segunda-feira, 30 de maio de 2022

A Educação Infantil na Idade Média



A Educação Infantil na Idade Média [1]

Ricardo da Costa
Prof. Adjunto de Hist. Medieval da UFES
Universidade Federal do Espírito Santo.
Home-page: www.ricardocosta.com


No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo”. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante [2] .

Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?” [3] Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès [4] , ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia [5] e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a [6] .

Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès [7] . Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças [8] .

*

Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor [9] . Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?

De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos [10] , e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas [11] . Vejamos então o caso medieval.

A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas [12] . E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte [13] .

A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social [14] . O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social [15] . No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos [16] .

Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista [17] . Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte [18] .

Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições [19] . O Cristo disse:

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).

A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária [20] . No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos [21] . À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença [22] .

Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:

Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus) [23]

Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo [24] . Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra [25] – há espaço para amor materno.

Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato [26] . Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros [27] , recebendo indistintamente todas as crianças entregues [28] , vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional [29] .

As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância [30] . Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade [31] .

As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a outrem o que não queres que te façam.” [32] Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos [33] ; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas [34] , pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo [35] ), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época [36] . Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico [37] , linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro [38] .

Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:

Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar. [39]

Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria... [40]

Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.

Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia [41] e ainda havia a questão da escravidão de crianças [42] . Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.

Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos) [43] . Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública [44] . Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (charitas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos [45] .

Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres [46] . Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas [47] . Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.

*

Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem [48] . Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? [49] Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos [50] . Muito moderna a educação medieval! [51]

*



[1] Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!


[2] Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.


[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.


[4] ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.


[5] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.


[6] LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.


[7] Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!


[8] Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.


[9] MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.


[10] BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.


[11] Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.


[12] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.


[13] VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.


[14] “Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.


[15] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.


[16] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.


[17] DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)


[18] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.


[19] Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.


[20] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.


[21] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.


[22] Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).


[23] Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296).


[24] “Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.


[25] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.


[26] JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.


[27] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.


[28] “Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.


[29] Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.


[30] Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.


[31] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.


[32] Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70. Documento consultado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/bento.htm


[33] “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)


[34] “Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30 (http://www.ricardocosta.com/bento.htm)


[35] “As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.


[36] Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!


[37] MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!


[38] “Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.


[39] San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.


[40] Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).


[41] TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.


[42] “O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.


[43] Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).


[44] “O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.


[45] “Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.


[46] “Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.


[47] Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.


[48] “O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.


[49] Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.


[50] PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.


[51] Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.
http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm

A compreensão da infância como construção sócio-histórica



A compreensão da infância como construção sócio-histórica

The understanding of childhood as a social and historical construction

La comprensión de la infancia como una construcción social e histórica

Samuel Lincoln Bezerra Lins1, Maria de Fátima Oliveira Coutinho da Silva2, Zoraide Margaret Bezerra Lins3,2, Terezinha Féres Carneiro4
1,4 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,2,3 Universidade Federal da Paraíba, Brasil

1 Pos-doutorando em Psicologia na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Psicologia (Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Psicologia Social (UFPB). Graduado em Administração (UFPB) Licenciado e Formado em Psicologia (UFPB). samuel.bezerra.lins@gmail.com
2 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. mfocoutinho@gmail.com
3 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. zoraidelins@yahoo.com.br
4 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Coordenadora do Curso de Especialização em Terapia de Família e Casal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. teferca@puc-rio.br

Forma de citar: Bezerra, SL., Coutinho da Silva M., Bezerra Z, ZM. & Féres C., T. (2014). A compreensão da infância como construção sócio-histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126-137.

Resumo

O presente artigo teve o objetivo de fazer algumas reflexões acerca do conceito de infância, considerando questões sociais e históricas. Procurou-se mostrar diversas perspectivas do conceito, a sua evolução ao longo do tempo, bem como os principais teóricos e trabalhos desenvolvidos sobre a temática, na sociedade ocidental, particularmente, no Brasil.

Palavras-chave: Infância, História, Psicologia Do Desenvolvimento.

Abstract

This article aimed to make some reflections about the concept of childhood, considering social and historical issues. We tried to show different perspectives of the concept, its evolution over time, as well as main theorists and work developed on the field, in Western society, particularly in Brazil.

Keywords: Childhood, History, Developmental Psychology.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo hacer algunas reflexiones sobre el concepto de la infancia, teniendo en cuenta los temas sociales e históricos. Tratamos de mostrar diferentes perspectivas del concepto, su evolución en el tiempo, así como los principales trabajos teóricos y hecho sobre el tema, en la sociedad occidental, particularmente en Brasil.

Palavras-chave: Infancia, Historia, Psicología del Desarrollo.

Introdução

A preocupação com o ser humano em seus primeiros anos de vida ocupa um espaço importante na sociedade contemporânea e nas pesquisas científicas (Bortolini & Vitolo, 2010; Bustamante & McCallum, 2010; David, Gelberg, & Suchman, 2012; Meins, Fernyhough, Arnott, Turner & Leekam, 2011, Pinto, 2009). Discussões sobre a infância estão sendo realizadas por pesquisadores das mais diversas áreas, com o objetivo de compreender melhor como a sociedade ocidental tem percebido a infância ao longo dos anos (Duschinsky, 2013; Leifsen, 2009; Punch, 2007; Tisdall & Punch, 2012).

Assim, surge a necessidade de investigar a origem dos significados levando em conta o contexto no qual a infância emerge e suas relações sociais, econômicas, históricas, culturais e políticas, como condições determinantes para retratar uma imagem da infância contextualizada. Neste sentido, este artigo se propõe apresentar uma contextualização histórica do surgimento da infância na literatura científica, como também seu desenvolvimento no Brasil.

O conceito histórico-social de infância

Definir o termo infância é uma tarefa difícil, que pode se diferenciar de acordo com o referencial que se escolhe. Segundo o dicionário Aurélio, a infância é definida como um "período de crescimento do ser humano, que vai do nascimento até a puberdade". A criança, no mesmo dicionário, é definida como um "ser humano de pouca idade" (Ferreira, 2004). Etimologicamente, o termo 'infância", em latim in-fans, significa sem linguagem. Por sua vez, na tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, e não ter racionalidade, ou seja, a criança é compreendida como um ser menor, e como alguém a ser adestrado, a ser moralizado, e a ser educado (Castro, 2010).

Percebe-se, no entanto, que a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. Khulmann Jr. (1998) afirma que a infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado está vinculado às transformações sociais, visto que, cada sociedade tem seu próprio sistema de classes etárias que estão associadas a um sistema de status e de papéis desempenhados.

Silveira (2000) aponta para o fato de que a sociedade sempre está em movimento e, desse modo, a vivência da infância transforma-se de acordo com os paradigmas do contexto histórico, ou seja, pensar na infância é também articulá-la com outros domínios como a escola, a família e a sociedade.

A importância da criança dentro de uma comunidade varia conforme o período histórico em que ela é considerada, uma vez que cada período imprime na infância uma significação específica, por vezes atrelada às condições sociais, e não apenas à sua condição de ser biológica (Silveira, 2000). A infância, sob essa ótica, registra-se como condição da criança, isto é, caracteriza-se como uma condição social e historicamente construída (Kuhlmann, 1998).

Com efeito, a infância é um tempo específico o qual todos vivenciam, entretanto, sempre se questionou qual era o tempo exato de abrangência da infância e como era percebida esta criança (Castro, 2010). Dessa forma, resgatar os antecedentes da história é dar espaço a inúmeros documentos que revelam o papel da criança desempenhado na sociedade ao longo dos anos. Tais documentos agem como porta-vozes da construção da história da infância e surgem como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma de como compreendemos e nos relacionamos atualmente com a criança.

A importância da construção do conceito de infância teve um grande avanço com os estudos do pesquisador francês Philippe Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, com a publicação da obra História Social da Criança e da Família, em 1960. Foi ele quem formulou um novo olhar historiográfico para o sentimento de infância no mundo ocidental, demonstrando que foi uma concepção socialmente construída durante a época moderna, e destacando aspectos desde a consciência da infância até as especificidades da criança, ou seja, aquilo que a diferencia do adulto.

Segundo relata Ariès (1981), a infância foi um conceito historicamente construído e a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Este autor considera a infância como uma invenção da modernidade, constituindo-se numa categoria social construída recentemente na história da humanidade, onde a emergência do sentimento de infância, como uma consciência da particularidade infantil, é decorrente de um longo processo histórico, não sendo uma herança natural. Essa afirmação desencadeou grandes mudanças na compreensão da infância, já que ela era pensada como uma fase da vida, como qualquer outra. Nesse sentido, a história da infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos relacionamos atualmente com ela.

Historiadores da infância como Charlot (1983), Sarmento e Pinto (1997) e Tomás (2001), explicam que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas na época pós-medieval, geraram subsídios para a percepção moderna da infância, compreendida como campo da vida social específico destacado do campo dos adultos. Assim, a infância passou a ser reconhecida como uma fase diferenciada do ciclo da vida e como algo novo na história da humanidade. Confirma-se então, que a história da infância só começou a ser narrada recentemente, por consequência do anonimato em que a criança viveu no mundo ocidental até o século XVIII. A partir desse século, a infância como categoria histórica, contextualizada cultural e socialmente passou a apresentar diferentes imagens sociais ao longo da história.

A infância como conhecemos hoje foi uma criação de um tempo histórico e de condições socioculturais determinadas, sendo um engano ousar analisar todas as infâncias de todas as crianças com o mesmo enfoque. A compreensão da infância muda com o tempo e com os diferentes contextos sociais, econômicos, geográficos, e até mesmo com as peculiaridades individuais (Ariès, 1981).

Heywood (2004) assinala que por volta do século XII, as condições gerais de higiene e saúde eram precárias, situação que contribuía para elevar o índice de mortalidade infantil, porém, mesmo se as crianças sobrevivessem aos primeiros anos de vida e atingissem certa idade, ainda assim, não possuiriam identidade própria, só vindo a tê-la quando conseguissem realizar atividades semelhantes àquelas desempenhadas pelos adultos.

Sendo assim, os cuidados especiais que as crianças deveriam receber, ou mesmo quando os recebiam, eram destinados apenas aos primeiros anos de vida e reservados aos que possuíam uma situação socialmente e financeiramente privilegiada. Dos adultos, que cuidavam das crianças, não se exigia nenhuma preparação, e esse cuidado era realizado pelas chamadas criadeiras, amas de leite ou mães mercenárias.

Obviamente, isto não significa negar a existência social das crianças, significa reconhecer que, antes do século XVI, a consciência social não admitia a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada do gênero humano. Uma vez passado o estrito período de dependência física da mãe, esses indivíduos se incorporavam plenamente ao mundo dos adultos (Levin, 1997).

No século XIII, atribuía-se à criança modos de pensar e sentimentos anteriores à razão e aos bons costumes. Era tarefa dos adultos desenvolver nela o caráter e a razão, e de modo semelhante, a Igreja procurava cumprir a tarefa de educação, colocando-as a serviço do monastério. Tais costumes podem ser observados facilmente através da arte e iconografias que retratam este século (Heywood, 2004).

O sentimento de infância, presente na sociedade moderna, nem sempre foi valorizado durante a idade média. Praticamente inexistia esse sentimento, tanto da infância como da adolescência, fato que perdurou até o século XVIII. Nesse período, a criança logo que apresentasse algum desenvolvimento misturava-se ao mundo dos adultos, participando de atividades semelhantes, como festas, jogos e brincadeiras. A família na Idade Média não tinha a função afetiva que tem hoje, "era uma realidade moral e social, mais que sentimental" (Ariès, 1981, p.67).

Nos séculos XVI e XVII existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das percepções dos adultos. Porém, só a partir do século XVII foi possível seu reconhecimento em maior número onde as representações da infância divergiam muito da realidade, onde as crianças eram representadas com expressões de adultos, musculosas e vestidas com trajes de adulto. De acordo com Ariès (1981), "a criança deixava os cueiros, ou seja, a faixa de tecidos que era enrolada em torno de seu corpo, ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição" (p. 81). Isto demonstra o quanto as crianças não tinham valor, e a infância era desconhecida, considerada apenas como um período de transição, que logo se ultrapassava.

Foi durante o século XVII que se generalizou o hábito de pintar nos objetos e nas mobílias da casa uma data solene para a família. Constata-se que foi na Idade Média que as idades da vida começaram a ter importância. Durante esse período, então, existiam seis etapas de vida. As três primeiras, que correspondiam à primeira idade (nascimento aos 7 anos), a segunda idade (7 a 14 anos) e terceira idade (14 a 21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a partir da quarta idade, a juventude (21 a 45 anos), as pessoas começariam a ser reconhecidas socialmente. Ainda existindo a quinta idade (a senectude), referente à pessoa que não era velha, mas que já tinha passado da juventude e a sexta idade (a velhice), dos 60 anos em diante até a morte. Tais etapas alimentavam desde esta época, a idéia de uma vida dividida em fases (Ariès, 1981).

Ainda no século XVII, nas classes dominantes, surgiu a primeira concepção real de infância, a partir da observação dos movimentos de dependência das crianças muito pequenas. O adulto passou, então, pouco a pouco, a preocupar-se com ela como um ser dependente e fraco (Levin, 1997). Comenta o autor, que ultrapassar esta fase da vida só para quem saísse da dependência, ou pelo menos dos graus mais baixos de dependência, desse modo a palavra infância passou a designar a primeira idade de vida, a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias de hoje.

Percebe-se, portanto que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância, não havia lugar para esta na sociedade, fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a ela. Só então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças passaram a ser vistas como seres biológicos, que necessitavam de grandes cuidados e de uma rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.

Segundo Heywood (2004), ao analisar o século XVIII, a emergência social da criança nesse século aconteceu devido às obras de John Locke, Jean Jacques Rousseau e dos primeiros românticos. Cita o autor que foi Locke que difundiu a idéia da tábula rasa para o desenvolvimento infantil e de que a criança nascia apenas como uma folha em branco, na qual, se poderia inscrever o que se quisesse.

Enquanto que, para Rousseau, existia a idéia de natureza boa, pura e ingênua da criança, e da necessidade de respeitá-la e deixá-la livre para que a natureza pudesse agir no seu curso normal, favorecendo o pleno desenvolvimento saudável das crianças. Já em relação às concepções românticas da infância, apresentaram as crianças como portadoras de sabedoria, sensibilidade, e estética apurada, necessitando que se criassem condições favoráveis para o seu pleno desenvolvimento.

Assim, cabe destacar, que o tratamento diferenciado remetido à infância aparece entre os séculos XVI e XVIII. Até essa época a educação das crianças confundia-se com sua inclusão nas atividades da sociedade e nos espaços públicos, porém com a Revolução Industrial e a conseqüente urbanização, inicia-se o processo da família nuclear extensa do período feudal (Rabuske, Oliveira & Aripini, 2005).

Já no século XIX inaugura-se uma visão de criança sem valor econômico, mas de valor emocional inquestionável, criando uma concepção de infância plenamente aceita no século XX. Na verdade, como é possível perceber, "a história cultural da infância tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos: a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média" (Heywood, 2004, p. 45).

Pode-se então afirmar que, a mudança de paradigma no que se refere ao conceito de infância está diretamente ligada ao fato de que as crianças sempre foram consideradas adultos imperfeitos, sendo assim, essa etapa da vida seria de pouco interesse, visto que "somente em épocas comparativamente recentes veio a surgir um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes, e, portanto, dignas de ser estudadas por si sós" (Heywood, 2004, p.10).

O que se observou no ocidente foi o movimento de particularização da infância, ganhando forças a partir do século XVIII, a esse respeito:


A família sofre grandes transformações e criam-se novas necessidades sociais nas quais a criança será valorizada enormemente, passando a ocupar um lugar central na dinâmica familiar. A partir de então, o conceito de infância se evidencia pelo valor do amor familiar: as crianças passam dos cuidados das amas para o controle dos pais e, posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos especialistas e das diferentes ciências como Psicologia, Antropologia, Sociologia, Medicina, Fonoaudiologia, Pedagogia, dentre outras tantas (Frota, 2007, p.152).

Nesse sentido, foi através de Rousseau, considerado um dos primeiros pedagogos da História, que a criança começou a ser vista de maneira diferenciada do que até então existia, uma vez que ele propôs uma educação infantil sem juízes, sem prisões e sem exércitos (Levin, 1997). Assim, a partir da Revolução Francesa, em 1789, modificou-se a função do Estado e, com isso, a responsabilidade para com as crianças e o interesse por elas. A partir desse momento os governos começaram a se preocupar com o bem-estar e com a educação das mesmas.

De fato, a infância e a criança tornaram-se objetos de estudos e de saberes de diferentes áreas, constituindo-se num campo temático de natureza interdisciplinar, independentemente da forma como era analisada e do posicionamento teórico que se tinha sobre ela, a infância tornou-se visível como um estatuto teórico.

Essa discussão nos remete à necessidade de pesquisas na área que possam aprofundar e elucidar as questões da infância e as suas transformações, principalmente no que diz respeito às concepções da condição da criança enquanto ser social e sujeito ativo, ou seja, uma criança concreta que ocupa um lugar na história através de relações sociais que se estruturam a cada dia. É importante perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história (Kuhlmann, 1998).

Compreende-se então, que com a evolução nas relações sociais que se estabeleceram na Idade Moderna, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com a sua saúde e a sua educação.

A ciência moderna, ao elaborar um conjunto de características sobre a criança, reconhece a infância como um momento do desenvolvimento humano, abrindo campo para vários estudos e orientações no cuidado e educação desse grupo etário -o universo infantil-. Entretanto, a análise da produção existente sobre a história da infância permite afirmar que a preocupação com a criança encontra-se presente somente a partir do século XIX, tanto no Brasil como em outros lugares do mundo.

O conceito histórico-social de infância no Brasil

Resgatar a história social da infância no Brasil é um fato recente. Se na Europa a historiografia sobre a criança só foi produzida a partir de 1960, através de Ariès, no Brasil, a compreensão da infância parece ter realmente começado no século XIX, intensificando-se nos séculos seguintes (Frota, 2007). Portanto, é recente a preocupação dos historiadores brasileiros sobre este tema, e apesar da História da Criança ter alçado destaque nos últimos anos, ainda está muito presa aos temas da história contemporânea.

De fato, apenas a partir do ano de 1991 surgiu a primeira publicação na historiografia que se propôs a escrever a história da criança brasileira. Esta obra foi organizada por Mary Del Priore e reuniu uma coletânea de textos, de diversos autores, sob o título de História da Criança no Brasil. Em seu trabalho, Del Priore analisou como o sentimento de valorização da criança, corrente na Europa Moderna, identificado por Ariès, esteve presente na prática educativa dos missionários jesuítas no Brasil Colônia. A infância, para estes, era vista como o momento oportuno para a catequese, pois seria o período em que se daria a aprendizagem de princípios e valores que seriam adotados e seguidos por toda a vida (Del Priore, 1991).

A constatação da crescente valorização social da criança, que culminou no que Ariès (1981) denominou descoberta da infância, teve como fontes elementos provenientes da cultura européia. Os processos de colonização, em terras das Américas e da África, são repletos de demonstrações das influências dos modelos europeus nas práticas sociais das populações colonizadas.

Dentre os primeiros registros encontrados sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos jesuítas. No século XVI, estes implantaram um sistema de educação direcionado aos povos indígenas e tinha o propósito de, através do convívio com a doutrina a ser difundida pelos jesuítas, promover mudanças nos costumes da população indígena, considerados inadequados na visão da Colônia e da Igreja (Cruz, 2006). Os cuidados especiais infância eram limitados e as regras e recomendações acerca da vida e educação das crianças eram determinadas, principalmente, pela Igreja (Ribeiro, 2006).

O processo de transição do Brasil Colônia para o Império teve como marco histórico a Declaração de Independência, em 1822. A luta pela independência do Brasil contou com diversos segmentos sociais, entre eles os padres, os intelectuais e os escravos. Com a emancipação política do País, no início do século XIX, fez-se necessário a criação de uma Constituição. Assim, a primeira Constituição brasileira foi promulgada em 1824. Nesta, contudo, mantiveram-se as características do Brasil Colônia, como: trabalho escravo, dependência política do país em relação a Portugal e relações de poder centralizadas no domínio dos grandes proprietários e não havia nenhuma referência à infância ou a práticas relacionadas às crianças (Carvalho, 2008).

Mesmo assim, neste contexto, intensificaram-se as intervenções médicas nas questões de saúde e higiene e, consequentemente, os cuidados dedicados à infância e à família. Este processo de valorização da saúde ocorreu primeiro na Europa, depois no Brasil, chegando ao século XIX com o foco na questão da mortalidade infantil e nas recomendações de cuidados com as crianças. É neste período que se inicia a institucionalização dos saberes médicos e também psicológicos aplicados à infância e, portanto, é quando podemos obter mais registros sobre práticas e políticas dirigidas a meninas e meninos.

Assim, um processo a ser enfatizado na área de atendimento à infância no Brasil e no mundo, caracteriza-se por medidas higienistas-eugênicas, emergentes no fim do século XIX e início do século XX. Embora o higienismo e a eugenia advenham de movimentos diferentes e de circunstâncias históricas e proposições teóricas próprias, suas idéias se aproximaram e se sobrepuseram às políticas e práticas sociais brasileiras (Boarini & Yamamoto, 2004).

A partir do século XIX, estes ditames passaram a ser cada vez mais foco do saber considerado científico. As famílias, especialmente as mães, passaram a receber de modo mais sistemático, orientações desses profissionais sobre saúde e cuidados dirigidos às crianças (Heywood, 2004). Assim, a perspectiva da saúde compõe com a religião e a moral construções de sentidos de infância, passando a normatizar e interferir cotidianamente nos modos de tratar e educar meninos e meninas. Concomitantemente, é nesta época que a infância ganha maior visibilidade, pois é definida como objeto de intervenções públicas, devido à maior valorização da mão-de-obra num mundo em franco progresso da lógica capitalista e industrial (Silva Santos, 2004).

Assim, no século XX, com o desenvolvimento tecnológico e a mobilidade geográfica, o discurso científico médico-psicológico tornou-se o referencial para as práticas direcionadas ao cuidado infantil passando a orientar a relação pais-filhos (Alves, 1999). A ênfase atribuída, no século XX, às responsabilidades e ao papel do adulto em relação à criança aconteceu a partir da institucionalização da Declaração Internacional dos Direitos da Criança, no ano de 1959. Desse modo, os comportamentos e atitudes socialmente construídos adquiriram um caráter de lei, como pode ser observado com a instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, em 1990 (Almeida & Cunha, 2003).

O cuidado atual em estudos sobre a infância recai no evitar os reducionismos de qualquer ordem. Assim, é preciso não deixar a ideia de que a infância é uma construção unicamente social para abandonar o reducionismo biológico e, dessa forma, substituí-lo pelo reducionismo sociológico (Prout, 2004). A criança deve ser vista como um ser completo, biopsicossocial, por isso, é preciso intensificar a interdisciplinaridade dos estudos da infância (Müller & Hassen, 2009, Qvortrup, 2011)

Neste sentido, observa-se o aumento do interesse de investigadores brasileiros na realização de estudos destacando a importância da criança e a compreensão dos seus significados (Silva, Luz & Faria Filho, 2010), em diversos campos do conhecimento como a Sociologia (Abramowicz & Oliveira, 2010), a História (Lage & Rosa, 2011; Poletto, 2012), a Assistência Social (Lockmann & Mota, 2013), e a Psicologia (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012).

Considerações finais

A partir das reflexões sobre as diversas concepções de infância, surge uma preocupação cada vez mais ampla e sistemática com o estudo e compreensão da criança e de seu desenvolvimento. A partir do estudo científico da criança, que se iniciou, efetivamente, no século XIX, como legado maior das Teorias Desenvolvimentistas, surgiu a compreensão da criança como uma categoria científica, notadamente positivista, ou seja, a infância passou a ser concebida como produto do tempo, da natureza e da cultura.

Pode-se ver que, numa perspectiva histórica de milhares de anos, em que predominou o total desconhecimento da criança, a Psicologia do Desenvolvimento Infantil encontrou no seu início diversas dificuldades para se impor como estudo importante e necessário. Hoje, o estudo do desenvolvimento da criança é necessário e indispensável para quem deseja trabalhar com essa fase da vida humana. Além disso, a perspectiva extremamente positivista assumida pela Psicologia do Desenvolvimento, que se preocupava principalmente em observar, medir e comparar as mudanças exibidas pelascrianças ao longo de sua trajetória de vida, foi substituída por uma perspectiva mais histórica (Frota, 2007).

Atualmente, a criança e a infância são compreendidas como categorias construídas historicamente, o que nos abre possibilidades de compreendê-las de modo concreto, na sua expressão de vida. O tempo linear, cronológico e contínuo é superado por um devir, um tempo que não se esgota em si mesmo.

No que se refere à infância, identificamos, nesta trajetória histórica, diferentes significados constituídos em distintos contextos sociais. Do interesse limitado pela criança na Idade Média, até a infância como foco das práticas sociais e formalmente prioritária nas políticas públicas da atualidade, comprovando-se que houve um longo caminho de transformações políticas, econômicas e culturais. Neste sentido, significados e contextos estão intimamente relacionados.

Por outro lado, o estudo dessas perspectivas históricas indica a necessidade de debater e compreender continuamente atribuições, lugares e responsabilidades que o presente nos impõe. Podemos ser protagonistas da construção, assim como temos a chance de participação na geração de espaços de cidadania. Tais possibilidades nos remetem ao campo da ética e, consequentemente, da constante reflexão crítica acerca das interlocuções entre as práticas construídas, nossos projetos político-sociais e os valores que os contemplam.

Assim, a partir do momento em que se alcançou uma consciência sobre a importância da infância, foram criadas várias políticas e programas que visaram a promover e ampliar as condições necessárias para o exercício da cidadania das crianças, que por sua vez, passaram a ocupar lugar de destaque na sociedade. Essa consciência da infância exerceu enorme influência sobre a formação legislativa ao longo dos séculos passados.

Entretanto, somente no final do século XX, foi possível romper, do ponto de vista normativo, com aquele paradigma, quando se acolheu o atendimento às crianças e adolescentes dentro das políticas públicas, reconhecendo-os como sujeitos de direitos fundamentais e especiais, decorrentes da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, responsabilizando o Estado, a sociedade e a família pela garantia e atendimento, com irrestrita prioridade, de todas as suas necessidades.

O marco destes avanços se deu com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela lei 8.069 no dia 13 de julho de 1990, regulamentando os direitos das crianças, considerando a proteção da infância como prioridade absoluta, como determina a Constituição Federal Brasileira. Cabe destacar também a influência das diretrizes da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na proteção ao direito à infância, tendo em vista a elaboração de políticas públicas (Cecílio & Brandão, 2013).

Observa-se que a maneira de como a infância é vista atualmente é consequência- dessas constantes transformações pelas quais passamos, e que é de extrema importância nos darmos conta destas transformações para compreendermos a dimensão que a infância ocupa atualmente. Como ressalta Bujes (2001), este percurso, ou seja, esta história, só foi possível porque também se modificaram na sociedade as maneiras de se pensar o que é ser criança e a importância que foi dada esta fase específica do ciclo vital. Portanto, enquanto pesquisadores e profissionais de saúde, devemos ter sempre uma postura progressista de avanço das descobertas científicas, mas sem desconsiderar a história que nos trouxe até aqui.

Desse modo, as diferentes concepções existentes sobre a criança, na contemporaneidade ocidental, são peças indispensáveis para comporem um quadro geral sobre a infância atual, e necessitam serem conhecidas e compreendidas dentro do contexto no qual foram produzidas. Tais saberes, de diferentes disciplinas e origens teóricas, devem ser convidados ao diálogo, produzindo frutos que podem ser ricos e oferecerem novos e variados elementos para ajudarem na compreensão da infância na pós-modernidade.

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CES Psicologia

UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE.




Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no ocidente
Moysés Kuhlmann Jr.
RESENHAS
Moysés Kuhlmann Jr.
Departamemto de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, mkj@fcc.org.br

UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE.

Colin Heywood

Porto Alegre: Artmed, 2004, 284p.

Passaram-se mais de 25 anos ao longo dos quais a obra de Philippe Ariès, História social da infância e da família, foi traduzida no Brasil e reinou quase solitária como referência para a história da infância ocidental. A publicação do livro de Colin Heywood permite aos leitores brasileiros o acesso a uma competente síntese do avanço dos estudos sobre o tema em alguns países europeus e nos EUA.

Heywood faz um rastreamento de pesquisas produzidas no Reino Unido, na França, nos EUA, bem como na Itália, na Rússia e nos países escandinavos, entre outros. Isso surpreende, pois não é comum encontrarmos obras de autores estrangeiros que reúnam como referências a bibliografia em língua francesa e em língua inglesa. Os estudos sobre a história da infância em nosso país têm se ocupado de algumas dessas pesquisas européias e norte-americanas e das críticas às teses de Ariès, mas as trataram em análises mais pontuais, referidas a um ou outro aspecto do tema.

O livro organiza-se em três partes. A primeira, ocupa-se das mudanças nas concepções de infância a partir da Idade Média. A segunda, trata da relação das crianças com seus pais e com seus pares ao longo das etapas do seu processo de crescimento. A terceira parte dedica-se às crianças no mundo mais amplo, envolvendo o trabalho, a saúde e a educação. Mesmo com a grande abrangência de fontes bibliográficas, a linguagem é acessível a um amplo público leitor.

O livro parte da compreensão de que seria simplista considerar a ausência ou a presença do sentimento da infância em um ou outro período da história. Considera mais frutífera a busca de diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e lugares.

O autor identifica várias "descobertas" da infância: nos séculos VI a VII, nos séculos XII a XIV, nos séculos XVI e XVII, no século XVIII e início do XIX, e no final do XIX e início do XX. A história da infância move-se por "linhas sinuosas", de modo que a criança pode ter sido considerada impura no início do século XX, como o fora na Alta Idade Média. Se há uma mudança de longo prazo em que a progressiva aceitação da necessidade de uma educação escolar prolonga a infância e a adolescência, se há um interesse crescente e uma imagem cada vez mais positiva da infância, os debates assumem uma forma cíclica e não linear. A ambigüidade, nos diferentes momentos, polariza a criança entre a impureza e a inocência, entre as características inatas e as adquiridas, entre a independência e a dependência, entre meninos e meninas.



As relações das crianças com seus pais e pares é discutida sob vários aspectos: o desejo ou não de se ter filhos, o parto, o batismo, a apresentação das crianças à comunidade e a morte de mães e crianças. Heywood constata que até o impacto da medicina moderna, no final do século XIX, ter filhos era um empreendimento arriscado, mas isso não impedia a expectativa de procriação entre aqueles que se casavam.



A seguir, discute a questão das amas-de-leite, a alimentação, o vestuário, a higiene, o infanticídio, o abandono. Considera que a natureza dramática de algumas dessas questões, assim como a ampla documentação oriunda de instituições de atendimento e do judiciário, entre outras, favorece a ênfase da historiografia nesses aspectos. Entretanto, pondera que a maioria das crianças terá sido poupada desses traumas, vivendo histórias mais banais.



Quanto à segunda fase da infância, do desmame aos sete anos, identifica contrastantes formas de atitude dos pais: o tipo indiferente; o tipo "invasivo" ou "evangélico", que vê a criança como pecadora inata; o seu oposto, que a toma como naturalmente inocente; e o tipo moderado. O autor cita pesquisas que indicam diferentes modos de comportamento materno e paterno, tanto entre personagens da nobreza e da burguesia como entre trabalhadores, camponeses e escravos norte-americanos.



A seguir, trata dos aprendizados e da educação das crianças: o controle dos esfíncteres, o caminhar, a fala, os brinquedos e brincadeiras, os livros infantis. Amedrontar, ironizar, castigar física e moralmente são formas de tratamento que ocorreram em diferentes momentos, embora também se pudesse identificar o combate a essas práticas, como no século XI, quando Santo Anselmo apontava as vantagens da gentileza e dos bons exemplos.



Aos sete anos marcava-se uma transformação na vida das crianças. Mudavam-se os trajes, diferenciavam-se os gêneros, atribuíam-se responsabilidades. Ampliavam-se as relações sociais, seja pela entrada no mundo do trabalho ou do estudo, muitas vezes com a saída de casa, seja pelo maior convívio com os grupos de pares, que irão rivalizar com a família nas influências sobre a socialização das crianças.



A última parte do livro trata da presença das crianças no mundo do trabalho e da sua saúde e educação. O autor considera que, apesar dos exemplos cruéis de exploração do trabalho infantil, grande parte do trabalho feito pelas crianças no passado seria casual e de pouco esforço, relacionado a tarefas de ajudar os adultos nos seus afazeres. Há exemplos de ambas as formas de tratamento, das suaves às extenuantes, no campo e na cidade, antes e após a industrialização. As fábricas intensificaram os abusos sobre as crianças e se isso levou à discussão e formulação de leis, a legislação não chegou a proibir, mas a regulamentar o trabalho infantil e seus efeitos são passíveis de discussão. A condenação e eliminação de boa parte do trabalho infantil, a construção de uma concepção moderna da infância, que destaca a sua vulnerabilidade e que põe a escola como local privilegiado para a infância, foi fruto de um longo processo.



Quanto à saúde, antes da medicina moderna, as crianças eram muito mais vulneráveis a inúmeros problemas, embora as evidências sobre as dificuldades por que passaram não sejam muitas. A melhoria dessa condição, com o passar do tempo, pode ser observada, por exemplo, pelos dados dos registros militares, relacionados à altura dos jovens: adolescentes da classe trabalhadora, nascidos no final da década de 1950, tinham 30 centímetros acima dos nascidos em meados do século XVIII, na Inglaterra. Mas há também estudos que mostram um declínio da estatura, em certos períodos, como entre 1760 e 1800, em Viena, provavelmente relacionado à deterioração dos padrões de vida e suas conseqüências para a nutrição. Outro indicador importante refere-se à mortalidade, que começa a diminuir, aos poucos, a partir do final do século XVIII, e mais efetivamente a partir do final do século XIX. Entretanto, o autor afirma que a melhoria nos dados estatísticos pode encobrir a persistência das desigualdades sociais: no século XIX, as crianças pobres e trabalhadoras eram mais baixas e morriam em maior número do que as de classe alta.



A substituição do trabalho pela escola, como principal ocupação da criança, fica mais caracterizada no final do século XIX e início do século XX. É uma longa história, que se inicia nos países protestantes do norte europeu, no século XVII. No século XVIII, reformadores começam a pensar em termos de um sistema nacional de educação. Heywood chama a atenção para as pesquisas que se ocupam das experiências educacionais anteriores, no âmbito do aprendizado dos ofícios, no período medieval. Considera ainda, que o acesso à educação também se fez marcar pelas desigualdades econômicas e de gênero e raça.



Nas conclusões, o autor reafirma a recorrência de vários temas nessa longa trajetória, da Alta Idade Média ao século XX. Indica melhorias significativas para sua saúde, educação e bem-estar, assim como o final da crença na impureza da infância. Considera, por fim, que as crianças não teriam sido vítimas passivas, possuindo alguma capacidade de resistência e de escolha.



Algumas críticas e considerações podem ser apresentadas à obra. Inicialmente, à edição brasileira. O cuidado com a revisão poderia ter evitado as várias falhas de digitação. O mesmo quanto à tradução, que incorre em alguns problemas. No subtítulo da obra, entende-se "tempos modernos" (modern times, no original) como "época contemporânea". Embora o autor, no último capítulo e em alguns poucos momentos do livro, refira-se aos tempos atuais, o seu estudo estende-se de fato ao início do século XX, sem ocupar-se das questões ocorridas ao longo do século passado. Em outro momento, para se referir ao controle dos esfíncteres, afirma-se que uma das primeiras tarefas propostas por pais e amas "era o ensinamento de como utilizar o banheiro". Parece haver um receio no uso de expressões como defecar e urinar e aí não se pode dizer se o problema é da tradução ou do texto original. Uma das falhas mais gritantes ocorre na página 178, quando ear deveria ser traduzido por "orelha" e não "ouvido", pois não é factível que, na situação descrita, para castigar uma criança em uma oficina, alguém tenha "martelado um prego em seu ouvido".



Quanto ao texto e à amplitude do período estudado, em alguns momentos, parece que se transita com uma certa ligeireza do período medieval aos séculos XVIII e XIX, sem considerar as diferentes condições dos diferentes momentos históricos. Apoiado nas pesquisas realizadas em diversos países, o livro pouco pode falar, ainda, da vida das crianças nos ambientes rurais. Entretanto, o esforço "olímpico" de síntese, como considera o autor, torna essas simplificações quase que inevitáveis.



É louvável a preocupação que acompanha todo o texto, de evitar uma compreensão da história como seqüência linear e evolutiva, assim como, por conseqüência, o entendimento de que, em cada momento haveria uma única infância, o que representa um grande avanço em relação às teses de Ariès. Mas ainda persiste, em vários momentos, uma certa compreensão hierarquizada das formas de sentimento e de relação entre adultos e crianças, como se os sentimentos mais positivos brotassem das classes superiores, irradiando-se para as inferiores.



Em outros momentos, a ponderação das ambigüidades pode levar a uma minimização das situações de exploração infantil, como na página 179, em que o autor afirma que "de forma nenhuma estas eram vítimas passivas da exploração" e que, de algum modo, "as crianças conseguiam transformar o chão de fábrica em um lugar de diversão para si próprias, subvertendo a atenção dos adultos ao seu redor". É necessário, de fato, metodologicamente, evitar as interpretações generalizadas, que acabam por ajuizar que tais ou quais crianças tiveram ou não tiveram infância. Por isso, é importante buscar as evidências de como a condição infantil se manifesta, mesmo nas condições mais adversas. Mas também é preciso estar atento para não se cair no pólo oposto e considerar que essas crianças seriam felizes e independentes diante de uma relação de forças tão desigual como as que têm com os adultos.

Finalmente, cabe uma consideração do lado de cá, do hemisfério sul. A história ocidental ainda é contada no livro, como se não existíssemos, como se a colonização, o ouro, a prata, a batata e tantas outras coisas não fizessem parte da história do ocidente. Isso também remete à expressão "ocidental", que retira explicitamente da análise os aspectos das relações com as sociedades e culturas orientais, que têm suas implicações na nossa história da infância. Para ser mais coerente com a preocupação em se considerar as diferentes condições sociais, culturais etc., para uma compreensão mais consistente da História, caberia referir-se à história da humanidade.

É claro que isso parece pedir demais, o que é fácil de se fazer em uma ligeira apreciação. Mas não custa indicar caminhos de reflexão para as nossas análises e pesquisas, sem deixar de considerar a importância do trabalho do autor, que avança muito mais do que outros, que generalizam para todo o mundo a partir de um único país ou região, ou de uma única referência lingüística.

Recomenda-se a leitura do livro a todos os que tenham interesse na temática.
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