, eslavos ou ainda mais recentemente vikings instalados na Normandia desde 911, o amor era visto como subversivo, como destruidor da sociedade. Para os cristãos, como o bispo e escritor Jonas de Orléans, o termo caridade exprimia, com o qualificativo "conjugal", um amor privilegiado e de ternura no interior da célula conjugal. Esse otimismo aparecia em determinados decretos pontificais, por meio de termos como afeto marital (maritalis affectio) ou amor conjugal (dilectio conjugalis). Evidentemente, o ideal cristão era abrir mão dos bens deste mundo desprezando-os, o que constituía um convite ao celibato convencional.

A Europa pagã, mal batizada no ano 1000, apresentava portanto uma concepção do casamento totalmente contrária à dos cristãos. O exemplo da Normandia é ainda mais revelador, por ser muito semelhante ao da Suécia ou da Boêmia. Os vikings praticavam um casamento poligâmico, com uma esposa de primeiro escalão que tinha todos os direitos, e com esposas ou concubinas de segundo escalão, cujos filhos não tinham nenhum direito, a menos que a oficial fosse estéril, ou tivesse sido repudiada. As cerimônias de noivado organizavam a transmissão de bens, mas não havia casamento verdadeiro a não ser que tivesse havido união carnal. Na manhã da noite de núpcias, o esposo oferecia à mulher um conjunto muitas vezes bastante significativo de bens móveis. Ele era chamado de presente matinal (Morgengabe), que os juristas romanos batizaram de dote. Portanto, o papel da esposa oficial era bem importante, sobretudo se ela tivesse muitos filhos, já que o objetivo principal era a procriação.

Essas uniões eram essencialmente políticas e sociais, decididas pelos pais. Tratava-se de constituir unidades familiares amplas, no interior das quais reinasse a paz. Por isso, as concubinas de segundo escalão eram chamadas de Friedlehen ou Frilla, ou seja, "cauções de paz". Na verdade, elas vinham de famílias hostis de longa data. A partir do momento em que o sangue de ambas as famílias se misturava, a guerra já não era mais possível. Assim, as mães escolhiam as esposas dos filhos, ou os maridos, das filhas, sempre nos mesmos grupos clássicos, a fim de salvaguardar essa paz. Se uma esposa morresse, o viúvo se casaria com a irmã dela. Dessa forma, pouco a pouco as grandes famílias tornavam-se cada vez mais chegadas por laços de sangue (consangüinidade), pela aliança (afinidade) e, finalmente, completamente incestuosas. Acrescentemos a esse quadro as ligações entre os homens, a adoção pelas armas, o juramento de fidelidade e outras ligações feudais que triunfaram no século X como um verdadeiro "parentesco suplementar", segundo a expressão de Marc Bloch, e teremos a prova de que esses casamentos pagãos não deixavam nenhum espaço livre para o sentimento.

Amor subversivo
Assim, quando o amor se manifestava, ele só podia ser adúltero, ou assumir a forma de um estupro, maneira de tornar o casamento irreversível, ou de um rapto mais ou menos combinado entre o raptor e a "raptada", a fim de ludibriar a vontade dos pais. Nesses casos o amor era efetivamente subversivo, uma vez que destruía a ordem estabelecida. Ele se tornava sinônimo de morte e de ruína política, como prova o romance, de fundo histórico verdadeiro, Tristão e Isolda, transmitido oralmente pelo mundo europeu de então - celta, franco e germânico. Tristão, sobrinho do rei e seu vassalo, cometeu ao mesmo tempo incesto, adultério e traição para com o rei Marco, o marido de Isolda. Aliás, ele mesmo diz, após seu primeiro encontro: "Que venha a morte". Nas sociedades antigas, obcecadas pela sobrevida, a vontade de potência, de poder, era mais importante do que a vontade de prazer, pois aquelas tribos de imensas famílias não conheciam nenhuma limitação administrativa ou externa.
Esse quadro deve ter sido abrandado pelo fato de eles terem estado em contato com países cristãos, ou povos de regiões mergulhadas no cristianismo, como por exemplo os normandos batizados do século X. Em decorrência, duas estruturas coexistiam, mais ou menos confundidas. Por volta do ano 1000, o bispo da Islândia teve muita dificuldade para separar um chefe de tribo, já casado, de sua concubina, especialmente porque ela era sua própria irmã - fato que sustentava a opinião de que seu irmão, o bispo, não passava de um tirano. Nos séculos X e XI, os duques da Normandia tinham dois tipos de união, regularmente: uma esposa oficial, franca e batizada, e uma ou várias concubinas.

Guilherme, o Conquistador, que tomou a Inglaterra em 1066, tinha o codinome de bastardo, por ter nascido de uma união desse tipo. À entrada de Falésia, seu pai, Roberto, o Demônio, teve a atenção chamada por uma jovem que, no lavadouro da cidade, calcava a roupa com os pés, nua como suas companheiras de tarefa, para melhor sovar a roupa. Naquela mesma noite, com a autorização de seu pai, Arlette, a jovem, se viu no quarto do duque, usando uma camisola aberta na frente, "a fim de que", nos diz o monge Wace, que contou a história, "aquilo que varre o chão não possa estar à altura do rosto de seu príncipe". Esses amores "à dinamarquesa" demonstram que as mulheres eram livres, com a condição de aceitar uma posição secundária.

Essa duplicidade de situação num mundo ocidental oficialmente cristão, mas ainda pagão, complicou-se quando as mulheres conquistaram poder, algo facilitado pela matrilinearidade das origens germânicas. Algumas incentivavam os maridos a se proclamarem reis, por serem elas de origem imperial carolíngia. Castelãs, senhoras de grandes propriedades, ou mulheres de alta nobreza, elas utilizavam o casamento como trampolim para sua ambição. Em Roma, Marozia (ou Mariuccia) foi mãe do papa João XI, filho de sua ligação com o também papa Sérgio III. Viúva do primeiro marido, Guido da Toscana, meio-irmão do rei da Itália, Hugo, ela convidou este a se casar com ela. Mas Alberico II, seu filho do primeiro casamento, expulsou do castelo de Santo Ângelo onde foram celebradas as núpcias, aquele intruso manipulado por sua mãe.

Punição para a libido
Aos olhos de inúmeros escritores eclesiásticos, como o bispo Ratherius de Verona, a libido feminina era perigosa e devia ser reprimida severamente. O fato de que velhos países como a Espanha, a Itália e o reino dos Francos, embora cristãos havia já cinco séculos, não tivessem ainda integrado a doutrina do casamento - a ponto, por exemplo, de o rei Hugo ter tido duas esposas oficiais e três concubinas - prova o quanto essa doutrina estava na contramão de seu tempo. E contudo ela fora claramente afirmada e repetida desde que Ambrósio declarara em 390 que "o consentimento faz as bodas". A isso, o Concílio de Ver acrescentara, em 755: "Que todas as bodas sejam públicas" e "Uma única lei para os homens e mulheres".

Reclamar a liberdade do consentimento dos esposos e a condição de igualdade do homem e da mulher era utópico, sobretudo numa sociedade romana patriarcal. Todavia, progressos importantes ocorreram no século X, graças à repetição da apologia do casamento, símbolo da união indissolúvel entre Cristo e a Igreja. Após a atitude irredutível do arcebispo Hincmar e do papa Nicolau I, o divórcio de Lotário II por repúdio a sua esposa Teutberga - devido a sua esterilidade - tornou-se impossível após 869, ano de sua morte. Incompreensível para os contemporâneos, o casamento não se baseava somente na procriação. A aliança era mais importante do que um filho. Mais do que ninguém, longe dos discursos sobre a superioridade da virgindade, Hincmar havia demonstrado que um consentimento livre sem união carnal consecutiva não era um casamento. Ele prefigurava assim a noção de nulidade instituída pelo decreto de Graciano, em 1145. Em decorrência, os rituais, como escreveu Burchard de Worms por volta do ano 1000, traduziam no nível da disciplina do casamento a doutrina otimista dos moralistas carolíngios.

A união carnal, conseqüência do consentimento entre um homem e uma mulher (e não várias), é o espaço de santificação dos esposos. O ideal de monogamia, de fidelidade e de indissolubilidade tornou-se tanto mais possível porque no final do século X desapareceu a escravidão de tipo antigo, nos países mediterrâneos. Um novo espaço se abria para o casamento cristão, graças ao surgimento do concubinato com as escravas, que não tinham nenhuma liberdade. Essa foi também a época em que as determinações dos concílios tornaram obrigatória a validade do casamento dos não libertos.

Mas um outro combate chegava a seu ponto culminante no ano 1000: a proibição do incesto. Iniciada a partir do século VI e quase bem-sucedida na Itália, na Espanha e na França, essa interdição enfrentou contudo forte oposição na Germânia, na Boêmia e na Polônia. Proibidos em princípio até o quarto grau entre primos irmãos, os casamentos de consangüinidade e de afinidade foram punidos, e os culpados separados. Mais tarde, a partir de Gregório II (715-735), a proibição foi estendida ao sétimo grau (sobrinhos à moda da Bretanha), assim como aos parentes espirituais (padrinho e madrinha): não haveria mais aliança a não ser com estranhos, com quem fosse outro (Deus ou o próximo de sexo diferente), mas de modo algum com aquele ou aquela com quem já existisse um tipo de ligação.

As conseqüências sociais de tal doutrina foram incalculáveis. Ela obrigou cada um a procurar um cônjuge longe de sua aldeia e de seu castelo. Acabou por destruir as grandes famílias, de dezenas de pessoas, que viviam sob o mesmo teto, e por favorecer a formação de um grupo nuclear, do tipo conjugal. Ela suprimiu, assim, as sucessões matrilineares e a escolha dos esposos pelas mulheres. A exogamia tornou-se obrigatória. A Europa se abriria para o exterior.

Elogio da virgindade
Na Alemanha, desde os concílios de Mogúncia, em 813, e de Worms, em 868, os casos de casamentos incestuosos mantidos pela obstinação das mulheres eram numerosos. Na Boêmia, o segundo bispo de Praga, Adalberto, grande amigo do imperador Oto III, havia conseguido, em 992, um edito público que o autorizava a julgar e separar os casais incestuosos. Foi um insucesso tão retumbante que ele se desgostou para sempre de sua tarefa episcopal. Preferiu ir evangelizar os prussianos, que o martirizaram em 23 de abril de 997.

A dinastia dos Oto, que havia restaurado o império em 962 na Alemanha e na Itália, nem por isso deixou de apoiar a Igreja em sua empresa de transformação e cristianização. E suas esposas deram o exemplo, já que Edite (946), Matilde (968) e Adelaide (999) foram consideradas santas. Os clérigos que relataram suas vidas, em particular a de Matilde, insistem não na viuvez ou nos atos de fundação de mosteiros, mas sim no papel de esposa e mãe. Sua santidade provinha essencialmente do casamento e do papel de conselheira, junto a seu imperial esposo. A leitura dos ofícios de passagens da vida de santa Matilde não teve uma influência desprezível sobre as audiências populares.

Se a Alemanha foi então uma frente pioneira na cristianização do casamento, não foi bem esse o caso do reino dos francos. Ema, esposa traída do duque da Aquitânia, Guilherme V, vingou-se de sua rival mandando que ela fosse violada por toda sua guarda pessoal. Berta, filha do rei da Borgonha, mal tendo enviuvado, pousou seu olhar sobre o jovem Roberto, filho de Hugo Capeto, para fazer um casamento hipergâmico.

Esse exemplo é revelador. A legislação da Igreja acerca do casamento cristão ia de encontro à mentalidade da época. E no entanto o amor conjugal de caridade (dilectio caritatis) começava a sobressair ao amor de posse (libido dominandi). Por volta do ano 1000, a expansão urbana e o início do desbravamento e da cultura dos campos permitiram que a família nuclear monogâmica se multiplicasse. As células rurais foram destruídas pela necessidade de ir buscar um cônjuge mais longe. Somente a nobreza e as famílias reinantes mais antigas resistiram, fechadas em suas relações feudais, ao contrário dos recém-chegados ao poder, os Oto, que acolheram e adotaram a doutrina cristã como uma liberação e se lançaram com ousadia na direção do leste, para além do rio Elba, a nova fronteira da expansão européia.

Dessa forma, da concepção do amor como subversivo e criador de morte passamos à de um amor construtivo, promotor de vida. O desejo foi integrado no casamento com a união carnal, espaço de gozo mútuo. A procriação tornou-se um bem do casamento, entre outros. A poligamia desapareceu. A publicidade do casamento se instalou. As proibições de incesto permitiram que se descobrisse a necessidade de alteridade e a afirmação da diferença sexual como força de construção. Esse momento de otimismo e de vitória sobre o amor de morte pagão, à moda de Tristão, explica o elã prodigioso da Europa no início do ano 1000. Mas ele não iria além do final do século XI. Também por volta do ano 1000, as diatribes de São Pedro Damião e Ratherius de Verona contra o casamento dos padres anunciavam um outro combate que terminaria na reforma gregoriana e no triunfo do celibato convencional.

Em conseqüência, o elogio da virgindade passou a ser mais e mais preponderante, a ponto de fazer triunfar uma visão pessimista do casamento. Tanto isso é verdade que a história do casamento cristão é feita de alternâncias entre sucessos e crises.

-Tradução de Marly N. Peres

Glossário
Casamento hipergâmico: quando a esposa tem um estatuto superior ao do marido.

Levirato: prescrição do próprio Moisés, segundo a qual o irmão solteiro de um homem morto, sem ter deixado filhos, deveria desposar sua cunhada, a viúva.

A partir do momento em que o sangue de ambas as famílias se misturava, a guerra já não era mais possível

A proibição de uniões entre parentes suprimiu as sucessões matrilineares. A exogamia tornou-se obrigatória

Michel Rouche é historiador, professor e escritor, especialista em Alta Idade Média.

Revista Historia Viva

Martin Luther King - O sonho assassinado

O pastor evangélico se impõe como um dos grandes pacifistas do século XX, enquanto a sociedade americana branca, ciosa demais de sua hegemonia para se preocupar com os negros, desdenha as tensões raciais.
por Pascal Marchetti-Leca

Martin Luther King Jr, num restaurante em Atlanta, em abril de 1964, meses antes de receber o Prêmio Nobel da Paz

Atlanta, 1935. Uma cabecinha encarapinhada vagava com sua candura perspicaz pela Auburn Avenue. O olhar perturbador, o passo medido. O menino, o pensamento longe, às vezes interrompia o passeio para jogar a bola que levava entre o braço e o peito. Improvisava acrobacias e batia a bola ao mesmo tempo que declamava passagens do Livro da Sabedoria: "Amai a justiça, vós que julgais a terra, pensai no Senhor com retidão, procurai-o com simplicidade de coração". Em seguida, mudando de atitude, tornava a pôr a bola debaixo do braço. Apesar de jovem, o garotinho sabia efetivamente que, mesmo sendo sagradas, as Escrituras, das quais as pessoas se desviam, não deixavam de ser vãs. E por mais de um motivo.

Filha de Adam Daniel Williams, o pastor da igreja batista de Ebenezer, que desde a década de 1910 militava na NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), sua mãe, Alberta, inculcou-lhe os princípios da moral evangélica. Oriunda de um meio privilegiado, ela havia freqüentado os melhores colégios. Ainda que sempre denunciasse a discriminação racial, a verdade é que nunca as sofreu diretamente. No dia 25 de novembro de 1926, casou-se com Mickael Luther King, filho de um meeiro de Stockbridge que estava em Atlanta para estudar.

Antecipando-se ao sonho igualitário do filho, Mickael, que trocaria o nome por Martin, teve participação na luta pela emancipação do povo negro. "Meu pai [...] decidiu nunca mais entrar num ônibus da cidade por ter presenciado certas brutalidades de que eram vítimas os passageiros negros. Foi ele que assumiu o comando da luta [...] pela igualdade de salários dos professores e teve um papel preponderante, nos tribunais, para que se eliminasse a segregação nos elevadores", recordaria King ao receber o Nobel da Paz.

Em 1931, com a morte de Williams, seu genro o sucedeu à frente da paróquia de Ebenezer. Martin Luther King pai conquistou a confiança da comunidade negra e a estima reticente dos brancos. Alberta e ele cuidavam zelosamente dos três filhos. Longe dos guetos, Christine, Adam Danmiel Jr. e, naturalmente, o caminhante da Auburn Avenue tiveram uma infância mimada de classe média. "Meu pai, que punha a família acima de tudo, sempre nos proporcionou o necessário. Embora tivesse apenas um salário normal, seu segredo era ser mestre na arte de [...] administrar o orçamento. [...]A vida me foi dada como um presente de Natal", comentou certa vez King.



Nascido em 15 de janeiro de 1929, Mickael, que, tal como o pai, posteriormente adotaria o nome Martin, começou freqüentando escolas públicas da capital da Geórgia. Não tardou a amargar a experiência da segregação. Na escola, o menino não compreendia que teria de se afastar do companheiro de brinquedos, um aluno branco com o qual gostaria de dividir a carteira: "A ruptura se consumou quando ele me contou que seu pai o havia proibido de brincar comigo. Nunca vou esquecer o choque imenso que isso me causou".

Em 1944, ao concluir um curso brilhante num estabelecimento de ensino secundário da cidade, ingressou no colégio universitário de Morehouse, onde já o precediam "três gerações de King". Optou pela teologia. No dia 25 de fevereiro de 1948, foi ordenado no templo de Ebenezer. "Eu me criei na religião. Meu pai é pastor, meu avô era pastor, meu bisavô era pastor, meu único irmão é pastor, o irmão de meu pai é pastor. Portanto, eu não tinha escolha", explicou. Promovido a assistente na paróquia do pai, Luther King continuou o estudo de sociologia. No mesmo ano, trocou Morehouse por Chester, na Pensilvânia.

Lá se matriculou no seminário de Crozer, onde se diplomou em teologia em 1951. A seguir, decidiu aprimorar a formação na universidade de Boston. E, enquanto se dedicava à redação de uma tese, apaixonou-se por uma estudante de musicologia, Coretta Scott, com quem se casou pouco depois. Martin Luther King pai abençoou o casal em 18 de junho de 1953. Dessa união nasceram Yolanda Denise, apelidada Yoki (1955), Martin Luther III (1957), Dexter Scott (1961) e Bernice Albertine (1963).
Inicialmente, o jovem casal se fixou em Montgomery (Alabama), onde, apesar da forte tensão social, King aceitou, em 1954, o ministério pastoral de Dexter Avenue.

Imbuído da obra dos grandes filósofos (Platão, Aristóteles, Rousseau, Locke), do sociólogo Walter Rauschenbusch e do pensamento de seu mestre, Gandhi, concluiu, paralelamente, o trabalho de pesquisador. A universidade de Boston acabava de lhe conferir o título de doutor quando irrompeu um conflito racial cuja violência haveria de orientar todo seu pastorado. No dia 1o de dezembro de 1955, Rosa Parks, costureira de 42 anos [que morreria no final de 2005 com 92 anos], tomou um ônibus a fim de voltar do trabalho para casa. O veículo não tardou a ficar lotado. O motorista não teve dúvidas em mandá-la ceder o lugar a um passageiro branco. Ainda que educadamente, Rosa Parks recusou se levantar. Foi presa imediatamente. Ativista dos direitos civis de grande influência na comunidade negra, Edgar Daniel Nixon interferiu, encarregando-se de pagar a multa a que Rosa Parks fora condenada.

Os chefes de clãs e os pastores se mobilizaram para defendê-la e fundaram o MIA (Movimento pelo Progresso de Montgomery), à frente do qual colocaram Martin Luther King. Enquanto se organizava o boicote dos ônibus, King esboçou sua doutrina da não-violência - "Amai vossos inimigos, abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos caluniam" - e, pouco a pouco, erigiu-se defensor dos negros dos Estados Unidos.

A municipalidade procedeu a prisões em massa (de numerosos pastores, entre os quais o próprio King) que, longe de abafar o fato, chamaram a atenção da imprensa. A empresa de transporte coletivo de Montgomery ficou à beira da falência. As autoridades pressionaram King para que pusesse fim ao boicote. Sucediam-se as intervenções e as intimidações. Em janeiro de 1956, seu domicílio chegou a ser alvo de um atentado. King resistia. No entanto, em 4 de junho de 1956, o tribunal federal do distrito condenou as normas segregacionistas vigentes no transporte coletivo. O prefeito recorreu à Suprema Corte, que, no dia 13 de novembro seguinte, confirmou a sentença. Naquela noite, os capuzes brancos e as violências da Ku Klux Klan não intimidaram ninguém.

No entanto, ainda não era o caso de se acomodar numa presunção de vitória. A partir de janeiro de 1957, os porta-vozes de dez estados sulistas se reuniram para fundar a SCLC (Conferência dos Dirigentes Cristãos do Sul). King foi eleito seu presidente. A organização apoiava sua luta no respeito generalizado às novas disposições legais em matéria de transporte coletivo e no direito de voto dos negros. Incansável, ele percorreu os Estados Unidos, tendo pronunciado mais de cem discursos em um ano. Discípulo de Gandhi, pregava a não-violência. Sabia que "o sofrimento tem o poder de converter o adversário e de abrir seu espírito que, do contrário, permanece surdo à voz da razão". Publicou seu livro Combates pela liberdade em 1958, envolto num humanismo confiante, seu credo pacifista.

Mais do que nunca, King foi alvo de acusações. No dia 20 de setembro de 1958, manipulada por uma campanha de difamação arquitetada contra ele, uma doente mental, que o supunha comunista, cravou-lhe um corta-papel no peito. O pastor escapou à morte por um triz. Interpretando essa agressão como um sinal, decidiu viajar à Índia, a fim de sincronizar seus passos com os de Gandhi. À margem do Ganges, King entreviu "a luz que pode brilhar nas trevas". Tanto que, no fim de sua peregrinação, anotou em seu diário: "O caminho da submissão conduz ao suicídio moral e espiritual. O caminho da violência conduz os sobreviventes ao rancor e os destruidores à bestialidade. Mas o caminho da não-violência leva à redenção [...]".
Reforçado em suas convicções, King retornou ao Alabama. Ali, em breve, seria obrigado a fazer uma escolha. Como a presidência da SCLC conflitava cada vez mais com sua atividade pastoral, voltou a Atlanta, onde, em 1960, passou a ser pastor adjunto da igreja de Ebenezer. A partir de então, a ação militante se alastrou por todo o Sul. Tal como Montgomery, Greensboro foi palco de uma revolução em desenvolvimento. Nessa cidade da Carolina do Norte, quatro estudantes negros desafiaram a polícia, "sentando-se no interior" de um restaurante, apesar das leis segregacionistas. Foi o início dos famosos sit-in. Esse movimento se estendeu a dezenas de cidades. E, mesmo sem ter sido seu instigador, King participou do rápido desenvolvimento do movimento estudantil. Preso numa manifestação em Atlanta, foi condenado a quatro meses de trabalho forçado na penitenciária de Reidsville (Geórgia). Mas Robert Kennedy, preocupado com a disputa da presidência da qual participava seu irmão, obteve do juiz a anulação da pena. Mediante o pagamento de fiança, é claro.

Para comprovar a eficácia da não-violência, King lançou a campanha de Birmingham em 1963, visando à dessegregação dos cafés e das grandes lojas de departamentos. Tratava-se de aplicar um golpe fatal contra a discriminação na própria cidadela da Ku Klux Klan. Em 12 de abril, foi preso por infração da proibição das passeatas.

Pressionado pelas autoridades religiosas brancas para pôr fim às agitações, endereçou-lhes, no dia 19 de abril, uma Carta da prisão de Birmingham, que viria a ser o manifesto do Movimento pelos Direitos Civis. "Uma lei injusta é uma lei humana sem raízes na lei natural e eterna. Toda lei que eleva a personalidade humana é justa. Toda lei que impõe a segregação é injusta porque a segregação deforma a alma e prejudica a personalidade." John Kennedy, agora inquilino da Casa Branca, e o irmão Bob intervieram uma vez mais para tirá-lo da prisão.

Em 20 de maio, a Suprema Corte declarou inconstitucional a legislação segregacionista de Birmingham. Algumas semanas depois, Kennedy anunciou uma nova legislação sobre os direitos civis. No dia 28 de agosto, realizou-se a Marcha sobre Washington, no fim da qual Martin Luther King fez seu mais célebre discurso: "Eu tenho um sonho". Porém, em 22 de novembro seguinte, King viu no assassinato de John Kennedy a premonição de seu próprio fim: "É o que também vai acontecer comigo. Esta sociedade está doente!" Mesmo assim, em 2 de julho de 1964, viajou a Washington para presenciar a assinatura da lei dos direitos civis (o Civil Rights Act) pelo presidente Lyndon Johnson.

Porém, sem o direito às urnas e à mercê da pobreza endêmica, as gerações de negros continuavam vivendo à margem da prosperidade. No dia 14 de outubro de 1964, Martin Luther King recebeu o Nobel da Paz. Encarou a distinção como o reconhecimento da legitimidade de sua luta pela comunidade internacional. "Aceito hoje o prêmio com uma fé inquebrantável nos Estados Unidos e com uma fé inabalável no futuro da humanidade [...]", disse na cerimônia de 10 de dezembro, em Oslo. Simultaneamente, J. Edgar Hoover, o chefe do FBI, contrariado com tantas homenagens, ameaçou: "Devemos segui-lo passo a passo [...] como o negro mais perigoso para o futuro deste país."



Sem embargo, Martin Luther King organizou a marcha de Selma, em 25 de março de 1965, que foi "o mesmo que Birmingham em 1963. Estava em jogo o direito de voto, que substituiu o problema do transporte coletivo no espírito de um vasto povo ansioso [...] por ter voz na questão do seu próprio destino." Depois de dezenas de marchas de protesto e de algumas centenas de mortos, Johnson assinou o Voting Rights Act, que condenava a segregação nos locais públicos e protegia o direito de voto dos negros.

No dia-a-dia, tais medidas não passavam de ilusão. Embora não tivesse perdido o carisma, King convencia cada vez menos. Desanimado, traído, passou a radicalizar suas posições e a pregar "a participação no poder". Em 1967, declarou-se contrário à Guerra do Vietnã, atitude que provocou divergências no seio da SCLC e suscitou a desconfiança do FBI.

Quando organizava a Marcha dos Pobres sobre Washington, King decidiu ir a Memphis (Tennessee) levar seu apoio aos lixeiros em greve que haviam sido reprimidos. Um morto, prisões em massa. Caminhou pela última vez com os oprimidos. No dia 3 de abril de 1968, fez o último discurso no templo do bispo Charles J. Mason: "Pouco importa o que me acontecer agora, pois já cheguei ao cume da montanha [...] Olhei à minha volta. E vi a Terra Prometida. Pode ser que não entre nela com vocês [...] Estou feliz esta noite [...] Nada me preocupa [...]"

No dia seguinte, detendo-se junto ao balcão do Motel Lorraine, ele falou a um amigo que passava: "É claro que esta noite, você vai tocar Senhor, segura a minha mão. Toque-a bem para mim". Nesse exato momento, ouviu-se um disparo. King tombou com um buraco na garganta.

Cronologia
1929
Nascimento de Mickael "Martin" Luther King em Atlanta
1948
É ordenado pastor
1955
O caso Rosa Parks motiva seu engajamento contra a segregação
1958
Vítima de atentado, em 20 de setembro
1963
Marcha sobre Washington, na qual fez seu famoso discurso "Eu tenho um sonho"
1964
Recebe o Prêmio Nobel da Paz
1968
É assassinado em Memphis

Luther King e Malcom X, irmãos e inimigos
Quinze dias depois da Marcha sobre Washington, uma carga de dinamite destruiu uma igreja batista de Birmingham. Quatro meninas morreram. A militante Anne Moody se revoltou contra Martin Luther King: "Por mais que eu viva, nunca mais vou deixar um branco me agredir [...] Acabou-se a não-violência!" Os princípios de uma "revolução pacífica", defendida por King, foram duramente contestados. O presidente da SCLC (Conferência dos Dirigentes Cristãos do Sul) parecia sozinho. Para os seus, King imitava cada vez mais o "Pai Tomás", personagem de romance abolicionista do século XIX.

"Martin Luther King, coitado, está sob a influência das raposas, ou melhor, sob o seu jugo", ironizou Malcolm X, dos Black Muslims (Muçulmanos Negros). Mas compreendia que, tanto quanto ele, King combatia o "sistema da supremacia branca".

E, mesmo considerando o princípio da autodefesa a condição prévia de toda ação, apoiou-o diversas vezes como a um irmão. Em Selma, sobretudo, a mensagem foi clara: "As pessoas fariam bem em dar [a King] o que ele exige [...] antes que outros [...] tratem de obtê-lo de outro modo!"

Em compensação, quando estava dirigindo a campanha de Chicago, em janeiro de 1966, King compreendeu que os guetos já não escutavam sua voz. Nos cortiços, as teorias do Black Power (Poder Negro), lançadas por Stokely Carmichael, suplantavam seus esforços pacifistas. Dois estudantes da Califórnia, Bobby Seale e Huey Newton, lhe eram favoráveis. Articularam o movimento Black Panthers, logo considerado o "inimigo público número 1" pelo FBI. E, Edgar Hoover não poupou cinismo: "Não vale mais a pena ser uma astro do esporte, um atleta ou artista bem pago, um empregado ou um operário [...] em vez de um negro que só pensa em destruir as instituições?"

Três Nomes, um assassino
A notícia do assassinato de Martin Luther King desencadeou uma onda de violência: mais de 150 cidades ficaram em chamas e cobertas de sangue.

A cerimônia dos funerais, realizada em Atlanta, reuniu 100 mil pessoas. Todos se perguntavam: "Quem matou Martin Luther King?" Logo depois do disparo, os agentes federais encarregados da segurança do hotel vasculharam os quartos. Num deles, encontraram um fuzil, entre outras coisas.

A arma tinha sido comprada em Birmingham por um tal Harwey Lowmeyer. O hóspede havia se registrado no hotel com o nome de John Willard e, na véspera, alugara um quarto em outro estabelecimento para Eric Galt. O fato é que Lowmeyer, Willard e Galt eram a mesma pessoa: James Earl Ray, um foragido da penitenciária de Missouri.

Preso na Grã-Bretanha, ele foi extraditado para os Estados Unidos um mês depois. Por recomendação do advogado, Ray se declarou culpado a fim de obter um veredicto mais benévolo. Escapando à pena capital, foi condenado a 99 anos de reclusão. Mas, logo a seguir, voltou atrás e se declarou vítima de uma maquinação.

Em 1979, um relatório confirmou a culpabilidade de Ray. No final da década de 1990, Dexter Scott, o filho caçula de Martin Luther King, visitou Ray no hospital carcerário de Nashville. Diante dos fotógrafos, apertou sua mão e ouviu dele a frase: "Eu não matei seu pai!" Ray morreu na prisão em 1998.

28 de agosto de 1963:
A apoteose do 28 de agosto coroou os acontecimentos que marcaram o verão de 1963. Em 11 de junho, quando John Kennedy anunciou um novo projeto de lei dos direitos civis, uma comoção percorreu os Estados Unidos. A Casa Branca parecia ter entendido o grito "nascido do silêncio de Birmingham". Então A. Philip Randolph, o militante infatigável e decano dos líderes negros, propôs uma marcha sobre Washington que, "numa ação de claridade deslumbrante", reunisse todas as forças dispersas do país. Pela primeira vez na história, os negros lançaram uma ofensiva numa linha de frente interminável. Esse apelo, que ecoou nos quatro cantos dos Estados Unidos, despertou igualmente a consciência recalcitrante dos brancos.

Assim, mais de 250 mil pessoas se reuniram diante do monumento a Abraham Lincoln. "Era um exército sem fuzis, mas não sem força", comentou Martin Luther King. As igrejas brancas, normalmente tão discretas, participaram dessa manifestação que o próprio John F. Kennedy estimulou. "Nós não tínhamos ódio, tínhamos [...] a paixão pela liberdade. Lá nos postamos, diante de Lincoln, diante de nós mesmos, diante do nosso próprio destino", acrescentou o pastor, que se aproximou da tribuna para encerrar o evento. Seu discurso tinha sido preparado na noite anterior, num quarto de hotel. Entre os dedos, algumas anotações, as quais ele desprezou ao recordar a frase que pronunciara no mês de junho anterior: "Eu tenho um sonho..." Súbito, abandonou o manuscrito e improvisou: "Sonho que um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores hão de se sentar juntos à mesa da fraternidade. [...] Sonho que meus quatro filhinhos um dia hão de viver num país em que não serão julgados pela cor da pele, e sim pela natureza do seu caráter..."

Pascal Marchetti-Leca é professor na Universidade da Córsega e autor de Innominata (Dcl, 2001).

Revista Historia Viva

HAITI - Revolução Negra

A independência do Haiti, influenciada pela Revolução Francesa, é considerada a única revolta de escravos bem-sucedida desde a Antigüidade clássica. Esse capítulo da história enche de orgulho os afro-descendentes latino-americanos, como símbolo da abolição. Na época, provocou temor nas nações escravocratas – Estados Unidos, Brasil e Cuba
por Aloisio Milani

© AKG IMAGES/LATINSTOCK

Iniciada em 1791, a revolta dos escravos foi a única vitoriosa desde a Antigüidade Revolta em Leocane, água-forte, autor desconhecido, 1840, Haiti

O trabalho na cana era extenuante e desumano. Por décadas, a colônia francesa de São Domingos sustentou um dos mais lucrativos negócios do Novo Mundo com o chicote apontado para o corpo dos escravos africanos. Os negros cavavam valas para o plantio das mudas, cuidavam dos brotos, zelavam pelo crescimento, faziam a colheita e toda a fabricação do açúcar. Os lucros dependiam da exploração do trabalho. A manutenção da escravidão pelos donos de engenho se baseava em castigos brutais e tinha um nível de perseguição implacável. Os relatos da época descreviam que as punições das chibatas eram mais comuns do que receber comida. Mutilavam-lhes membros, orelhas e genitais; faziam-nos comer excrementos; amarravam-lhes grilhões e blocos de madeira; prendiam-nos a postes fincados no chão. A tortura sistemática originava, não sem razão, uma sede de vingança. E este foi um dos motivos da revolta que seria iniciada em 1791 e conformou a única rebelião vitoriosa de escravos desde a Antigüidade clássica. A independência do Haiti, proclamada em 1804, só nasceu por causa dela.

Na ilha de Ahti – como os índios descreveram a região montanhosa para Cristóvão Colombo em 1492 –, o período colonial deixaria as marcas de genocídios, torturas e escravizações desde fins do século XV. A população nativa foi dizimada. Passou de aproximadamente meio milhão para cerca de 60 mil em rápidos 15 anos. Enquanto os espanhóis deixavam parte do território à medida que acabava a riqueza das minas de ouro, os franceses passavam a ocupar o norte da ilha. Em 1697, a Espanha reconheceu a soberania da França nas terras. A partir daí, o empreendimento dos colonizadores foi a cana-de-açúcar produzida pelas mãos dos escravos. São Domingos era um oásis exponencialmente lucrativo para a burguesia marítima, responsável pelo tráfico negreiro, e para os produtores de açúcar. Cerca de 20 anos antes da revolta, a colônia começou a viver a apoteose. Exportava 35 mil toneladas de açúcar bruto e 25 mil toneladas de açúcar branco. A elite branca ostentava mais e mais. Entre 1783 e 1789, a produção quase dobrou. E a colônia não avançava sem os escravos.

Ingleses, espanhóis, portugueses e franceses seqüestravam africanos aos milhões. Apesar de o poder estar com a nobreza, a burguesia francesa se transformou na maior força econômica da nação, cujas riquezas eram a produção colonial e o tráfico negreiro. Em São Domingos, entre 1764 e 1771, importava-se uma média anual de 10 mil escravos. De 1787 em diante, eram mais de 40 mil por ano. Os africanos que chegavam escravizados eram sobreviventes: os negros enfrentavam uma viagem transatlântica pela Rota do Meio como cargas selvagens de um traficante. Não raro, quase um quarto dos escravos transportados morria dentro dos navios pelas péssimas condições de alimentação e higiene. Quando chegavam aos portos, eram examinados, comprados e queimados com ferro em brasa em cada lado do peito para identificar seu dono. Os maus tratos que se seguiam estimulavam juras de contra-ataque. Algumas delas eram proferidas nos rituais noturnos de vodu, sincretismo dos rituais africanos com o catolicismo.


General Toussaint L’Ouverture, óleo sobre tela, autor desconhecido, século XIX, Consulado do Haiti, Rio de Janeiro

O oficial de Toussaint L’Ouverture no levante

OS INIMIGOS BRANCOS
Em creoule, dançavam e gritavam canções ameaçadoras, registra o escritor Cyril Lionel Robert James. “Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio té! Canga, mauné de lé! Canga, do ki la! Canga, li!” A tradução seria algo como: “Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa”. Tal qual o Brasil pré-abolicionista, também havia quilombos organizados nas montanhas haitianas para montar uma resistência contra a escravidão. O mais temido foi o líder Mackland. Negro da Guiné, ele era um visionário, grande orador e se dizia imortal com os poderes do vodu. Tinha seguidores aos montes. Em 1758 planejou envenenar a água das casas dos brancos para libertar os escravos. Foi traído, capturado e queimado vivo. Essa história, que mais parece invenção, virou até mote para livro do realismo fantástico latino-americano – O reino deste mundo, do cubano Alejo Carpentier.

Mas o rancor dos maus-tratos não foi a única razão para a eclosão das revoltas de 1791. Os ecos dos ideais iluministas da Revolução Francesa de 1789 reboaram na colônia. Sob o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, o marco histórico europeu derrubou valores do absolutismo e acendeu idéias burguesas. A abolição dos escravos era defendida, apesar de ser o sustentáculo da burguesia marítima. A Inglaterra, que havia perdido sua colônia na América do Norte com ajuda dos pensamentos iluministas franceses, passava a fazer propaganda contra a escravidão. Após a convocação dos Estados-gerais na França – representações da nobreza, burguesia e clero –, alguns proprietários de terra em São Domingos apressaram-se em formar um comitê para defender seus interesses. Um grupo de mulatos também enviou uma delegação. Formou-se uma representação colonial, um fato inédito. Logo os colonistas queriam mais espaço na política às vésperas da revolução. Conseqüentemente, foi questionada sobre a contradição da exigência de um número maior de cadeiras para os proprietários de São Domingos com a manutenção da escravidão. Afinal, o lema não era igualdade?

BURGUESIA NO PODER
Mirabeau, representante do Terceiro Estado, gritava que caso os latifundiários colonialistas não considerassem os negros como homens de direito seria equivalente à França ter de admitir, em sua representação política, também os “cavalos e as mulas”. Num golpe, a burguesia francesa conseguiu criar uma Assembléia Nacional, o que contrariava os interesses da monarquia. A revolução começava. Na visão do autor C.L. R James, que escreveu Os jacobinos negros, o mais importante registro daquelas revoltas, essa discussão atrelava, por fim, as fortunas de São Domingos à assembléia de um povo em revolução. “Dali em diante a história da liberdade na França e da emancipação em São Domingos seria una e indivisível.” O rei Luís XVI ordenou a dissolução da assembléia. As forças populares tomaram a Bastilha, símbolo do absolutismo. Na prática, o rei perderia poder. Em 1790, com o andar da revolução, foi permitida a formação de uma Assembléia Colonial. A sociedade de São Domingos mantinha uma divisão entre latifundiários, brancos pobres, mulatos livres e escravos. Nos debates na colônia, permanecia o conservadorismo do statu quo.


General Henri Chrsitophe, óleo sobre tela, autor desconhecido, século XIX, Consulado do Haiti, Rio de Janeiro

Henri Christophe se tornou presidente em 1807 e rei em 1811

A Assembléia Constituinte, na França, em 1791, aprovou a igualdade de direitos entre todas as pessoas em São Domingos. A medida permitia o voto dos mulatos, mas ainda não era a abolição da escravidão. Sua repercussão na colônia era questão de tempo, pois tinha se reconhecido o direito de “homens de cor”. O clima revolucionário contagiou as ruas de São Domingos. Muitos escravos, alguns mais próximos aos centros onde ocorriam os debates, começavam a entender a dimensão da oportunidade. Ricos fazendeiros viam a decisão da igualdade de direitos como uma ameaça brutal. Insistiram na posição de que mulatos e negros simplesmente não eram pessoas – uma rasura mal emendada da regra. Paralelamente aos protestos dos mulatos contra os brancos, os escravos começavam a se organizar. Não mais como o quilombola Mackland.

Na planície do norte de São Domingos, onde os canaviais se alastravam lado a lado por dezenas de quilômetros, um capataz (e também sacerdote do vodu) liderou uma rebelião. Boukman planejou atear fogo nas plantações, exterminar os brancos e tomar a colônia a partir de Lê Cap. Quando começou a revolta, os escravos destruíram completamente as fazendas. As plantações viraram cortinas de chamas e fumaça. Os latifundiários foram executados. O ódio dos negros aflorou e Boukman começou a revolução negra.

Os escravos da parte sul e do lado ocidental engrossaram o coro das revoltas. A repressão aumentou. Boukman foi morto em luta, mas o levante não parou. Os insurgentes passaram de 100 mil e ganharam adeptos. De uma onda de fúria, o movimento amadureceu e abraçou a bandeira da liberdade e da independência.

Ao lado dos primeiros líderes, como Jean François e Biassou, outro ex-escravo demonstrou excelência de planejamento militar e conhecimento de política: Toussaint L’Ouverture. Ele recebeu certa liberdade de seu senhor de engenho para tocar a fazenda, teve acesso a alguma literatura e não foi submetido aos suplícios dos maus-tratos. Possuía uma intuição política acima da média e logo se tornou um dos comandantes da revolta. Unificou e organizou um exército que poderia derrotar tropas européias.


© AKG IMAGES/LATINSTOCK

A guerra na Europa atingiu também as colônias, e L’Ouverture lutou ao lado dos franceses / Batalha próxima a Saintes, gravura, autor desconhecido, 1782, Biblioteca Nacional, Paris

PAZ INATINGÍVEL
Os brancos se negavam a aceitar uma rendição ou um acordo de paz. Três comissários franceses com 6 mil soldados chegaram a São Domingos para tentar acabar com as disputas políticas e as rebeliões dos escravos. Logo depois a monarquia caiu na França e a República foi proclamada. Em meio às negociações dos comissários, os franceses declararam guerra contra a Inglaterra e os rebeldes também se mobilizavam na medida da evolução política do Velho Continente. Os exércitos dos ex-escravos se movimentaram entre apoios à Espanha, Inglaterra e França durante os anos seguintes. Em 1794, a França aboliu a escravidão de todos os seus territórios. Toussaint, lutando pelos franceses, conseguiu expulsar britânicos e espanhóis da colônia. Foi nomeado pela metrópole chefe do exército. Chegava ao auge de seu poder. Quando Napoleão Bonaparte foi eleito primeiro-cônsul, São Domingos proclamou uma Constituição, tornando-se província autônoma. Contudo, em 1802, Napoleão se tornou cônsul vitalício e começou a reação. Já com o domínio da Louisiana, ao sul dos Estados Unidos, enxergou São Domingos como um ponto-chave para a expansão do império francês no Novo Mundo. Enviou uma armada para a ilha:47 mil homens sob o comando do general LeClerc.

Toussaint não acreditava que Napoleão quisesse restabelecer o domínio e a escravidão, mas virou-se contra o governante. Após fracassos de seu exército, rearticulou as forças sob seu comando e imprimiu sobre as tropas francesas derrotas memoráveis. Ainda bem-intencionado com os colonizadores, o líder negro fez um acordo de paz e se deixou levar, preso, até a França, na tentativa de negociar. Acabou morto numa prisão em Forte Joux, nos Alpes. O maior líder da revolta foi traído por sua própria confiança na liberdade.

O movimento independentista não parou. Nova rebelião, desta vez liderada por Dessalines, derrotou as tropas de LeClerc e proclama a independência da ilha em 1804 sob o nome de Haiti. O ciclo da revolução negra se fechava depois de mais de uma década de conflitos com um saldo de pelo menos 200 mil mortes entre os rebeldes.



“A revolta iniciada por Toussaint L’Ouverture visava assegurar aos habit© AKG IMAGES/LATINSTOCK

Durante a rebelião, os escravos destruíram plantações e mataram latifundiários / Revolta dos negros em São Domingos comandados por Toussaint L’ Ouverture, xilogravura, Yan Dargent, Alinhar ao centro1860

antes da colônia os mesmos direitos que os da metrópole. Era uma luta pela igualdade, e essa luta sempre foi um equívoco dos movimentos negros. Jacques Dessalines, aliado de Toussaint, não pensava em igualdade. Sabia que a liberdade de sua gente só estaria assegurada se lutasse pelo poder”, explica Afonso Teixeira Filho, tradutor para o português da obra Os jacobinos negros.

A repercussão da revolução de São Domingos foi gigantesca para a luta contra a escravidão. Ainda maior era o temor dos escravocratas de que a revolta influenciasse todas as Américas. O historiador John Hope Franklin escreveu, em Da escravidão à liberdade, que os americanos ficaram horrorizados diante das notícias do que acontecia no Haiti. A partir de 1791, “muitos preocuparam-se mais com os acontecimentos no Haiti do que com a luta de vida ou morte que se desenvolvia entre França e Inglaterra”. No Brasil, muitos comentaristas nativos e estrangeiros escreveram sobre os perigos da revolta em terras tupiniquins, embora a influência tenha sido limitada. Alguns milicianos mulatos no Rio de Janeiro usavam retratos de Dessalines.

EXEMPLO PARA O MUNDO
“No período da Regência (1831-40), o termo ‘haitianismo’ foi usado como um epíteto contra jornais que supostamente representavam os interesses da população de cor livre e abordavam persistentemente a questão racial”, diz Stuart Schwartz, em Segredos internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial. Nenhum dos inquéritos judiciais contra as rebeliões escravas na Bahia apontava a inspiração haitiana, mas não há dúvidas sobre sua importância na luta contra a escravidão colonial.

A revolução de São Domingos tocou no cerne dos interesses da época. Naquela geopolítica, a derrota das tropas francesas fez com que Napoleão vendesse a Louisiana a preços baixos e evitou uma possível expansão nas Américas. Gerou, claro, grande impacto no mercado do tráfico de escravos e no preço do açúcar. Quando o parlamentar francês Jean Jaurès, autor de História socialista da Revolução Francesa, classifica a Revolução Francesa de “triste ironia da história humana”, uma análise pode ser estendida ao Haiti. Isso porque a própria riqueza do comércio de escravos deu orgulho suficiente para a burguesia francesa lutar pela Revolução Francesa – liberdade e igualdade de direitos dos seres humanos. Ou seja, a desumanidade da escravidão gerou a revolução da emancipação humana. E a principal fonte de recursos dessa burguesia, a venda de escravos a São Domingos, se esvaiu depois que a liberdade impregnou as mentes dos habitantes do Haiti. Causou outra ruptura. Ironia de um realismo fantástico.

REVOLUÇÃO NA FRANÇA
9/7/1789
Nobreza, clero e burguesia (Estados gerais) discutem a crise

14/7/1789
Queda da Bastilha, símbolo do absolutismo

26/8/1789
Votação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

1792
Após a convenção nacional, a monarquia é abolida

1793
Rei Luís XVI é guilhotinado

1804
Napoleão proclama-se imperador

EM SÃO DOMINGOS
1791
Início das primeiras rebeliões de escravos

3/9/1791
Assembléia francesa decreta igualdade de direitos em São Domingos

1793
O líder rebelde Toussaint L’Ouverture é nomeado general da República

1801
São Domingos proclama uma Constituição e se torna província autônoma

1802
Napoleão envia tropas para retomar o domínio da colônia

1804
Dessalines proclama a independência do Haiti

Aloisio Milani é jornalista. Foi enviado para acompanhar a situação do Haiti com a chegada da missão de paz da ONU. Publicou o web-documentário Bon Bagay Haiti, pela Agência Brasil, e prepara um livro-reportagem sobre o mais pobre país das Américas

Revista Historia Viva

O milagre da multiplicação de relíquias

Tentando atrair fiéis e peregrinos, as igrejas medievais disputaram cada objeto ou parte do corpo de Jesus que pudesse ser conservado... ou falsificado
por Paul-Eric Blanrue

© ACHIM PRILL /ISTOCKPHOTO

Basílica de São João de Latrão, que abriga diversas relíquias de Jesus, como o Prepúcio e o Umbigo sagrados

Durante a Alta Idade Média, os cristãos começaram a cultuar homens e mulheres que haviam realizado grandes sacrifícios em nome da fé e assim conquistaram a salvação, muitas vezes por meio do martírio. Tais realizações faziam com que seus semelhantes os considerassem seres especiais, santos, cujas ações passaram a ser vistas como um código de conduta a ser seguido pela comunidade de fiéis. Assim nasceu o culto aos santos e mártires.

Para os cristãos da época, porém, não bastava venerar de maneira abstrata tais figuras. Partes dos corpos dos santos ou objetos usados por estes em vida, as relíquias, se tornaram importantes objetos de culto. Logo, esse culto se voltou para o mais importante de todos os cristãos, o próprio Jesus Cristo. Foi assim que as relíquias de Cristo se tornaram as mais numerosas da cristandade e passaram a mobilizar o maior número de fiéis. Qualquer objeto ou parte do corpo do Senhor começou a ser disputado entre as diversas comunidades cristãs medievais.

A cobiça pelas relíquias de Cristo se explica. Durante a Idade Média, quando foram construídas as principais catedrais católicas do mundo, a edificação dos templos era financiada por donativos da comunidade, e a capacidade da igreja de atrair fiéis e peregrinos estava diretamente relacionada à quantidade e qualidade de relíquias expostas para veneração. Nesse contexto, os espólios de Jesus eram os mais capazes de angariar generosas doações para igrejas e mosteiros.

Coincidência ou não, na época os objetos com os quais Jesus teve contato direto chegavam à casa das centenas, quando não dos milhares. O berço sagrado se tornou propriedade da igreja de Santa Maria Maior, em Roma. O feno que teria sido usado para cobrir o berço, por sua vez, foi reivindicado pelos fiéis da região da Lorena, na França. Enquanto isso, as ânforas utilizadas nas bodas de Cana espalharam-se pelas igrejas européias. No total, 13 exemplares eram apresentados como autênticos, ainda que a Bíblia só fale de seis.


CATEDRAL DE SAO JOAO BATISTA, TURIM

O sudário de Turim, sobre o qual pode ser vista a silhueta de um homem que alguns acreditam ser Jesus.

Como as relíquias refletem cada momento da vida de Cristo, os objetos usados durante os episódios da Paixão ocupam lugar de destaque. A mesa da Santa Ceia está em Roma, ao passo que a toalha se encontra na Santa Capela de Paris. As roupas estão espalhadas pelo Velho Continente: exemplares do Manto Sagrado são conservados tanto em Argenteuil, na França, quanto em Trier, na Alemanha (os padres das duas comunidades, porém, chegaram a um acordo: a túnica que fica na França foi considerada “roupa de baixo”, e a outra, “roupa de cima”). O chicote com o qual os romanos açoitaram Jesus encontra-se na abadia de São Bento, na cidade italiana de Subiaco; a coluna da Flagelação está na igreja de Santa Praxedes, em Roma; por fim, a escada utilizada por Cristo para ir ao palácio de Pilatos foi parar na basílica de São João de Latrão.

Devido à sua importância, as relíquias da Paixão são as que despertam as maiores polêmicas. Ironizando, o reformador João Calvino contou 14 pregos na Cruz de Cristo. Já o erudito Fernand de Mély estimou existirem mais de 700 espinhos da coroa usada por Cristo espalhados pelo mundo. Diante da proliferação de objetos, fica a dúvida se essas relíquias seriam peças genuínas ou simples falsificações. O caso da “Verdadeira Cruz” é um bom exemplo. Segundo dois relatos clássicos, Helena, mãe do imperador Constantino, teria descoberto no Gólgota o local exato da cruz usada para crucificar Jesus. O problema é que em um dos relatos Helena teria identificado o objeto graças a uma visão, enquanto em outra versão ela teria ameaçado os judeus de Jerusalém para que estes lhe indicassem a localização exata. Esses relatos são incompatíveis com uma terceira versão, que atribui a descoberta a Protonice, mulher do imperador romano Cláudio. A polêmica, porém, não impediu que a Verdadeira Cruz fosse devidamente fracionada e que seus pedaços fossem espalhados por mais de 1.150 lugares ao redor do mundo. O cético Calvino afirmou que se reuníssemos todas essas lascas, elas “somariam o carregamento completo de um grande navio”.

Apesar da popularidade que o culto às relíquias de Jesus alcançou durante a Idade Média, a crença nas virtudes mágicas desses objetos não é amparada pela leitura dos textos oficiais da Bíblia. É preciso recorrer aos textos apócrifos, em especial ao Evangelho da Infância, para encontrar referências aos poderes sobrenaturais dos pertences de Cristo. Nesse texto, as túnicas do menino Jesus me expulsam os demônios e inflamam a imaginação do leitor. Embalados por relatos como este, os cristãos medievais conferiram poderes especiais não só aos objetos pessoais de Cristo, mas também a partes de seu próprio corpo: dentes, cabelos, fios de barba, marcas de pisada etc.


CATEDRAL DE SAO JOAO BATISTA, TURIM

Detalhe do sudário em positivo (esquerda) e negativo (direita).

CRISTO PICOTADO

Alguns pedaços do corpo do Senhor são especialmente disputados. O Prepúcio sagrado é supostamente conservado em uma série de igrejas européias. A santa membrana é reivindicada por comunidades cristãs na Itália, na Alemanha e na França, desde a basílica de São João de Latrão, em Roma, até a abadia de Charroux, na região francesa de Vienne, passando pelas dioceses da Saxônia, de Chartres, de Puy-en-Velay, de Metz, de Conques e de Clermont. Para evitar a multiplicação ao infinito do Umbigo sagrado, o papa Clemente V mandou picotá-lo em três pedaços, enviados a Constantinopla, São João de Latrão e Notre-Dameen- Vaux. Sábia decisão, o que não impediu Clermont-Ferrand de também reivindicar um – aparentemente inteiro!

O Sangue sagrado tornou-se uma relíquia particularmente preciosa em razão das palavras que Cristo teria pronunciado na famosa Ceia, “isto é meu sangue”, fundamento da eucaristia. Gotas dele são conservadas em Bruges, Mântua, Auvergne, Flandres e Normandia. Esse sangue teria originado inúmeros milagres.

Seu culto rendeu até uma bela anedota contada pelo filósofo David Hume em sua História da Inglaterra. Segundo ele, no condado de Gloucester se expunha um frasco que supostamente continha o sangue de Cristo, que só aparecia à pessoa que tivesse feito um número de boas ações suficiente para obter a absolvição; todas as demais eram privadas da graça. Mas o estratagema foi descoberto: “Dois monges que ficavam escondidos punham todas as semanas sangue de pato em um frasco de cristal: um lado era fino e transparente, e outro espesso e opaco. Quando chegava algum peregrino rico, os monges nunca deixavam de lhe mostrar o lado escuro e espesso, até que missas e doações tivessem expiado seus pecados – e quando se avaliava que seu dinheiro, sua paciência ou sua fé estavam prestes a acabar, concedia-se a ele o favor de o frasco ser virado, expondo o lado transparente”.

Nenhuma outra relíquia, porém, mexeu tanto com a imaginação dos fiéis quanto os sudários de Jesus, que proliferaram na Idade Média. Uma mortalha de Cristo é mencionada pelos próprios Evangelhos, mas os relatos bíblicos não a descrevem nem dão maiores informações sobre de que forma o santo tecido teria sido conservado e transmitido às futuras gerações de cristãos. Os escritos mais antigos sugerindo que tais mortalhas foram conservadas datam do século VI. O relato do anônimo de Plaisance, de 570, narra uma expedição à Terra Santa, na qual o autor menciona o lugar onde estava guardado o sudário que “cobriu a face de Jesus”, em uma caverna situada às margens do rio Jordão. No século seguinte surge outra obra, na qual o abade escocês Adamnan narra a história de Arculfo, bispo de Périgueux, que visitou Jerusalém por volta de 680. Segundo Adamnan, naquela ocasião Arculfo beijou o sudário de Jesus, que mediria cerca de 2,50 metros. Alguns autores acreditam que essa relíquia tenha sido incorporada ao tesouro de Carlos Magno por volta de 797, em Aix-la-Chapelle. Essa seria a peça que Carlos, o Calvo, neto de Carlos Magno, transferiu em 877 para a abadia de São Cornélio de Compiègne e que teria desaparecido na época da Revolução Francesa.

No século XII , outro sudário apareceu, por sua vez, na abadia cisterciana de Cadouin, na região de Périgord, no sul da França. Tecido branco imaculado e retangular, media 2,81 metros x 1,13 metro, tinha nas extremidades oito faixas enfeitadas e paralelas e era uma das mais importantes relíquias da cristandade medieval. Catorze bulas papais atestaram sua autenticidade, e ele teve a sorte de sobreviver ao furor revolucionário, mas sua autenticidade foi finalmente questionada por um jesuíta, o padre Francez, na década de 30. Ao se debruçar sobre o tecido, o padre percebeu que as inscrições nas extremidades das faixas incorporavam na trama caracteres cúficos, que foram decifrados pelo diretor do Museu Árabe do Cairo: eram bênçãos muçulmanas em honra do califa egípcio Musta-Ali e de seu sucessor. A relíquia era um manto que fora oferecido como presente na época do califado fatímida por volta do ano 1100. Após a descoberta do padre, a peregrinação a Cadouin cessou de imediato.

Outras relíquias passaram melhor pela prova do tempo. Na catedral de Oviedo, capital da província espanhola de Astúrias, desde o século XI venera-se um tecido que teria sido posto sobre o rosto de Jesus na descida da cruz. Trata-se de um pequeno pedaço de linho branco, originalmente manchado e amassado. As primeiras pesquisas científicas, iniciadas em meados do século XX, revelaram que esse tecido estava impregnado de sangue, que alguns afirmam ser do mesmo tipo (AB) que aquele encontrado no mais célebre dos sudários, o de Turim.

De todas as relíquias de Jesus, esse pedaço de linho retangular de 4,30 metros por 1,08 metro, conservado desde 1694 na capela real contígua à catedral de São João Batista em Turim, é a mais notável de todas. Nele distingue-se a silhueta de um homem inteiramente nu, que apresenta marcas que lembram os ferimentos da Paixão na barriga e nas costas. A imagem está esmaecida, o que lhe confere um aspecto espectral surpreendente. Manchas vermelhas, com aparência de sangue, podem ser vistas nos locais dos ferimentos. Ao contrário da maioria das outras relíquias católicas, esse pedaço de tecido tem sido objeto de pesquisas científicas e históricas há mais de 50 anos. O interesse pela peça vem desde 1898, quando o advogado Secondo Pia fez as primeiras fotos do tecido. No negativo, Paia observou que a imagem “positiva” do corpo de Cristo se destaca do fundo sombrio do tecido. Enquanto no original só se adivinha uma vaga silhueta, no negativo é possível distinguir detalhes insuspeitos de seu corpo atlético. Como isso seria possível, já que o princípio da fotografia se tornou conhecido só no século XIX?

FALSIFICAÇÃO SAGRADA
Em 1978, uma equipe do Shroud of Turin Research Project (Projeto de Pesquisa do Sudário de Turim) realizou o exame científico mais midiático da peça. O resultado do estudo foi divulgado no dia 18 de abril de 1981: existe realmente sangue no sudário, e a imagem resulta de um procedimento misterioso, que exclui a hipótese de pintura. Mas esses resultados foram contestados por Walter McCrone, analista especializado em detecção científica de falsificações em obras de arte. Seu veredicto: “A imagem inteira foi aplicada sobre o tecido por um artista extremamente habilidoso e bem informado”. O artista, segundo ele, utilizou um pigmento de óxido de ferro associado a uma substância à base de colágeno animal.

Para rebater as afirmações de Mc-Crone, a Igreja realizou, em 21 de abril de 1988, um exame para datar o sudário utilizando a técnica de radiocarbono. Os resultados indicaram que a peça teria sido fabricada em algum momento entre 1260 e 1390. A conclusão, publicada na revista científica Nature, era clara: o tecido do sudário de Turim é medieval. O teste, porém, não encerrou a polêmica sobre a peça. Desde então, muitos foram os estudiosos que tentaram refutar esses resultados. A tentativa mais recente foi a do químico Raymond Rogers, que conta em um artigo publicado em 2005 como utilizou um método de datação pessoal para contestar a validade da análise de radiocarbono.

Seja como for, a controvérsia em torno do sudário não é de hoje. O primeiro a apresentar o tecido como uma falsificação foi ninguém menos que o papa Clemente VII, em pleno século XIV, na própria época de seu surgimento. Em uma bula papal de 6 de janeiro de 1390 o papa ordenava que, sempre que tal pedaço de pano fosse exposto, deveria se esclarecer ao público que não se tratava de uma peça original. Segundo o sumo pontífice, era preciso que se fizesse “anúncio à população, no momento de maior afluência, de modo claro e inteligível, para impedir a fraude, de que a dita figura ou representação não era o verdadeiro Sudário de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas sim uma pintura ou representação do Sudário que se diz ter sido do próprio Senhor Jesus Cristo”.

Fraudes ou não, o fato é que mantos, espinhos e tantos outros objetos relacionados à vida de Jesus continuam a fascinar os devotos até os dias de hoje. Em última análise, esse culto às relíquias deu origem a um dos mais belos mitos medievais: a lendária busca pelo Santo Graal, a taça que Cristo teria utilizado na última Ceia. Nesse campo, a tênue linha que separa a história do mito talvez nunca possa ser cabalmente traçada.

A Natividade


© AKG Images/Latinstock

A noite sagrada, Jacques Stella, óleo sobre tela, 1640, Museu Schloss Weissenstein, Pommersfelden


A Ceia

A Última Ceia, têmpera sobre madeira, Dieric Bouts, 1464-1467, Catedral Saint Peter, Lovaina

Evidentemente, a última refeição de Cristo ocupa lugar de destaque: a mesa está em Roma, a toalha, na Santa Capela de Paris

O Graal aparece na Ceia. Ignora-se o número de exemplares, já que ele é, justamente, objeto de uma busca eterna

A crucificação

Cristo como homem das dores, têmpera sobre madeira, Mestre Francke, 1424, Museum der Bildenden Künste, Leipzig

UM ILUSTRE SUSPEITO

DIVULGAÇÃO

O Sudário de Turim – Como Leonardo da Vinci enganou a história. Lynn Picknett e Clive Prince. Record, 2008.

Recentemente lançado no Brasil, o livro O Sudário de Turim – Como Leonardo da Vinci enganou a história, de Lynn Picknett e Clive Prince, joga mais lenha na fogueira da discussão sobre a célebre relíquia. Segundo eles, o falsificador do sudário seria ninguém menos do que Leonardo da Vinci, que teria pintado a peça no século XV. É ler para crer.

Paul-Eric Blanrue é historiador, escritor e autor de Miracle ou imposture? L’histoire interdite du Suaire de Turin (Milagre ou impostura? A história proibida do Sudário de Turim – EPO/Golias, 1999).

Revista Historia Viva

Deng Xiaoping - O arquiteto do milagre chinês

O pragmático sucessor de Mao Tsé-tung mudou os rumos do socialismo em seu país e traçou o projeto de desenvolver a China por meio da liberalização econômica sem democracia
por Rémi Kauffer

© DAVID HUME KENNERLY/GETTY IMAGES

Recém-empossado como vice-primeiro-ministro, Deng Xiaoping participa de recepção ao presidente americano Gerald Ford em Pequim, em 1975



Quem acredita em signos – coisa sempre importante quando se pensa na China – faz questão de lembrar que Deng Xiaoping nasceu no dia 12 de julho de 1904, sob o signo do dragão, sinônimo de grandes perturbações e, ao mesmo tempo, de prosperidade. Já os amantes da história observam que aquele também foi o ano da irrupção da Guerra Russo-Japonesa, conflito que se encerraria com a surpreendente vitória de um país asiático sobre uma potência européia.

Era o início de um século de crises e conflitos. Nos quatro cantos do mundo, e particularmente na Ásia, as reivindicações nacionais emergiam tal como o dragão adormecido desperta no seio da terra. Na China, esse dragão atendia pelo nome de Kuomintang, movimento nacionalista fundado por Sun Yatsen, do qual o próprio pai do jovem Deng era simpatizante.

O futuro líder comunista cresceu em meio a essa efervescência política e aos 15 anos, depois de concluir o ensino fundamental, partiu para a França, onde desembarcou no fim de 1920. Na Europa tomou contato com o marxismo e finalmente estabeleceu-se em Paris em 1925 enquanto uma revolta antibritânica explodia em sua terra natal. Tudo começou em Xangai, depois que um ofi cial inglês ordenou o fuzilamento de 12 chineses. Diante da agressão, os militantes do Kuomintang, agora oficialmente aliado da União Soviética e da Internacional Comunista (Comin tern), reagiram com a greve geral, marchando ao lado do Partido Comunista Chinês.

A onda de revolta chegou até a França e, na qualidade de um dos líderes comunistas chineses mais influentes em Paris, Deng ajudou a organizar grandes protestos contra a embaixada de seu país. Para fugir da perseguição que se seguiu, ele partiu para a clandestinidade e buscou exílio em Moscou.


©REUTERS/LATINSTOCK


Deng Xiaoping e Mao Tse-tung juntos em março de 1959. O ímpeto de Mão era contrabalançado pela paciência do secretário-geral do partido


Na capital soviética, o “Pequeno Timoneiro” converteu-se num militante comunista disposto a todas as missões. E estas não faltavam. De volta à China, teve seu primeiro encontro com Mao Tsé-tung no dia 7 de agosto de 1927. Em seguida, foi enviado a Xangai para ajudar os comunistas locais na disputa contra os militantes locais do Kuomintang, liderados por Chiang Kai-shek.

Atuando na clandestinidade, o jovem ativista adotou o nome de “Deng Xiaoping” (a Pequena Paz), mas foi com o nome de guerra de Deng Bin que organizou, por ordem expressa do partido, diversas insurreições rurais fracassadas: na região de Guangxi, perto da fronteira com a Indochina.

Após essas tentativas frustradas de insurreição, fi nalmente Deng incorporou-se à Longa Marcha (ver glossário) em 1935. Rompendo à força o cerco dos soldados de Chiang Kai-shek, os comunistas abandonaram as montanhas do sul do país e se deslocaram até Yenam, no norte, onde instalaram uma nova capital revolucionária. Ao longo da marcha, Mao Tsé-tung tornou-se o líder inconteste do comunismo chinês. Em janeiro de 1935, Deng Xiaoping foi promovido ao posto de secretário do Comitê Central na decisiva conferência de Zunyi, na qual Mao se impôs.

Em Yenam, Deng teria papel destacado na guerra contra os japoneses. Ao lado do “Dragão Caolho” Liu Bocheng, assumiu o comando do exército “Liu-Deng” contra as tropas do Kuomintang, e se tornou um curinga na nova República Popular da China proclamada por Mao, em Pequim, em outubro de 1949.



©REUTERS/LATINSTOCK

A repressão aos protestos estudantis da praça Tianamen, em Pequim, provou que Deng Xiaoping não estava disposto a permitir a democratização da China


De volta à sua Sichuan natal, Deng foi encarregado primeiro de administrar a província e, depois, de organizar a anexação manu militari do Tibete. Seu desempenho brilhante nas duas tarefas lhe abriu o caminho, em agosto de 1952, para a Cidade Proibida, transformada em quartelgeneral dos dirigentes comunistas.

Em 1954, Mao Tsé-tung assumiu a presidência da República, Liu Chao-chi, instalou-se à frente da Assembléia Nacional Popular, e Deng Xiaoping se tornou secretário-geral do Partido Comunista Chinês. Mão gostava dele e os dois se encontravam com muita freqüência.

Chu En-lai acumulava as funções de chefe do governo e ministro das Relações Exteriores. Ainda que totalmente subjugado por Mao, o primeiro-ministro nunca abriu mão de certa dose de realismo. Sem dúvida, foi por esse motivo que se transformou no segundo “padrinho” de Xiaoping. Na ação do pequeno sichuanês, Chu detectava a marca de um pragmatismo ardente. Isso o agradava, pois Mao, na sua utopia da mutação per manente, já estava jogando o país no funesto “Grande Salto Adiante”, que custaria a vida de cerca de 20 milhões de chineses e cujo fracasso o levou a perder a presidência da República para Liu Chao-chi em abril de 1959. Ao lado de Liu, Deng teve um papel importante nesse afastamento. Mão se encheu de raiva, mas nunca confessaria a Deng o ódio feroz que sentia de Liu. Mais do que indulgência, uma estranha cumplicidade unia dois dirigentes tão diferentes como Mao e Deng. “Está vendo aquele homenzinho ali? É inteligentíssimo. Tem um grande futuro pela frente”, disse Mão a Nikita Kruchev em 1957.

Obcecado pela história antiga de seu país, Mao Tsé-tung se sentia um continuador dos imperadores que governaram ao longo dos séculos. Aos seus olhos, a Longa Marcha, a tomada do poder e a instauração de um novo regime constituíam atos igualmente fundadores. O Partido Comunista era apenas uma espécie de “nova dinastia” coletiva destinada a fazer com que a China renascesse.


© BOBBY YIP/REUTERS - LATINSTOCK

Chineses acompanham a passagem da tocha olímpica pela província de Guangdong diante de um imenso retrato de Deng Xiaoping, em maio de 2008


YIN E YANG Nessa óptica, os vínculos pessoais eram tão importantes quanto os critérios ideológicos. O ímpeto de Mao era contrabalançado pela paciência de Deng, certamente mais sensato, às vezes mau aluno, porém muito hábil e excelente organizador. Contanto que estivesse cercado de uma sólida equipe de ideólogos maoístas, o pequeno Deng podia agir.

A partir do fim de 1965, Mão procurou reconquistar o status de chefe incontestável lançando o país nos horrores da Revolução Cultural, novo episódio sangrento que causaria a perda de 60 a 70 milhões de vidas e condenaria a China a um retrocesso de anos. Seu método: a “ideologização” radical dos conflitos. Seu objetivo: mobilizar as massas e lançá-las contra o aparelho do partido e contra Liu Chao-chi, que tinham se atrevido a chutá-lo para escanteio. Sua aliada do momento: a esposa Chiang Ching.

Atormentada pelas convulsões, toda a China pensava unicamente em termos ideológicos: “Mais vale ser vermelho do que especialista”. É bem verdade que Deng se calou, mas... que fazer? Em primeiro lugar, era preciso salvar a pele. Quase na mesma situação de Liu Chao-chi, o “Kruchev chinês”, ele não tardou a ser acusado de traição por Chiang Ching, Lin Piao e Kang Cheng. Deng escolheu sua tática: não contra-atacar, aguardando que a tempestade acalmasse. Aceitou tudo sem hesitar, desde autocríticas públicas até o exílio no interior para se “reeducar” em contato com os operários.

Ao contrário de Liu Chao-chi e de Lin Piao, essa tática precavida do bambu que se dobra sem se romper permitiu-lhe sobreviver. Aliás, ele se beneficiou de dois apoios essenciais: o de Chu En-lai e o de Mao, disposto a poupar para a China o seu subordinado mais pragmático.

Graças a esse apadrinhamento duplo, Deng retornou à cena em 1973, para azar de Chiang Ching e dos “radicais”. No plano prático, foi ele que auxiliou Chu, acometido de câncer tal como Kang Cheng. E, aparentemente, reatou a relação de intimidade que outrora tivera com Mao. Para a população, o nome do ex-secretário-geral do partido transformou-se em sinônimo de esperança.

Em abril de 1976, Deng e seus aliados exploraram ao máximo as manifestações na praça Tiananmem, a faísca que, com o pretexto de homenagear a memória de Chu En-lai, incendiou todo o prado contra o Bando dos Quatro (ver glossário). Enfurecido com mais essa prova de independência, Mão ordenou sua destituição, mas, simultaneamente, deu-lhe proteção pessoal. Uma vez mais o dirigente chinês aceitou acolher debaixo da asa aquele que se dispunha a torcer o pescoço do maoísmo.

Apesar de um eclipse provisório, aquele foi, na verdade, o início da irresistível ascensão de Deng Xiaoping. Mao morreu no dia 9 de setembro de 1976. A luta pela sucessão começou imediatamente, opondo o Bando dos Quatro a Hua Guofeng, um maoísta um tanto inexpressivo e menos radical, que o falecido líder havia entronizado no último momento. Antecipando-se a Chiang Ching e seus amigos, que preparavam um golpe de força, Deng e os generais moderados esmagaram o Bando dos Quatro com o apoio ativo de Wang Dongxing, o “gorila” de Mao.

Hua Guofeng não durou mais que alguns meses no poder. No fim de 1978 tudo ficou decidido: Deng se tornou o verdadeiro número um, cercado dos discípulos Hu Yaobang e Zhao Ziyang. Homens dos quais ele não vacilaria em se livrar em caso de necessidade, assim como não titubearia em jogar na prisão qualquer um que ousasse reivindicar a “quinta modernização”: a democracia.

“MILAGRE ECONÔMICO”
Deng Xiaoping não acreditava na democracia. Pelo menos demoraria muito a chegar a tanto. A China só se desenvolveria se conduzida pela única força centralizada do país, o Partido Comunista. Sem dúvida, um partido disposto a discutir, aberto, realista no plano econômico, mas cujo papel de guia não podia ser contestado. No fundo, as coisas não tinham evoluído desde que o jovem Deng aderira ao comunismo. Dramaticamente retardada por dez anos de Revolução Cultural, a China continuava sendo, aos seus olhos, um país imenso, pobre, subdesenvolvido que precisava “ser parido a fórceps”.

Sem consideração pelo amor-próprio tradicional de seus compatriotas, Deng não cessava de pôr o dedo na ferida. Mao queria fazer da China um novo Império do Meio. Deng defi niu um objetivo mais limitado para sua pátria: “chegar, na metade do século XXI, ao nível de um país medianamente desenvolvido”. E criou um método para isso: “Para que o socialismo seja concretamente superior ao capitalismo, é necessário que ele seja capaz de nos tirar da pobreza”.

O rumo a ser seguido era o da liberalização econômica sem democracia, e Deng se empenhou com ardor em construir esse caminho. Se durante a Revolução Cultural a China havia se tornado o império do “totalmente político”, sob Deng Xiaoping o Ocidente passou a vê-la como o reino do “totalmente econômico”.

Esse raciocínio, porém, era um tanto limitado: a realidade chinesa também era política, como demonstraram os protestos estudantis na praça de Tiananmem, em abril de 1989, ao reivindicarem o advento da democracia.

A resposta foi a repressão comandada pelo marechal Yang Shangkun e seu cunhado, o general Yang Baibing. Sangue nas ruas de Pequim. Apesar das aparências, nem por isso o principal líder chinês restaurou o maoísmo. Foi justamente o que ele demonstrou ao apoiar, na década de 90, o retorno progressivo e cautelosamente controlado do clã “reformador” (no sentido econômico do termo). Mas continuou fiel ao seu credo: sem a estrutura de um partido dirigente forte, a China jamais viria a ser uma grande potência. O homem que liqüidou o maoísmo nunca cogitou de se livrar de toda a herança do “imperador vermelho”, e aplicou ao seu antigo mestre a avaliação que Mao havia feito do próprio Deng 20 anos antes: “70% de bom e 30% de ruim”.

CRONOLOGIA


COLEÇÃO PARTICULAR

O futuro líder chinês na infância

1904
Nasce na província de Sichuan, em 22 de agosto

1920
Muda para a França, onde entra em contato com o marxismo

1925
Em Paris, participa de protestos contra a presença britânica na China e é obrigado a se exilar na União Soviética

1935
Participa da Longa Marcha e é promovido a secretário do Comitê Central do Partido Comunista Chinês

1949
Após o triunfo da revolução, assume a administração da província de Sichuan

1965
Início da Revolução Cultural. Deng Xiaoping é acusado de traição e enviado para campos de trabalho

1973
Deng é reabilitado politicamente. No ano seguinte é nomeado vice primeiro- ministro

1978
Assume o comando da China, e dá início a amplo programa de reformas econômicas

1989
Reprime violentamente os protestos estudantis da praça Tianamen, em Pequim

1997
Morre no dia 19 de fevereiro

GLOSSÁRIO
LONGA MARCHA: retirada das tropas do Partido Comunista Chinês para fugir da perseguição do Kuomintang entre 1934 e 1935. O movimento consolidou a liderança de Mão Tsé-tung.

BANDO DOS QUATRO: núcleo radical do Partido Comunista Chinês ligado a Mao Tsé-tung formado por sua esposa, Chiang Ching, e por Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wanga Hongwen, todos acusados de cometer excessos durante a Revolução Cultural.

Rémi Kauffer é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e membro do comitê editorial da revista Historia.

Revista Historia Viva