A compreensão da infância como construção sócio-histórica
The understanding of childhood as a social and historical construction
La comprensión de la infancia como una construcción social e histórica
Samuel Lincoln Bezerra Lins1, Maria de Fátima Oliveira Coutinho da Silva2, Zoraide Margaret Bezerra Lins3,2, Terezinha Féres Carneiro4
1,4 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,2,3 Universidade Federal da Paraíba, Brasil
1 Pos-doutorando em Psicologia na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Psicologia (Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Psicologia Social (UFPB). Graduado em Administração (UFPB) Licenciado e Formado em Psicologia (UFPB). samuel.bezerra.lins@gmail.com
2 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. mfocoutinho@gmail.com
3 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. zoraidelins@yahoo.com.br
4 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Coordenadora do Curso de Especialização em Terapia de Família e Casal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. teferca@puc-rio.br
Forma de citar: Bezerra, SL., Coutinho da Silva M., Bezerra Z, ZM. & Féres C., T. (2014). A compreensão da infância como construção sócio-histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126-137.
Resumo
O presente artigo teve o objetivo de fazer algumas reflexões acerca do conceito de infância, considerando questões sociais e históricas. Procurou-se mostrar diversas perspectivas do conceito, a sua evolução ao longo do tempo, bem como os principais teóricos e trabalhos desenvolvidos sobre a temática, na sociedade ocidental, particularmente, no Brasil.
Palavras-chave: Infância, História, Psicologia Do Desenvolvimento.
Abstract
This article aimed to make some reflections about the concept of childhood, considering social and historical issues. We tried to show different perspectives of the concept, its evolution over time, as well as main theorists and work developed on the field, in Western society, particularly in Brazil.
Keywords: Childhood, History, Developmental Psychology.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo hacer algunas reflexiones sobre el concepto de la infancia, teniendo en cuenta los temas sociales e históricos. Tratamos de mostrar diferentes perspectivas del concepto, su evolución en el tiempo, así como los principales trabajos teóricos y hecho sobre el tema, en la sociedad occidental, particularmente en Brasil.
Palavras-chave: Infancia, Historia, Psicología del Desarrollo.
Introdução
A preocupação com o ser humano em seus primeiros anos de vida ocupa um espaço importante na sociedade contemporânea e nas pesquisas científicas (Bortolini & Vitolo, 2010; Bustamante & McCallum, 2010; David, Gelberg, & Suchman, 2012; Meins, Fernyhough, Arnott, Turner & Leekam, 2011, Pinto, 2009). Discussões sobre a infância estão sendo realizadas por pesquisadores das mais diversas áreas, com o objetivo de compreender melhor como a sociedade ocidental tem percebido a infância ao longo dos anos (Duschinsky, 2013; Leifsen, 2009; Punch, 2007; Tisdall & Punch, 2012).
Assim, surge a necessidade de investigar a origem dos significados levando em conta o contexto no qual a infância emerge e suas relações sociais, econômicas, históricas, culturais e políticas, como condições determinantes para retratar uma imagem da infância contextualizada. Neste sentido, este artigo se propõe apresentar uma contextualização histórica do surgimento da infância na literatura científica, como também seu desenvolvimento no Brasil.
O conceito histórico-social de infância
Definir o termo infância é uma tarefa difícil, que pode se diferenciar de acordo com o referencial que se escolhe. Segundo o dicionário Aurélio, a infância é definida como um "período de crescimento do ser humano, que vai do nascimento até a puberdade". A criança, no mesmo dicionário, é definida como um "ser humano de pouca idade" (Ferreira, 2004). Etimologicamente, o termo 'infância", em latim in-fans, significa sem linguagem. Por sua vez, na tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, e não ter racionalidade, ou seja, a criança é compreendida como um ser menor, e como alguém a ser adestrado, a ser moralizado, e a ser educado (Castro, 2010).
Percebe-se, no entanto, que a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. Khulmann Jr. (1998) afirma que a infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado está vinculado às transformações sociais, visto que, cada sociedade tem seu próprio sistema de classes etárias que estão associadas a um sistema de status e de papéis desempenhados.
Silveira (2000) aponta para o fato de que a sociedade sempre está em movimento e, desse modo, a vivência da infância transforma-se de acordo com os paradigmas do contexto histórico, ou seja, pensar na infância é também articulá-la com outros domínios como a escola, a família e a sociedade.
A importância da criança dentro de uma comunidade varia conforme o período histórico em que ela é considerada, uma vez que cada período imprime na infância uma significação específica, por vezes atrelada às condições sociais, e não apenas à sua condição de ser biológica (Silveira, 2000). A infância, sob essa ótica, registra-se como condição da criança, isto é, caracteriza-se como uma condição social e historicamente construída (Kuhlmann, 1998).
Com efeito, a infância é um tempo específico o qual todos vivenciam, entretanto, sempre se questionou qual era o tempo exato de abrangência da infância e como era percebida esta criança (Castro, 2010). Dessa forma, resgatar os antecedentes da história é dar espaço a inúmeros documentos que revelam o papel da criança desempenhado na sociedade ao longo dos anos. Tais documentos agem como porta-vozes da construção da história da infância e surgem como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma de como compreendemos e nos relacionamos atualmente com a criança.
A importância da construção do conceito de infância teve um grande avanço com os estudos do pesquisador francês Philippe Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, com a publicação da obra História Social da Criança e da Família, em 1960. Foi ele quem formulou um novo olhar historiográfico para o sentimento de infância no mundo ocidental, demonstrando que foi uma concepção socialmente construída durante a época moderna, e destacando aspectos desde a consciência da infância até as especificidades da criança, ou seja, aquilo que a diferencia do adulto.
Segundo relata Ariès (1981), a infância foi um conceito historicamente construído e a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Este autor considera a infância como uma invenção da modernidade, constituindo-se numa categoria social construída recentemente na história da humanidade, onde a emergência do sentimento de infância, como uma consciência da particularidade infantil, é decorrente de um longo processo histórico, não sendo uma herança natural. Essa afirmação desencadeou grandes mudanças na compreensão da infância, já que ela era pensada como uma fase da vida, como qualquer outra. Nesse sentido, a história da infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos relacionamos atualmente com ela.
Historiadores da infância como Charlot (1983), Sarmento e Pinto (1997) e Tomás (2001), explicam que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas na época pós-medieval, geraram subsídios para a percepção moderna da infância, compreendida como campo da vida social específico destacado do campo dos adultos. Assim, a infância passou a ser reconhecida como uma fase diferenciada do ciclo da vida e como algo novo na história da humanidade. Confirma-se então, que a história da infância só começou a ser narrada recentemente, por consequência do anonimato em que a criança viveu no mundo ocidental até o século XVIII. A partir desse século, a infância como categoria histórica, contextualizada cultural e socialmente passou a apresentar diferentes imagens sociais ao longo da história.
A infância como conhecemos hoje foi uma criação de um tempo histórico e de condições socioculturais determinadas, sendo um engano ousar analisar todas as infâncias de todas as crianças com o mesmo enfoque. A compreensão da infância muda com o tempo e com os diferentes contextos sociais, econômicos, geográficos, e até mesmo com as peculiaridades individuais (Ariès, 1981).
Heywood (2004) assinala que por volta do século XII, as condições gerais de higiene e saúde eram precárias, situação que contribuía para elevar o índice de mortalidade infantil, porém, mesmo se as crianças sobrevivessem aos primeiros anos de vida e atingissem certa idade, ainda assim, não possuiriam identidade própria, só vindo a tê-la quando conseguissem realizar atividades semelhantes àquelas desempenhadas pelos adultos.
Sendo assim, os cuidados especiais que as crianças deveriam receber, ou mesmo quando os recebiam, eram destinados apenas aos primeiros anos de vida e reservados aos que possuíam uma situação socialmente e financeiramente privilegiada. Dos adultos, que cuidavam das crianças, não se exigia nenhuma preparação, e esse cuidado era realizado pelas chamadas criadeiras, amas de leite ou mães mercenárias.
Obviamente, isto não significa negar a existência social das crianças, significa reconhecer que, antes do século XVI, a consciência social não admitia a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada do gênero humano. Uma vez passado o estrito período de dependência física da mãe, esses indivíduos se incorporavam plenamente ao mundo dos adultos (Levin, 1997).
No século XIII, atribuía-se à criança modos de pensar e sentimentos anteriores à razão e aos bons costumes. Era tarefa dos adultos desenvolver nela o caráter e a razão, e de modo semelhante, a Igreja procurava cumprir a tarefa de educação, colocando-as a serviço do monastério. Tais costumes podem ser observados facilmente através da arte e iconografias que retratam este século (Heywood, 2004).
O sentimento de infância, presente na sociedade moderna, nem sempre foi valorizado durante a idade média. Praticamente inexistia esse sentimento, tanto da infância como da adolescência, fato que perdurou até o século XVIII. Nesse período, a criança logo que apresentasse algum desenvolvimento misturava-se ao mundo dos adultos, participando de atividades semelhantes, como festas, jogos e brincadeiras. A família na Idade Média não tinha a função afetiva que tem hoje, "era uma realidade moral e social, mais que sentimental" (Ariès, 1981, p.67).
Nos séculos XVI e XVII existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das percepções dos adultos. Porém, só a partir do século XVII foi possível seu reconhecimento em maior número onde as representações da infância divergiam muito da realidade, onde as crianças eram representadas com expressões de adultos, musculosas e vestidas com trajes de adulto. De acordo com Ariès (1981), "a criança deixava os cueiros, ou seja, a faixa de tecidos que era enrolada em torno de seu corpo, ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição" (p. 81). Isto demonstra o quanto as crianças não tinham valor, e a infância era desconhecida, considerada apenas como um período de transição, que logo se ultrapassava.
Foi durante o século XVII que se generalizou o hábito de pintar nos objetos e nas mobílias da casa uma data solene para a família. Constata-se que foi na Idade Média que as idades da vida começaram a ter importância. Durante esse período, então, existiam seis etapas de vida. As três primeiras, que correspondiam à primeira idade (nascimento aos 7 anos), a segunda idade (7 a 14 anos) e terceira idade (14 a 21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a partir da quarta idade, a juventude (21 a 45 anos), as pessoas começariam a ser reconhecidas socialmente. Ainda existindo a quinta idade (a senectude), referente à pessoa que não era velha, mas que já tinha passado da juventude e a sexta idade (a velhice), dos 60 anos em diante até a morte. Tais etapas alimentavam desde esta época, a idéia de uma vida dividida em fases (Ariès, 1981).
Ainda no século XVII, nas classes dominantes, surgiu a primeira concepção real de infância, a partir da observação dos movimentos de dependência das crianças muito pequenas. O adulto passou, então, pouco a pouco, a preocupar-se com ela como um ser dependente e fraco (Levin, 1997). Comenta o autor, que ultrapassar esta fase da vida só para quem saísse da dependência, ou pelo menos dos graus mais baixos de dependência, desse modo a palavra infância passou a designar a primeira idade de vida, a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias de hoje.
Percebe-se, portanto que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância, não havia lugar para esta na sociedade, fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a ela. Só então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças passaram a ser vistas como seres biológicos, que necessitavam de grandes cuidados e de uma rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.
Segundo Heywood (2004), ao analisar o século XVIII, a emergência social da criança nesse século aconteceu devido às obras de John Locke, Jean Jacques Rousseau e dos primeiros românticos. Cita o autor que foi Locke que difundiu a idéia da tábula rasa para o desenvolvimento infantil e de que a criança nascia apenas como uma folha em branco, na qual, se poderia inscrever o que se quisesse.
Enquanto que, para Rousseau, existia a idéia de natureza boa, pura e ingênua da criança, e da necessidade de respeitá-la e deixá-la livre para que a natureza pudesse agir no seu curso normal, favorecendo o pleno desenvolvimento saudável das crianças. Já em relação às concepções românticas da infância, apresentaram as crianças como portadoras de sabedoria, sensibilidade, e estética apurada, necessitando que se criassem condições favoráveis para o seu pleno desenvolvimento.
Assim, cabe destacar, que o tratamento diferenciado remetido à infância aparece entre os séculos XVI e XVIII. Até essa época a educação das crianças confundia-se com sua inclusão nas atividades da sociedade e nos espaços públicos, porém com a Revolução Industrial e a conseqüente urbanização, inicia-se o processo da família nuclear extensa do período feudal (Rabuske, Oliveira & Aripini, 2005).
Já no século XIX inaugura-se uma visão de criança sem valor econômico, mas de valor emocional inquestionável, criando uma concepção de infância plenamente aceita no século XX. Na verdade, como é possível perceber, "a história cultural da infância tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos: a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média" (Heywood, 2004, p. 45).
Pode-se então afirmar que, a mudança de paradigma no que se refere ao conceito de infância está diretamente ligada ao fato de que as crianças sempre foram consideradas adultos imperfeitos, sendo assim, essa etapa da vida seria de pouco interesse, visto que "somente em épocas comparativamente recentes veio a surgir um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes, e, portanto, dignas de ser estudadas por si sós" (Heywood, 2004, p.10).
O que se observou no ocidente foi o movimento de particularização da infância, ganhando forças a partir do século XVIII, a esse respeito:
A família sofre grandes transformações e criam-se novas necessidades sociais nas quais a criança será valorizada enormemente, passando a ocupar um lugar central na dinâmica familiar. A partir de então, o conceito de infância se evidencia pelo valor do amor familiar: as crianças passam dos cuidados das amas para o controle dos pais e, posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos especialistas e das diferentes ciências como Psicologia, Antropologia, Sociologia, Medicina, Fonoaudiologia, Pedagogia, dentre outras tantas (Frota, 2007, p.152).
Nesse sentido, foi através de Rousseau, considerado um dos primeiros pedagogos da História, que a criança começou a ser vista de maneira diferenciada do que até então existia, uma vez que ele propôs uma educação infantil sem juízes, sem prisões e sem exércitos (Levin, 1997). Assim, a partir da Revolução Francesa, em 1789, modificou-se a função do Estado e, com isso, a responsabilidade para com as crianças e o interesse por elas. A partir desse momento os governos começaram a se preocupar com o bem-estar e com a educação das mesmas.
De fato, a infância e a criança tornaram-se objetos de estudos e de saberes de diferentes áreas, constituindo-se num campo temático de natureza interdisciplinar, independentemente da forma como era analisada e do posicionamento teórico que se tinha sobre ela, a infância tornou-se visível como um estatuto teórico.
Essa discussão nos remete à necessidade de pesquisas na área que possam aprofundar e elucidar as questões da infância e as suas transformações, principalmente no que diz respeito às concepções da condição da criança enquanto ser social e sujeito ativo, ou seja, uma criança concreta que ocupa um lugar na história através de relações sociais que se estruturam a cada dia. É importante perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história (Kuhlmann, 1998).
Compreende-se então, que com a evolução nas relações sociais que se estabeleceram na Idade Moderna, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com a sua saúde e a sua educação.
A ciência moderna, ao elaborar um conjunto de características sobre a criança, reconhece a infância como um momento do desenvolvimento humano, abrindo campo para vários estudos e orientações no cuidado e educação desse grupo etário -o universo infantil-. Entretanto, a análise da produção existente sobre a história da infância permite afirmar que a preocupação com a criança encontra-se presente somente a partir do século XIX, tanto no Brasil como em outros lugares do mundo.
O conceito histórico-social de infância no Brasil
Resgatar a história social da infância no Brasil é um fato recente. Se na Europa a historiografia sobre a criança só foi produzida a partir de 1960, através de Ariès, no Brasil, a compreensão da infância parece ter realmente começado no século XIX, intensificando-se nos séculos seguintes (Frota, 2007). Portanto, é recente a preocupação dos historiadores brasileiros sobre este tema, e apesar da História da Criança ter alçado destaque nos últimos anos, ainda está muito presa aos temas da história contemporânea.
De fato, apenas a partir do ano de 1991 surgiu a primeira publicação na historiografia que se propôs a escrever a história da criança brasileira. Esta obra foi organizada por Mary Del Priore e reuniu uma coletânea de textos, de diversos autores, sob o título de História da Criança no Brasil. Em seu trabalho, Del Priore analisou como o sentimento de valorização da criança, corrente na Europa Moderna, identificado por Ariès, esteve presente na prática educativa dos missionários jesuítas no Brasil Colônia. A infância, para estes, era vista como o momento oportuno para a catequese, pois seria o período em que se daria a aprendizagem de princípios e valores que seriam adotados e seguidos por toda a vida (Del Priore, 1991).
A constatação da crescente valorização social da criança, que culminou no que Ariès (1981) denominou descoberta da infância, teve como fontes elementos provenientes da cultura européia. Os processos de colonização, em terras das Américas e da África, são repletos de demonstrações das influências dos modelos europeus nas práticas sociais das populações colonizadas.
Dentre os primeiros registros encontrados sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos jesuítas. No século XVI, estes implantaram um sistema de educação direcionado aos povos indígenas e tinha o propósito de, através do convívio com a doutrina a ser difundida pelos jesuítas, promover mudanças nos costumes da população indígena, considerados inadequados na visão da Colônia e da Igreja (Cruz, 2006). Os cuidados especiais infância eram limitados e as regras e recomendações acerca da vida e educação das crianças eram determinadas, principalmente, pela Igreja (Ribeiro, 2006).
O processo de transição do Brasil Colônia para o Império teve como marco histórico a Declaração de Independência, em 1822. A luta pela independência do Brasil contou com diversos segmentos sociais, entre eles os padres, os intelectuais e os escravos. Com a emancipação política do País, no início do século XIX, fez-se necessário a criação de uma Constituição. Assim, a primeira Constituição brasileira foi promulgada em 1824. Nesta, contudo, mantiveram-se as características do Brasil Colônia, como: trabalho escravo, dependência política do país em relação a Portugal e relações de poder centralizadas no domínio dos grandes proprietários e não havia nenhuma referência à infância ou a práticas relacionadas às crianças (Carvalho, 2008).
Mesmo assim, neste contexto, intensificaram-se as intervenções médicas nas questões de saúde e higiene e, consequentemente, os cuidados dedicados à infância e à família. Este processo de valorização da saúde ocorreu primeiro na Europa, depois no Brasil, chegando ao século XIX com o foco na questão da mortalidade infantil e nas recomendações de cuidados com as crianças. É neste período que se inicia a institucionalização dos saberes médicos e também psicológicos aplicados à infância e, portanto, é quando podemos obter mais registros sobre práticas e políticas dirigidas a meninas e meninos.
Assim, um processo a ser enfatizado na área de atendimento à infância no Brasil e no mundo, caracteriza-se por medidas higienistas-eugênicas, emergentes no fim do século XIX e início do século XX. Embora o higienismo e a eugenia advenham de movimentos diferentes e de circunstâncias históricas e proposições teóricas próprias, suas idéias se aproximaram e se sobrepuseram às políticas e práticas sociais brasileiras (Boarini & Yamamoto, 2004).
A partir do século XIX, estes ditames passaram a ser cada vez mais foco do saber considerado científico. As famílias, especialmente as mães, passaram a receber de modo mais sistemático, orientações desses profissionais sobre saúde e cuidados dirigidos às crianças (Heywood, 2004). Assim, a perspectiva da saúde compõe com a religião e a moral construções de sentidos de infância, passando a normatizar e interferir cotidianamente nos modos de tratar e educar meninos e meninas. Concomitantemente, é nesta época que a infância ganha maior visibilidade, pois é definida como objeto de intervenções públicas, devido à maior valorização da mão-de-obra num mundo em franco progresso da lógica capitalista e industrial (Silva Santos, 2004).
Assim, no século XX, com o desenvolvimento tecnológico e a mobilidade geográfica, o discurso científico médico-psicológico tornou-se o referencial para as práticas direcionadas ao cuidado infantil passando a orientar a relação pais-filhos (Alves, 1999). A ênfase atribuída, no século XX, às responsabilidades e ao papel do adulto em relação à criança aconteceu a partir da institucionalização da Declaração Internacional dos Direitos da Criança, no ano de 1959. Desse modo, os comportamentos e atitudes socialmente construídos adquiriram um caráter de lei, como pode ser observado com a instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, em 1990 (Almeida & Cunha, 2003).
O cuidado atual em estudos sobre a infância recai no evitar os reducionismos de qualquer ordem. Assim, é preciso não deixar a ideia de que a infância é uma construção unicamente social para abandonar o reducionismo biológico e, dessa forma, substituí-lo pelo reducionismo sociológico (Prout, 2004). A criança deve ser vista como um ser completo, biopsicossocial, por isso, é preciso intensificar a interdisciplinaridade dos estudos da infância (Müller & Hassen, 2009, Qvortrup, 2011)
Neste sentido, observa-se o aumento do interesse de investigadores brasileiros na realização de estudos destacando a importância da criança e a compreensão dos seus significados (Silva, Luz & Faria Filho, 2010), em diversos campos do conhecimento como a Sociologia (Abramowicz & Oliveira, 2010), a História (Lage & Rosa, 2011; Poletto, 2012), a Assistência Social (Lockmann & Mota, 2013), e a Psicologia (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012).
Considerações finais
A partir das reflexões sobre as diversas concepções de infância, surge uma preocupação cada vez mais ampla e sistemática com o estudo e compreensão da criança e de seu desenvolvimento. A partir do estudo científico da criança, que se iniciou, efetivamente, no século XIX, como legado maior das Teorias Desenvolvimentistas, surgiu a compreensão da criança como uma categoria científica, notadamente positivista, ou seja, a infância passou a ser concebida como produto do tempo, da natureza e da cultura.
Pode-se ver que, numa perspectiva histórica de milhares de anos, em que predominou o total desconhecimento da criança, a Psicologia do Desenvolvimento Infantil encontrou no seu início diversas dificuldades para se impor como estudo importante e necessário. Hoje, o estudo do desenvolvimento da criança é necessário e indispensável para quem deseja trabalhar com essa fase da vida humana. Além disso, a perspectiva extremamente positivista assumida pela Psicologia do Desenvolvimento, que se preocupava principalmente em observar, medir e comparar as mudanças exibidas pelascrianças ao longo de sua trajetória de vida, foi substituída por uma perspectiva mais histórica (Frota, 2007).
Atualmente, a criança e a infância são compreendidas como categorias construídas historicamente, o que nos abre possibilidades de compreendê-las de modo concreto, na sua expressão de vida. O tempo linear, cronológico e contínuo é superado por um devir, um tempo que não se esgota em si mesmo.
No que se refere à infância, identificamos, nesta trajetória histórica, diferentes significados constituídos em distintos contextos sociais. Do interesse limitado pela criança na Idade Média, até a infância como foco das práticas sociais e formalmente prioritária nas políticas públicas da atualidade, comprovando-se que houve um longo caminho de transformações políticas, econômicas e culturais. Neste sentido, significados e contextos estão intimamente relacionados.
Por outro lado, o estudo dessas perspectivas históricas indica a necessidade de debater e compreender continuamente atribuições, lugares e responsabilidades que o presente nos impõe. Podemos ser protagonistas da construção, assim como temos a chance de participação na geração de espaços de cidadania. Tais possibilidades nos remetem ao campo da ética e, consequentemente, da constante reflexão crítica acerca das interlocuções entre as práticas construídas, nossos projetos político-sociais e os valores que os contemplam.
Assim, a partir do momento em que se alcançou uma consciência sobre a importância da infância, foram criadas várias políticas e programas que visaram a promover e ampliar as condições necessárias para o exercício da cidadania das crianças, que por sua vez, passaram a ocupar lugar de destaque na sociedade. Essa consciência da infância exerceu enorme influência sobre a formação legislativa ao longo dos séculos passados.
Entretanto, somente no final do século XX, foi possível romper, do ponto de vista normativo, com aquele paradigma, quando se acolheu o atendimento às crianças e adolescentes dentro das políticas públicas, reconhecendo-os como sujeitos de direitos fundamentais e especiais, decorrentes da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, responsabilizando o Estado, a sociedade e a família pela garantia e atendimento, com irrestrita prioridade, de todas as suas necessidades.
O marco destes avanços se deu com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela lei 8.069 no dia 13 de julho de 1990, regulamentando os direitos das crianças, considerando a proteção da infância como prioridade absoluta, como determina a Constituição Federal Brasileira. Cabe destacar também a influência das diretrizes da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na proteção ao direito à infância, tendo em vista a elaboração de políticas públicas (Cecílio & Brandão, 2013).
Observa-se que a maneira de como a infância é vista atualmente é consequência- dessas constantes transformações pelas quais passamos, e que é de extrema importância nos darmos conta destas transformações para compreendermos a dimensão que a infância ocupa atualmente. Como ressalta Bujes (2001), este percurso, ou seja, esta história, só foi possível porque também se modificaram na sociedade as maneiras de se pensar o que é ser criança e a importância que foi dada esta fase específica do ciclo vital. Portanto, enquanto pesquisadores e profissionais de saúde, devemos ter sempre uma postura progressista de avanço das descobertas científicas, mas sem desconsiderar a história que nos trouxe até aqui.
Desse modo, as diferentes concepções existentes sobre a criança, na contemporaneidade ocidental, são peças indispensáveis para comporem um quadro geral sobre a infância atual, e necessitam serem conhecidas e compreendidas dentro do contexto no qual foram produzidas. Tais saberes, de diferentes disciplinas e origens teóricas, devem ser convidados ao diálogo, produzindo frutos que podem ser ricos e oferecerem novos e variados elementos para ajudarem na compreensão da infância na pós-modernidade.
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CES Psicologia
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